Então é Natal, ou, quando Dezembro chegar

Polonia 1

É Natal, e daí? Lá se vai mais um ano!

É Natal, e daí? Mais uma vez, as pessoas repetem a mesma ladainha: preciso fazer uma lista dos presentes para os mais chegados. Preciso, também, arrolar aqueles para quem compro apenas uma lembrancinha, assim baratinha, simplesinha, só um carinho… E, puxa: lá se vai mais um ano!
Fim de ano, todos cansados, esperando o 13º salário. Esperando. Esperando que Papai Noel nos faça emagrecer, deixar de fumar, entrar na prestação para comprar um carro, trocar a moto… Temos, então, três listas: a de presentes, a de lembrancinhas e a de desejos cuja realização nos assusta.
No saber popular, dizem que sempre desejamos o que já sabemos que não vamos cumprir. Isso explicaria os adiamentos do emagrecimento, da troca de carro etc. É como se o sujeito, de uma forma tosca, sempre ficasse devendo para ele mesmo. Assim, quem sabe, ele pode, ao mesmo tempo, não ter de enfrentar o seu desejo cumprido sem ter o título desejante protestado no Serasa. Pode pedir outra sessão para o analista.
No consultório, ao chegar o mês de Dezembro: já na primeira semana do mês, é muito comum que os pacientes cheguem falando de um Natal de muita euforia. Passado um tempinho, reclama-se do ano precedente. Sempre houve um pai que não apareceu para a ceia, um dinheiro que se esperava e que não pintou etc.
O Natal fica, assim, associado a momentos em que a pessoa, de uma maneira ou de outra, “ficou pendurado na broxa sem escada”! Passa-se da euforia ao pegar fila, à loja cheia, ao estacionamento do shopping lotado. Experimenta-se uma depressão que nenhum Panetone alivia, quem diria o Prozac!
Enquanto a pessoa acredita em Papai Noel, uma das figurações do Outro, vai continuar falando do rasgar correndo o embrulho de presente e da decepção quando não encontrou o que queria. Nesses relatos, escutamos muitos soluços, frases entrecortadas, muitas vezes de certa ironia em relação a um tempo que passou e que, certamente, nunca existiu.
Continuaremos pensando que “tudo que é bom dura pouco?” Ou, este ano, cada um de nós vai dar um jeito de ser o próprio Papai Noel? Boa decisão! Cheers!

Publicado originalmente em 20 de dezembro de 2013

Existe igualdade no gozo?

Brasil 2

Maria José se questionava a respeito do que ela era, homem ou mulher, sujeito ou objeto.

