Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.

Pelos cachos de Félix!

Felix

Caso solicitasse uma análise, Félix seria um desafio ao analista

O personagem Félix Khoury, interpretado por Matheus Solano, na novela Amor à vida, de Walcyr Carrasco, está dando o que falar. Seu bordão entrou no cotidiano. Agora, ninguém se intimida ao dizer, por exemplo, que roubou os presentes dos Reis Magos ou que cobrou ingresso na Via Sacra!
Por que tamanho sucesso? Pelas contas do rosário: o que tem de especial no modo como esse personagem usa a linguagem? Félix cria novas expressões para queixar-se, em geral, a partir do contexto religioso, ao invés de papagaiar expressões já cristalizadas. Eu salguei a Santa Ceia, só pode! – disse Félix, reclamando da viagem com a família para Machu Pichu. Esse é apenas um exemplo de como o personagem extravasa suas frustrações, provocando riso nos telespectadores.
Filho de um rico médico, Félix foi preterido na sucessão familiar e expulso da direção do Hospital por roubo. Solano foi brilhante na composição do personagem. Não montou uma caricatura de “bicha” para incorporar o pretenso injustiçado. Ele se destaca pelo modo como dá vida ao texto de Carrasco. A cada capítulo, os telespectadores esperam para saber de que modo destilará seu veneno.
Isso gerou tamanha comoção que, nas redes sociais, tem circulado a série Félix bicha má com a coletânea dos melhores momentos. Olhando mais de perto o discurso de Félix, podemos ver que ele se monta por meio das seguintes referências:

a) Religiosas:
1.Devo ter sambado no Santo Sepulcro!
2.Será que piquei salsinha na tábua dos Dez Mandamentos?
3.Eu não coloque defeito em ninguém, foi Deus quem colocou. Eu só comento.
4.Onde foi que ganhei essa fama de coração de ouro? Ou será que estou em Israel e fui confundido com o Muro das Lamentações?

b) Corporais:
1.Pelas rugas de Matusalém!
2.Pelos cachos de Sansão!
3.Genética não tem nada a ver com cabelo tingido!

c) Financeiras:
1.Nasci para o luxo!
2.Eu não tenho vocação para a pobreza.
3.Tenho motivos suficientes pra acreditar que eu lavei cueca na manjedoura

d) À feiura feminina:
1.Pior é a mulher quando é pobre, gorda e feia. Aí é uma lastima!
2.A lei da gravidade é um crime contra a mulher!
3.De bolsa Louis Vuitton no ponto de ônibus? Você quer enganar quem criatura?

e) Autodepreciativas:
1.Tem dias que eu acordo e pareço um chiclete mascado!
2.Dormir pouco me deixa com a cara do travesseiro.
3.Minha pele borbulha com comida gordurosa.

f) Autoelogiosas:
1.Já me conformei, nem todo mundo nasce genial como eu.
2.Não tenho inimigos, só fãs revoltados.
3.Vou trocar minha aura por um esplendor de purpurina.

g) Sexuais:
1.O desejo é como uma onda: vem e vai.
2.Eu abri uma frestinha na porta do armário, dei uma escapadinha para fora, mas eu volto. Entro dentro do armário, tranco a porta com cadeado. Eu juro.
3.Qualquer mulher ficaria molhadinha só de olhar para o abdômen dele.

h) Aos jargões dos homossexuais:
1.Bofe bom é bofe burro!
2.Homem pra mim tem que ser igual a café: forte, quente e gostoso.
3.Mamãe não tem um coração, tem um mousse de morango no lugar, de tão doce que é!

Há um elemento em comum entre todas essas expressões idiomáticas: elas dizem respeito a algo que a pessoa fez, involuntariamente, e se esqueceu. Só se dá conta do que está havendo quando sofre um revide pelo qual não se vê minimamente responsável. Essa posição inconsequente é sintetizada, ainda por cima, em seu nome de felicidade: Félix. No personagem, isso é motivo da graça que seduz.

Apesar de engraçado, o humor de Félix tem consequências. Ao se mostrar íntimo de suas criações verbais, que não deixam de exigir erudição, Félix se desresponsabiliza dos acontecimentos criados por ele. Ele nunca foi responsável por nada. Se algo de mal lhe aconteceu, só pode ter sido culpa do Papi Soberano, por exemplo.

