A formação do psicanalista lacaniano: a supervisão

Na trajetória que conduz um analisante a escolher e a exercer a função de analista, a supervisão ocupa um lugar específico e importante. Sabemos que Freud a viveu enquanto elaborava sua clínica e fundava a psicanálise. Fliess foi talvez o único com quem compartilhava, via escrita, suas elaborações, dúvidas e inquietações. Talvez, por toda correspondência que ambos trocaram, podemos considerá-lo como o primeiro supervisor.

A supervisão é um lugar em que a escuta daquele que dirige uma cura é submetida a um colega, cujo papel é o da identificação de pontos de sombra na escuta de quem está em dúvida. 

A supervisão é um momento de trabalho em que um analista compartilha um pouco da solidão de sua práxis. Entende-se que aguentar a solidão de uma escuta é necessário para quem deseja ser psicanalista. Mas, quando aquele que dirige um tratamento percebe que se precipitou em uma interpretação ou mesmo tomou para si a angústia de seu paciente, pode ser a hora de pedir uma supervisão. 

É importante destacar que a supervisão não substitui a análise pessoal: ao contrário, ela só vai operar se e somente se o sujeito estiver com o seu percurso de análise funcionando. Para sustentar uma clínica, é preciso que o analista aposte no seu desejo, o qual lhe dará suporte nas indagações constantes a respeito de sua prática. 

Em uma sessão de supervisão, o analista que pede escuta muitas vezes se preocupa em fazer um relato de forma mais fidedigna possível das sessões que dirige. No entanto, é preciso lembrar que por ser um relato de fala, será sempre parcial, equivocizante. E é justamente aí que o supervisor entra, buscando entender na trama da fala do supervisionando a lacuna de uma escuta. 

A supervisão é mais do que um requisito para a prática da psicanálise, pode funcionar como um dispositivo que gera, para além de correções de rota em um tratamento, mais inquietações, provocações e desejo por levar adiante a herança da clínica deixada por Freud e Lacan.

Saber ouvir em supervisão é tentar, junto com o praticante, abrir o relato para outras associações e possibilidades. Preocupado em desenvolver com todo rigor as implicações do inconsciente, Lacan repensa a questão da supervisão, colocando-a não como uma obrigação da formação analítica, mas, antes de tudo, como uma consequência do engajamento pessoal na psicanálise.

“A supervisão” faz parte da série “A formação do psicanalista lacaniano”. Confira outros textos publicados aqui.

A formação do psicanalista lacaniano: o estudo teórico

Estudar Lacan é um desafio para toda vida. A julgar pelos meus alunos de psicanálise, as comparações entre a escrita de Freud e de Lacan são comuns. Enquanto o primeiro é considerado claro, o segundo, obscuro, quase impossível de decifrar. 

Haverá, certamente, parágrafos extremamente inquietantes, obscuros, impenetráveis. É nesse momento que a interpretação é ultrapassada: há uma escansão. Silêncio, pausa longa, o leitor para. Com o aparecimento do indecifrável, o leitor topa com o indizível, o enigmático, o real. 

Quando este efeito se dá, é preciso suportar a leitura do texto lacaniano; ele entra fazendo furo. Assim, a leitura pode alterar a relação do leitor com o que se leu, renovando seu interesse pela psicanálise. 

Ledo engano achar que para ler Lacan seria necessário um pequeno roteiro, do tipo, qual é o assunto, o número do Seminário, o ano do texto etc. Ler um texto de Lacan segue a escuta analítica.

É preciso coragem para encarar os movimentos de leitura exigidos por uma formação teórica. O estudo dura a vida toda, revitalizando a prática analítica. Quanto mais se aproxima da prática do inconsciente, mais se enfrenta a leitura de textos que fundamentam essa práxis

Há momentos, entretanto, de pausa na compreensão do texto. Como tolerá-los? Como ler parágrafos inteiros, enigmaticamente difíceis e tentar prosseguir? Como falar sobre o que se sabe ler, mas não se sabe significar? 

Àqueles que têm dificuldade de encarar a angústia da leitura, a dificuldade da nomenclatura, a falta de apoio teórico e, sobretudo, não aguentam o confronto com o fato de não saberem, aconselho humildade com relação ao texto e, acima de tudo, que o desejo alimente todo o percurso. A leitura vai ser confrontada com o leitor, ávido de saber, de poder debater, enfim, de poder abrir o texto que, até então, era uma incógnita para ele. 

Na medida do possível, é preciso que se tome um tempo para que as palavras escritas se façam corpo para o leitor, tomem forma e se tente ouvi-las como uma interpretação, uma captura sua, do leitor enquanto sujeito. 

“O estudo teórico” faz parte da série “A formação do psicanalista lacaniano”. Confira outros textos publicados aqui.

A formação do psicanalista lacaniano: a análise pessoal

É de senso comum que a formação do psicanalista de orientação lacaniana se faz por meio da formação teórica, análise e supervisão. Embora todos os elementos do tripé sejam importantes, dá-se privilégio à análise pessoal.

É impensável alguém trabalhar na direção do tratamento de alguém sem ter passado por uma análise. Essa afirmação é algo que se repete inúmeras vezes, mas, por quê? Você já pensou sobre isso? Este texto quer relançar esta pergunta, na medida em que entende a importância primordial da análise pessoal para a prática do psicanalista.

Uma vez ouvi na faculdade que o analista tem de se analisar, porque caso não faça análise, ele pode “confundir o que é dele e o que não é!”. Seria só isso? 

O analista deve ter passado pela análise, porque é a partir dela que ele vai poder ter, digamos, saber sobre seu inconsciente, o qual lhe possibilitará operar com outro que lhe dirige a palavra. Quanto mais alguém avançou em sua análise, mais condições terá para saber ouvir aqueles que o procuram.

Se o outro não sabe o que diz, expondo seu sofrimento por meio de palavras, o analista, para poder lhe dirigir na cura, precisa saber que por meio de sua experiência de escuta poderá ouvir e operar sobre o inconsciente daquele que lhe dirige a palavra. 

O princípio fundamental que norteia uma escuta é que tenha havido uma análise em que aquele que ouve o outro foi confrontado, inexoravelmente, com o que nunca soube de si e, nesse confronto, ter validado seu desejo de analista. 

Em geral, um analista não começa um processo de análise porque quer ser analista. Como qualquer pessoa, o que o sujeito busca é se livrar de um sofrimento que o paralisa. Como tantos outros encontros na vida, pode ou não acontecer, pode ou não ser bom, pode ou não fazer diferença. Logo, será sempre um encontro marcado pelo real, pelo contingente. 

Um começo de análise marca um momento na vida de um sujeito. Cronologicamente, temos um tempo antes e um depois de ter começado a análise. Trata-se de um tratamento que coloca em xeque a relação do sujeito com a sua história e com as palavras que, até então, marcaram a sua vida. 

Ao longo do tempo, haverá sempre “um ponto” que se percebe diferente na repetição da história. Haverá sempre um afeto na ligação com a palavra que vai fazendo giros e giros. Nesse processo, é necessário coragem para se enfrentar o real. Por mais doloroso que inicialmente isso possa parecer, é só por meio desse enfrentamento que o sujeito poderá se descolar daquilo de que era escravo.

“A análise pessoal” faz parte da série “A formação do psicanalista lacaniano”. Confira outros textos publicados aqui.