Maria José, 35 anos, era uma profissional bem-sucedida. Não no amor: veio procurar uma análise por ser sempre traída e abandonada. Divorciada, mãe de uma filha adolescente, era bonita e vistosa. Não compreendia como os homens não a amavam com a intensidade que ela os amava.
No início de sua análise, foi possível perceber que, em grande parte, o motivo dos sucessivos fracassos amorosos da moça poderia ser atribuído à ambiguidade de sua posição que, em relação aos seus namorados, ora se colocava em posição masculina, ora se colocava em posição feminina. Essa ambiguidade, aliás, já estava anunciada em seu nome próprio, composto por meio da justaposição de um nome feminino (Maria) e de um masculino (José). Maria José se questionava a respeito do que ela era, homem ou mulher, sujeito ou objeto.
Tudo nela era um exagero. O uso de bijuterias, o falar alto, a compulsão sexual, o gesticular escandaloso apontava para um gozo excessivo. Seu linguajar era, predominantemente, de “baixo calão”. Não se constrangia ao falar vários palavrões e, ao referir-se aos seus parceiros, dizia que eles, comparados a ela, “eram sempre meia-bomba!”.
Era obscena nas narrativas com a qual contava as inúmeras aventuras amorosas. Descia a detalhes anatômicos que expunham particularidades escatológicas de seus parceiros, como se, de outra forma, não pudesse dar conta de seu espanto por não ter pênis.
Dizia ter nojo do ex-marido. Recriminava, com asco, seus hábitos pouco higiênicos. Reativamente, ela limpava a casa também exageradamente. “Um belo dia, não aguentei mais tanto encerar e arrumar e pedi, junto com o desquite, a minha transferência para o Rio de Janeiro”, narrou Maria José.
Nas sessões, por sua teatralidade, Maria José reproduzia as estratégias usadas para a sedução. Na posição face a face, fazia de tudo para que se confirmasse sua posição de ser objeto do olhar do outro. Para deslocá-la dessa posição, convidei-a a passar ao divã. Essa passagem permitiu-lhe colocar, na palavra, sua dependência do gozo obtido pela sedução de sua imagem estampada no olhar do outro e, consequentemente, abrir espaço para uma posterior conquista do corpo próprio.
Maria José mantinha competição ferrenha com os homens. Indignada, reclamava não entender os motivos de não poder, como eles, em uma mesma semana, transar com três pessoas diferentes. Achava uma injustiça o fato de que um homem com esse comportamento ficasse conhecido como o “pinto doce” e ela como “piranha”, e não como “a gostosa”.
Paradoxalmente, ela era capaz de esperar horas até que um parceiro lhe telefonasse. Esperava passivamente para poder namorar um pouco. Quando contava os momentos de “abandono”, recheava seu relato de choro, parecendo frágil e meiga. Havia um contraste entre sua linguagem “cafajeste” e a delicada utilizada ao falar da sua solidão.

Durante algum tempo, nem o trabalho analítico progredia, nem a situação de frustração amorosa cedia. Nos momentos nos quais ficava claro em que não haveria possibilidade de manejar a sessão para que fosse algo além de uma enumeração de amantes, eu a interrompia. Era uma tentativa de dar um basta ao seu gozo fálico, o de mera descrição das performances amorosas, como se ela fosse um Don Juan de saias.
O tratamento foi girando em falso, pois não havia muita variação em pornografia… O que fazer para deslocar Maria José? Optei por um duplo manejo: aumentar a frequência das sessões, visando a empanturrá-la com os seus próprios relatos monótonos, e diminuir a sua duração.
A oportunidade de deslocá-la de sua posição surgiu quando, ao narrar uma conversa com suas amigas, Maria José afirmou ter dito o seguinte: “pois é Isabel, porque nós não arranjamos homens como nós…!”.
Aparentemente, ela não percebeu a ambiguidade que sua frase continha: 1) Ênfase no “como nós, Maria José e Isabel, que somos legais, bonitas, simpáticas”; 2) Ênfase no “homens”, “como nós, Maria José e Isabel, que também somos homens”.
Ao ouvir esse enunciado, decidi equivocar. Sem entrar em detalhes, imediatamente suspendi a sessão dizendo: “Tchau, José!”. Seu susto foi tão grande que ela não conseguia achar onde havia deixado a bolsa…
Isso fez efeito! Suas narrativas deixaram de ser feitas ora do lugar de “machão” ora do de “princesinha”. Saímos do campo dos lugares genéricos. Fundou-se, então, espaço para uma mulher madura, sofrida, solitária, com muita vontade de examinar sua vida em busca de matéria-prima para inventar sua singularidade.

Publicado originalmente em 22 de novembro de 2013

Não tem cura

Brasil 3

Retroceder para a sociedade de controle pode oferecer conforto, mas não felicidade.