Acreditamos que ele tenta, habilmente, seduzir aquele que o ouve. Caso solicitasse uma análise, Félix seria um desafio ao analista. Ele correria o risco de se imobilizar pelo canto da sereia. Não é o caso. Seu analista teria de confrontá-lo com a consequência de seus atos, talvez, encarnando uma versão do ditado Se ele vem com o milho, a gente volta com a pipoca. E, quer saber? Nem vem de garfo que hoje é dia de sopa!

Se ele fizesse uma análise, seguramente sua vida não seria mais uma piada, mas não estaria proibida a outro tipo de felicidade.

Publicado originalmente em 01 de novembro de 2013.

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Franca 2

Ao ser caracterizada, desde criança, como alguém “abatido”, uma paciente de 40 anos percebeu que viveu para endossar esse adjetivo.

Um insulto recebido na infância pode dar o tom da vida de uma pessoa enquanto ela deixa que isso aconteça. Foi o que ocorreu com Paula, 40 anos, divorciada e mãe de dois filhos. Era do tipo que cruzava as pernas sedutoramente para chorar. Procurou análise com uma queixa de se sentir “sem vida” mesmo sendo uma advogada bem-sucedida. Relatava estar com pressão baixa, com a pele gelada e se sentindo muito cansada. O clínico havia atestado ótima saúde, dizendo: “o que esta moça tem é da cabeça, não do corpo”.
A mãe havia lhe dito que, durante a gestação da filha, havia temido que essa nascesse com problema. O casal teve a menina (filha única) em idade avançada. Em uma das sessões, Paula assinou embaixo dos temores de sua mãe, dizendo: “Posso não ter nascido débil mental, mas não escapei de ficar amarela”. Certa manhã, chegou ao consultório dizendo-se muito perturbada. Narrou que estava angustiada. Pela presença desse afeto percebeu que um comentário de sua empregada havia lhe tocado: “a senhora está com uma aparência de cansada, um pouco abatida”. Na sessão, uma lembrança de infância ocorreu-lhe. Quando menina, havia sido forçada, por sua mãe, a tomar muito óleo de fígado de bacalhau. A mãe tinha como ambição que sua filha fosse corada. Dizia que, tomando tal óleo, Paula melhoraria e se tornaria uma “menina corada como as outras crianças. Deixaria de ser abatida”.
Vemos, portanto, que nos primeiros minutos de sessão, a palavra “abatida” apareceu duas vezes. A primeira, no comentário da empregada, a segunda, na insistência da mãe. A partir de sua perturbação conclui-se que, na infância, Paula foi insultada por esse significante e, a partir de então, nunca havia deixado de dar consistência a ele. De novo, assinou embaixo. Para ela, a palavra “abatida” parecia ser a marca de sua insuficiência aos olhos dos outros. A analista guardou silêncio. A palavra “abatida” apareceu pela terceira vez. Paula relatou que, aos seis ou sete anos, acompanhou sua mãe em um açougue. Naquele tempo, era comum que os açougues vendessem aves mortas para que fossem preparadas mais frescas. Paula resolveu ler o letreiro do estabelecimento. Nele, estava escrito: “Carnes de primeira e aves abatidas”.
Ignorando o significado da expressão “aves abatidas”, tentou inferir o significado da expressão a partir da palavra “abatida”. Então, apontando as aves mortas expostas sobre uma bancada, perguntou à sua mãe se aquelas galinhas, assim como ela, sofriam do fígado. Que triste e desvitalizante identificação!
A paciente lembrou que sua mãe tinha rido muito e havia lhe explicado que a expressão “aves abatidas” era utilizada para designar as “aves mortas”. Narrou-me que, assim que compreendeu a explicação de sua mãe, havia exclamado, cheia de júbilo por ter entendido que, nesse caso, “abatidas” significava “sacrificada”: “Sim, abatida!”. A partir desse fluxo associativo, que poderia ter progredido de modo infinito, como gerar trabalho? Como livrar Paula dessa identificação mortificante, bastante relacionada com os sintomas inicialmente relatados? No caso, “ave abatida”, ao fazer parte do idioleto de Paula, apontava para sua posição de gozo, a qual havia gerado os sintomas que a fizeram procurar inicialmente o médico. O corpo doente de Paula dava sempre a impressão de que ele era o fardo que carregava por ser “amarela”, “abatida”. Em outras palavras, sua doença era uma homenagem a sua mãe.
A abordagem escolhida por mim foi a leitura literal do inconsciente. Sem nada explicar ou acrescentar, suspendi a sessão, limitando-me à seguinte pontuação: “Há muito tempo”. Essa pontuação teve finalidade de despertar o analisante, obtendo o efeito de corte, de suspensão e surpresa. Ao introduzir uma marca temporal, “há muito tempo”, foi possível escapar de uma circularidade que dava consistência ao seu sintoma. Assim, convoquei-a a se dar conta de que morta, amarela, gelada, foi como sempre esteve.
O significante “abatida” insultou Paula, fixando-a em sua posição de morta, funcionando como uma hipnose, um feitiço. Presa na teia do insulto ficava paralisada, a ponto de não reagir, pois não o detectava. Como Jorge Forbes nos alertou que costuma acontecer, Paula pensava que o “insulto lhe caia bem”. Seu caso ensina que, para gerar trabalho e deslocar o gozo de uma pessoa, o analista precisa extirpar o insulto que, fixando-a a uma identificação mortífera, a impede de viver de modo mais feliz, criativo e responsável.

