Segundo turno

Na clínica psicanalítica, ocorre o mesmo que em uma democracia. Nela, se trabalha para que as pessoas deixem um mutismo alienante.

Domingo, 02 de outubro de 2022. Apesar da dificuldade de locomoção, muitos idosos estão na fila para votar, ansiosos e animados na aposta em se fazer a diferença para que regimes totalitários e silenciadores não se repitam. Talvez se sintam assim porque, como eu, por algum tempo não puderam exercer esse direito já que sofríamos uma política em que a diferença era banida, solene e violentamente. 

O voto é um privilégio desfrutado à custa de muita luta. Poder votar é agir na contramão do silêncio aparador das ideologias. A eleição é uma ocasião em que se celebra o direito de não ter sua voz condenada a um mutismo alienante. O dia da eleição é um momento em que as pessoas fazem uma aposta em que uma diferença possa advir. O preço pago pelo exercício de cada escolha é a possiblidade do sujeito buscar sua singularidade. O mesmo ocorre na clínica psicanalítica, na qual se trabalha para que as pessoas deixem um mutismo alienante.

 Marina, uma menina miúda de dez anos, tinha o corpo ligeiramente curvado e sorria de canto de boca. Nas palavras da mãe, Sonia, “não conseguia falar direito”. A mãe me procurou na esperança de que corrigisse a fala da filha. Já havia sido feita uma verdadeira peregrinação por consultórios de psicopedagogos, fonoaudiólogos, neurologistas, psiquiatras e psicólogos, mas nenhum diagnóstico ou comprometimento físico havia sido localizado. A família se envergonhava pela “língua presa” da criança e a escondia dos demais. Perguntei: Onde está presa a língua de Marina? A mãe me olhou espantada frente à pergunta, mas passou a dar detalhes. 

Marina tinha demorado bastante tempo para sair do “Tatibitabi” (a fala infantilizada que alguns pais e familiares encontram para se aproximar da fala de seus bebês). Depois de um tempo, a mãe passou a culpabilizar a filha por falar assim. Agia como uma espécie de professora de língua estrangeira, fazendo a menina repetir as palavras com as pronúncias corretas após dela. 

A primeira pergunta que fiz a Marina foi: “Onde você acha que sua língua prendeu?”. Marina não demonstrou nenhum problema “no freio” ou dificuldade de falar. Não gostava de ter que ficar repetindo as palavras que sua mãe mandava, sempre posicionando a língua entre os dentes.

Marina precisou descobrir que sua língua havia sido presa na mão de sua mãe. Precisou entender que sua palavra tinha peso e valor. Não seria esse o sentimento necessário aos cidadãos brasileiros no momento do voto? 

O estilo do analista

O estilo do analista é a caligrafia única por meio da qual ele constrói sua clínica e escreve sua vida. Em francês, as palavras “style” (estilo) e “stylo” (caneta à tinta) tem a mesma raiz. Pensar a respeito dessa proximidade me levou a ver que é como se o analista, com seu estilo, fosse escrevendo a respeito da própria existência.

Lacan queria que as pessoas fossem reconhecidas pelo estilo. Na aula do dia 21 de fevereiro de 1968, do Seminário XV (O Ato Analítico – 1967-1968), Lacan anunciou a publicação do primeiro volume da revista Scilicet e comentou o efeito causado no público da época por conta do formato da publicação: ela foi composta de artigos não assinados, cujos autores são relacionados apenas no final do volume.

Scilicet vem do latim e significa “vale dizer”, “isto é”. Lacan escolheu esse nome para explorar outro sentido, visto que em francês essa palavra é homófona à frase: “s’il le sait”, se ele o sabe. Porém, o mais comum em português é fazer uma tradução mais livre dessa expressão: “tu podes saber”, em um indicativo da aposta do analista frente ao analisante, no sentido de que esse pode saber o que lhe causa (sofrimento).

Lacan afirmou ficar surpreso com o barulho que essa proposta causou. Ele foi assertivo ao afirmar que o importante não estava em esconder os autores que participaram da revista, como alguns, na época, entenderam. Havia uma lista para apresentá-los. Falar de uma revista de psicanalistas com artigos não assinados foi a proposta de Lacan frente à formação e ao que entendia ser as consequências de uma análise terminada no tocante à relação de cada um com o nome próprio. 