O que a psicanálise tem a dizer a respeito do reacionarismo que, em pleno século XXI, se fez presente na Comissão de Direitos Humanos da Câmara? Tem causado comoção que tenha sido aprovado um projeto apelidado como a lei da “Cura gay”. Por que as pessoas têm protestado?
O texto aprovado (a passar ainda por outras duas comissões da Casa: Seguridade Social e Constituição e Justiça antes de seguir para o plenário da Câmara), permite que psicólogos proponham tratamento da homossexualidade, derrubando, assim, normas do Conselho Federal de Psicologia, para quem ser gay não é doença.
E para os psicanalistas, trata-se de doença? Retomemos a lição de Freud. Tendo sido procurado por uma senhora, preocupada com a orientação sexual de seu filho, redigiu uma carta, em 19 de abril de 1935, na qual deixava claro que esta condição em nada desabonava nem seu caráter nem sua saúde mental. Deixando bem claro que não concordava com a apreensão – moralista – da mãe preocupada, ele afirmou: “Não tenho dúvidas que a homossexualidade não representa uma vantagem, no entanto, também não existem motivos para se envergonhar dela, já que isso não supõe vício nem degradação alguma. Não pode ser qualificada como uma doença e nós a consideramos como uma variante da função sexual”.
Dirigindo-se a esta mãe, Freud foi claro ao dizer que, mesmo quando alguém quer, raramente uma análise se presta a “corrigir” a orientação sexual. Esclareceu, ainda, para que serviria o tratamento de um homossexual caso ele viesse à análise: “A análise pode fazer outra coisa pelo seu filho. Se ele estiver experimentando descontentamento por causa de milhares de conflitos e inibição em relação à sua vida social a análise poderá lhe proporcionar tranquilidade, paz psíquica e plena eficiência, independentemente de continuar sendo homossexual ou de mudar sua condição”.
Transcorridos quase 80 anos de sua publicação, porque a lição de Freud ainda não foi aprendida? Cito dois motivos. O primeiro é que as pessoas se enganam pensando que retroceder para velhos modelos vai proporcionar sossego para sua angústia. O segundo é que, para que a confusão amorosa se instale para o ser humano, não se trata desta ou daquela orientação sexual. Basta que o erotismo surja. Afinal, para o desejo sexual, como já cantou Luiz Gonzaga, em “O Xote das meninas”, “não tem um só remédio em toda medicina”.

Publicado originalmente em 21 de junho de 2013.

Os filhos do carnaval

Brasil 4

“Gravidez inesperada” não precisa ser sinônimo de “filho indesejado”. Toda gravidez é uma surpresa, mesmo dentro do mais detalhado planejamento.

“… São três dias de folia e brincadeira. Você pra lá e eu pra cá. Até quarta feira… lá, lá lá…”. Como na letra da marchinha, nesses dias de regime de exceção, as regras que formam um casal podem passar a não valer. Formam-se pares de ocasião e, às vezes, não se medem as consequências. Todos os anos se repete a mesma história, podia até ser enredo de escola de samba!
Minha prática em hospital permite acompanhar a novela. Passados alguns meses, eles começam a receber moças que se queixam de muito enjoo, tonturas e sono: “Dra, sinto muito sono, parece que preciso dormir um ano…”. São pedidos os exames. Muitas vezes, o médico até já sabe o que vai dar, mas não se pode comunicar nada sem provas objetivas. Após 10 dias, a mãe, digo, a moça, volta com cara de espanto e, mal ouve o resultado do exame, já tem que marcar um pré-natal!
Desconcertada, ela comenta aos amigos: “Já que eu não estava tomando remédio, peguei barriga no Carnaval!”. “Se pega” uma gravidez, como se pega uma gripe, um ônibus… Simples assim. Depois de quarenta semanas, recolhem os frutos dos encontros desencontrados como crianças marcadas pelo anonimato, pelo desconhecimento.
Crianças de novembro, alguns filhos do Carnaval, podem ser considerados “filhos de ninguém”. Sentem-se excluídos, colocados à margem do comercial de margarina. Reclamam por serem estigmatizados: filhos de “pai desconhecido” e de mãe avoada, cabeça de vento. Precisa ser assim? Será que toda criança que é fruto de um “acidente” é, de fato, indesejada? Como a psicanálise poderia agir nesses casos?
Na Clínica do Real, poderíamos, por exemplo, mostrar que toda mulher pode adotar simbolicamente o filho que gerou, tenha sido a gestação planejada ou não. Poderíamos levá-la a ver que, mesmo dentro do planejamento mais detalhado, uma gravidez é sempre uma surpresa.
Para os filhos do carnaval, a ajuda seria ainda mais simples: uma pergunta. Se é mesmo verdade que sua mãe nunca lhe desejou e que você não passou de um acidente em sua vida, por que você não foi abortado? Que caia a fantasia: quando se trata dos humanos, ou nos damos conta que somos todos adotados ou nos condenamos a uma maldita bastardia.