Publicado originalmente em 18 de outubro de 2013.

Qual língua se fala por aqui?

Franca 3

Os equívocos de uma psicanalista carioca nas ruas de São Paulo

A língua falada em São Paulo ultrapassa qualquer rivalidade entre os “manos” locais e os “broder” do Rio de Janeiro. Não é necessário estabelecer a linha de Tordesilhas para vermos que, definitivamente, São Paulo e Rio são duas cidades separadas pelo mesmo idioma. Não vou apregoar o português falado em uma ou em outra, mas peço aos leitores que, depois de saber a minha história, avaliem se é necessário, comprar um dicionário após os 50 minutos na ponte aérea.
Início de 1990, calor insuportável em São Paulo. Tentei arranjar uma vaga para estacionar o carro e, para minha surpresa, havia uma “esperando por mim”. Lá fui eu manobrando muito bem o carro, de fazer inveja a qualquer instrutor de autoescola! Havia um pequeno grupo de homens, que me olhavam atentamente (mais por estupefação do que por outro motivo). Assim que estacionei, um deles, muito solícito, aproximou-se de mim e perguntou: “Vai um cartão da Zona”? Frente ao meu espanto e indignação, o senhor bradava que eu só poderia ficar ali se eu comprasse o tal cartão. Com a boca seca de tanta raiva, respondi em tom duro que se alguém ali tinha algum cartão parecido com o mencionado, devia seguramente “ser a digníssima senhora sua mãe e a sua irmã”! Ele continuava sem entender minha reação e ainda disse em tom profético: “Depois não diga que eu não avisei”! O tal cartão da zona azul só chegou ao Rio de Janeiro dois anos depois. Naquela época, só contávamos com os “flanelinhas”, que nos ajudavam arranjar uma vaga e depois sumiam.
Quando cheguei à terra da garoa, ainda não existia o GPS. Então, ao sair de casa, contava um tempo a mais para me perder e depois me localizar. Na época, usávamos o Guia de Ruas, aquele livro que mais se assemelhava a um “Vade-mécum” de medicação de tarja preta. Todos tinham o Guia, logo, não poderia ficar sem um também. E assim ia tentando me orientar nessa cidade querida e caótica. Um dia, precisei ir ao Itaim. Até aí nada demais. Acontece que a pessoa no telefone frisou que o tal endereço ficava no “Itaim Bibi”. Já me sentindo apta a achar qualquer lugar no meu livrão, saí cheia de curiosidade a procurar o bairro. Então, como se diz no interior paulista, “montei no porco”! Ao conferir no Guia, fiquei muito impressionada com as expressões que se referiam ao bairro: “Chácara do Itaim”! Pensei: “deve ser um lugar muito bonito, com plantas e gramados”. Repetia o mantra à exaustão para ver se não errava: Itaim Bibi. Ledo engano! Já estava tão exausta que resolvi pedir ajuda. Abro a janela do carro e pergunto a um grupo: “Será que alguém pode me informar se já cheguei ao Itaim Fonfom!?”.
Perplexa, sem entender as gargalhadas que recebi como resposta, pensei que os equívocos da psicanálise e os mal-entendidos entre cariocas e paulistas se concretizavam na psicopatologia da minha vida cotidiana em São Paulo! Foi, então, que senti na pele que ainda não pertencia à mesma paróquia, como nos diz Lacan referindo-se às “tiradas espirituosas da língua”. Só assim pude, finalmente, conciliar-me com ela. Sacô meu bróder, digo, meu mano?

Publicado originalmente em 08 de fevereiro de 2013.