Da herança melancólica ao luto singular

Escrevo este texto em um momento em que, no Brasil, 117.665 famílias perderam membros queridos por COVID-19 e, forçosamente, tiveram de lidar com questões de herança.

O que é que uma pessoa herda? Uma criança quando nasce herda uma família, um nome, uma cor azul ou rosa, uma profissão, mas, sobretudo, um sobrenome. Um sobrenome está para além do nome. É o que dá a esse sujeito uma localização dentro de uma família. Vai marcar o sujeito e lhe dar o lugar do patronímico. Se, por um lado, o sujeito precisa dele para ter um lugar, por outro, paradoxalmente, só o conseguirá na medida em que o ultrapassar criando e constituindo o seu nome próprio. 

“Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”, citação de Goethe que Freud toma para a articulação final em Totem e Tabu (1912-1913). “Conquista-o” é no sentido de apropriar-se de um legado que, no entanto, tem de ser ressignificado. Depreende-se, então, que dependendo de como a pessoa receber essa herança, ela pode ser algo maldito: se ela achar que pode, que sabe qual é o desejo do Outro para assim cumprir à risca a execução e continuação do mesmo. Ora, sabemos que essa exigência é da ordem de um narcisismo e de uma onipotência daqueles que se julgam capazes de abrir mão da construção de seu destino em prol da manutenção de um ideal. 

Nos textos de psicanálise, encontramos várias menções a respeito das formas de uma herança. Talvez, a mais antiga seja quando Freud, em Luto e melancolia (texto de 1917), refere-se a uma herança que se contrai, ou que se recebe, em face à morte de alguém. Nesse texto, Freud pontua que, às vezes, o sujeito não consegue fazer o luto e fica condenado a um suplício de ter de cotidianamente lustrar seu objeto ou tentar carregá-lo em seu coração.

Então, muitas vezes, a herança pode se tornar “herança melancólica”, uma vez que aquele que recebeu a herança vai, como se diz na língua, “fazer por merecer”. A pessoa vai ser condenada e se condenar a repetir um destino, uma sentença que inconscientemente imagina que seja uma resposta à expectativa do Outro. Ledo engano, pois nunca é possível calcular o que o outro quer. Quanto sofrimento! 

Acreditar-se capaz de ocupar um lugar deixado vazio é acreditar na vã esperança de que há relação sexual, é crer numa completude referida a um imaginário enganador, é acreditar que existe um lugar que deve ser ocupado, posto que um dia existiu. Honrar a morte de alguém é diferente de se fazer refém de um desejo corporificado em uma pessoa. 

Neste momento, em que tantos de nós precisamos lidar com o luto, saibamos honrar nossas heranças, assumindo o lugar vazio daqueles que perdemos. Não há vergonha em chorar a perda de quem se ama, em sentir a dor de um incompleto que não se deve fechar.

Melancolia: Para além da caixa de recordações

Roberta, 59 anos, veio procurar uma análise por estar deprimida. Contou que sua vida estava muito vazia. Sentia-se injustiçada porque seu filho único, de 25 anos, tinha resolvido morar sozinho. Estava tão acostumada com a mesmice de seu sofrimento que se colocava à mercê da vida. Apesar de vir procurar ajuda, chegou dizendo “doutora, eu não sei se terei forças para mudar”. Era preciso levá-la à outra dimensão do tempo.

Era uma colecionadora e acumuladora do passado. Ao congelar-se nessas recordações, defendia-se do seu presente e não projetava nada para o futuro. O diagnóstico clínico foi de melancolia. Era como se, para ela, o tempo tivesse parado há vinte anos. A melancolia traz benefícios para aqueles sujeitos que não querem enfrentar a vida. O melancólico encrusta-se no passado, tal qual marisco em casco de navio.

Para Roberta, ver o crescimento do filho era se dar conta de que envelhecera. Era, ainda, confrontar-se com a quebra do seu ideal de potência. Um dia trouxe uma caixa de sapatos cheia de recordações, bilhetinhos, desenhos, primeiro dente de leite do filho etc. Ela não entendia que sua posição a mantinha cativa em uma vida que não existia. Apoiava-se nas recordações da caixa de sapato que precisariam ser ressignificadas. Não se tratava de jogá-las no lixo, mas de olhar diferente para elas.

Mencionando a decisão do filho de ir morar sozinho, falou soluçando, melancólica: “criei com o maior amor do mundo e toda a dedicação de uma mãe zelosa, e agora, doutora, saiu de casa… lembro, como se fosse hoje, das roupinhas que fiz para ele, das fraldas com bordadinhos… você não acha uma ingratidão?”. Ao trabalhar na direção da cura, é preciso que o analista não entre na encruzilhada do gozo do paciente. Por esse motivo, a analista perguntou: “Você ainda o amamenta? Será que não seria hora de deixar seu filho comer maçã raspadinha ou algo mais sólido?”

Roberta surpreendeu-se. Esperava que a analista se solidarizasse com o seu sofrimento e concordasse com a ideia de que problema era a ingratidão do filho. Ao não compactuar com a lamúria, a intervenção foi no sentido de colocar Roberta frente a sua castração. Até aquele momento, acreditava que poderia permanecer completa com a presença do filho no lugar do objeto.

Fazer do coração um depósito do passado é uma resposta para a impossibilidade de viver o presente. Uma análise pode ajudar o sujeito a sair de uma posição melancólica para uma desejante.

O trabalho analítico com Roberta foi ajudá-la a ressignificar a relação com o filho adulto. Trata-se, inclusive, de algo importante para aquelas mães que, como a paciente, veem-se desamparadas quando começam a ver que o filho está crescendo. Sentem-se, muitas vezes, injustiçadas e condenadas a uma solidão. Para elas, é importante redirecionar o que entendem como o lugar de mãe. Não se trata de alguém que somente mantém ou supre as necessidades físicas de uma criança. Mais que isso, é preciso aprender um modo diferente de relacionar-se com o filho.

Quando se diz que “filho se cria para o mundo”, não significa que mães, depois de certa idade, abram mão do filho ou percam o seu papel. Mãe vai ser sempre mãe. O importante é entender que o filho, saudável, em cada etapa da vida, busca sua posição desejante, não mais como objeto de desejo de alguém.

Ressignificada a relação entre mãe e filho, a caixinha de recordações poderá ser vista como lembranças de momentos queridos. A mãe não será prisioneira deles, tampouco o filho. Ambos estarão liberados da expectativa do outro e livres para procurar “sua turma”. Isso não será um empecilho para que mãe e filho descubram as alegrias e surpresas em novos repertórios de aventuras e conquistas para suas vidas.