Para Lacan, o ato psicanalítico do fim da análise produziria um psicanalista destituído de tal modo que ao se posicionar como analista (seja na clínica, seja como autor) dispensaria o uso do nome próprio, o seu ser. A existência do psicanalista se dá enquanto função. Ele funciona como objeto a. Assim, por um lado, há o nome do analista enquanto pessoa física, por outro, é a função que esse nome exerce. Isso porque dentro do setting analítico, o psicanalista abre mão de uma identidade prévia, podendo, na transferência, assumir várias funções, sempre visando a se manter como causa de desejo. 

Para Lacan, “o analista se autoriza de si mesmo”. A partir dessa afirmação, entendemos que o analista se autoriza da parte desconhecida de si, do estilo singular que, ao longo de sua vida, ele constrói. O estilo do analista, portanto, é tão único, tão indivisível, tão singular que vai funcionar como se fosse uma letra, uma caligrafia que, por não admitir imitação, funciona como a impressão digital do analista. 

O psicanalista é um cirurgião do Inconsciente

Em dezembro de 2017, a psicanalista Maria da Glória Vianna foi convidada pela colega Leda Guerra para a III Conversação Clínica, “A Clínica e seus atos” da Liga de Psicanálise Lacaniana de Maceió (AL). Segue um breve resumo dos principais aspectos abordados na palestra “O psicanalista como cirurgião: como operar na clínica psicanalítica”.

O título da conferência, “O psicanalista como cirurgião: como operar na clínica psicanalítica”, não foi aleatório. Foi inspirado na Conferência XXVIII, de 1916, na qual Freud fez uma relação entre o tratamento psicanalítico e a operação cirúrgica. Ele afirmou “O tratamento hipnótico procura encobrir e dissimular algo existente na vida mental; o tratamento analítico visa a expor e eliminar algo. O primeiro age como cosmético, o segundo, como cirurgia” (página 526).

Foi mostrado que o analista precisa adaptar sua prática a cada caso. Um exemplo. Pedro, um menino de 10 anos, tinha sido sorteado pela loteria das desgraças. Sofria e se fechava agressivamente. A queixa da família era a de que o menino era mal-humorado e hostil, especialmente com seu irmão mais novo. A qualquer manifestação de afeto, recrudescia em um mutismo. Outras vezes, recorria aos chutes e aos pontapés. Nas primeiras sessões, Pedro pouco falou. Quando não estava mudo, dava respostas vagas como “não sei” ou, ainda, dava de ombros. Quieto em um canto, respondia a todas as perguntas da analista monossilabicamente. Considerando que o menino tinha razões empíricas para sofrer, como demovê-lo de suas defesas?

O humor e a imitação teatral foram escolhidos. Um exemplo. A analista fez cartazes com as principais frases evasivas utilizadas pelo menino: não sei; talvez; pode ser; você quem sabe, acho que sim. O combinado era que, durante as sessões, ele não poderia dizer nenhuma daquelas frases. Quando percebia que ele responderia com um “não-sei”, o cartaz era levantado. Pedro ria e concordava em falar. A partir de certo ponto da análise, foi possível, inclusive, brincarem de inventar palavras. Esses manejos afloraram a criatividade do menino. Pedro passou a relacionar-se com as pessoas de modo mais afetivo e a interessar-se por jogos, cursos e outras atividades criativas.

Para o pai da psicanálise, o analista é como um cirurgião. Seu trabalho é extremamente delicado. Cabe a ele saber localizar qual o ponto específico está causando dor no paciente para calcular sua incisão. Sendo “cirurgião do inconsciente”, pode trabalhar na direção de levar alguém a se desvencilhar dos modos de gozo que o fazem sofrer e o impedem de caminhar em direção ao seu desejo.

Para tanto, ele precisa agir como um médico que lanceta um ferimento de um paciente sob seus cuidados.  Um analista nunca pode “fugir da raia”, não temendo cortar onde deve para exercer seu ofício, mesmo que, normalmente, a pessoa que foi cortada não goste muito disso. Sabemos que ninguém chega para um médico e diz: eu vim aqui para sofrer…!

Mantendo a metáfora de Freud, podemos dizer que, a cada momento, o psicanalista atualiza sua escuta escolhendo um bisturi, o qual possibilita uma incisão que toca o corpo. Colocado em ação no setting analítico, o bisturi constitui um ato, uma operação que visa a acordar o paciente. No caso de Pedro, o humor buscou enganchar o menino nas relações com as outras pessoas e com o saber.

Um bisturi, quando bem usado, incide diretamente no ponto de gozo do paciente. Dada sua precisão, os bisturis da clínica psicanalítica poupam sofrimento a quem procura uma análise. Na clínica, não se pode ficar girando em falso para a direção da cura, pois o risco de espanar é grande. Mal-usado, entretanto, o bisturi causa grandes estragos. Uma análise não é inócua. Ela não tampa o sintoma, mas faz com que a pessoa se vire com ele. Por esse motivo, o analista não pode sair, a torto e à direita, abrindo o inconsciente em qualquer lugar, de qualquer modo. Ao contrário: ele precisa calcular qual tratamento é o mais adequado para cada pessoa.

Seria, então, o caso, de, na formação de novos analistas, oferecer aos novatos um catálogo de bisturis? Infelizmente, nada é tão simples. Não existe um bisturi bom ou mau. Freud já afirmava que o instrumento, em si, não garante sua eficácia. Ele postulava: “Não há instrumento ou método médico que esteja garantido contra mau uso. Se um bisturi não corta, tampouco pode ser usado para curar”. (p. 536).

Para além de qualquer instrumento, o que é fundamental são as mãos que o manejam. Decorre desse postulado o reconhecimento da importância, para o analista, de ter ido, tão longe possível com sua análise pessoal. É só libertado de suas identificações que esse cirurgião do inconsciente poderá ter o desprendimento necessário para fazer o que deve ser feito e para não fazer nada, quando esse for o melhor curso de ação. Afinal, ninguém é mestre do inconsciente.

A palavra que engancha a escuta

Palavra

Joana, 24 anos, era muito chata. Não parava de falar nunca, sempre em tom monocórdio. Reclamava que não tinha amigos, mas não tinha a menor ideia do motivo. A analista podia imaginá-los. Ao longo da sessão, só Joana falava. Ela não dava espaço. Mal terminava um assunto, já emendava outro, mais outro: palavra atrás de palavra A analista tentava intervir, mas era em vão. Joana blindava-se de qualquer tentativa de aproximação do outro. O que fazer?

Em sua clínica, um psicanalista conta com o seu corpo e com suas palavras para operar na direção da cura. A pessoa adoece psiquicamente por causa de significantes e o remédio é a ressignificação desses significantes. Um primeiro passo para isso é a pessoa aprender a se ouvir. Nesse ponto, cabe citação de Miller (2010), segundo o qual “a interpretação lacaniana mostra o impossível de dizer, tornando-o sensível”.

Ouvir-se não significa um prazer solitário e narcísico de escuta da própria voz. Tampouco se trata de cantar no banheiro ou, ainda, ficar repetindo em voz alta uma lista de compras do supermercado. Ouvir o dito é outra coisa, de modo que o analista, muitas vezes, precisa se valer de vários manejos para que alguém consiga sair do prazer inócuo de falar um blá-blá-blá inconsequente. A fala vazia, muitas vezes, é um tamponamento para a lida com a angústia.

Diante do blá-blá-blá incessante de Joana, não havia intervenção que surtisse efeito. O silêncio foi então usado para possibilitar que a paciente ouvisse sua verborragia. Em uma sessão, a analista cruzou os braços, passou a olhá-la fixamente em seus olhos, não dizendo absolutamente nada. Passado algum tempo, a paciente interrompeu o relato e, espantada, disse: “Nossa, não parei de falar desde que cheguei! Sobre o quê mesmo estava falando?”. A analista, encerrando a sessão, respondeu: “Ah, você estava falando? Não notei!”.

A analista agregou, ao silêncio, a ironia e a suspensão da sessão no momento em que a paciente nem mais se dava conta do que estava falando. Afinal, parecia que falar de qualquer coisa, de qualquer maneira, era um escudo para ter de lidar com o seu sofrimento.

O resultado dessa intervenção foi a possibilidade de Joana, pela primeira vez, ter se dado conta de sua falação vazia. Ao fazer isso, pôde-se questionar-se a respeito de por que tinha de preencher os vazios de sua angústia. Abriu-se, então, um espaço para que o trabalho analítico tivesse lugar.