Publicado originalmente em 22 de março de 2013.

Pelos cachos de Félix!

Felix

Caso solicitasse uma análise, Félix seria um desafio ao analista

O personagem Félix Khoury, interpretado por Matheus Solano, na novela Amor à vida, de Walcyr Carrasco, está dando o que falar. Seu bordão entrou no cotidiano. Agora, ninguém se intimida ao dizer, por exemplo, que roubou os presentes dos Reis Magos ou que cobrou ingresso na Via Sacra!
Por que tamanho sucesso? Pelas contas do rosário: o que tem de especial no modo como esse personagem usa a linguagem? Félix cria novas expressões para queixar-se, em geral, a partir do contexto religioso, ao invés de papagaiar expressões já cristalizadas. Eu salguei a Santa Ceia, só pode! – disse Félix, reclamando da viagem com a família para Machu Pichu. Esse é apenas um exemplo de como o personagem extravasa suas frustrações, provocando riso nos telespectadores.
Filho de um rico médico, Félix foi preterido na sucessão familiar e expulso da direção do Hospital por roubo. Solano foi brilhante na composição do personagem. Não montou uma caricatura de “bicha” para incorporar o pretenso injustiçado. Ele se destaca pelo modo como dá vida ao texto de Carrasco. A cada capítulo, os telespectadores esperam para saber de que modo destilará seu veneno.
Isso gerou tamanha comoção que, nas redes sociais, tem circulado a série Félix bicha má com a coletânea dos melhores momentos. Olhando mais de perto o discurso de Félix, podemos ver que ele se monta por meio das seguintes referências:

a) Religiosas:
1.Devo ter sambado no Santo Sepulcro!
2.Será que piquei salsinha na tábua dos Dez Mandamentos?
3.Eu não coloque defeito em ninguém, foi Deus quem colocou. Eu só comento.
4.Onde foi que ganhei essa fama de coração de ouro? Ou será que estou em Israel e fui confundido com o Muro das Lamentações?

b) Corporais:
1.Pelas rugas de Matusalém!
2.Pelos cachos de Sansão!
3.Genética não tem nada a ver com cabelo tingido!

c) Financeiras:
1.Nasci para o luxo!
2.Eu não tenho vocação para a pobreza.
3.Tenho motivos suficientes pra acreditar que eu lavei cueca na manjedoura

d) À feiura feminina:
1.Pior é a mulher quando é pobre, gorda e feia. Aí é uma lastima!
2.A lei da gravidade é um crime contra a mulher!
3.De bolsa Louis Vuitton no ponto de ônibus? Você quer enganar quem criatura?

e) Autodepreciativas:
1.Tem dias que eu acordo e pareço um chiclete mascado!
2.Dormir pouco me deixa com a cara do travesseiro.
3.Minha pele borbulha com comida gordurosa.

f) Autoelogiosas:
1.Já me conformei, nem todo mundo nasce genial como eu.
2.Não tenho inimigos, só fãs revoltados.
3.Vou trocar minha aura por um esplendor de purpurina.

g) Sexuais:
1.O desejo é como uma onda: vem e vai.
2.Eu abri uma frestinha na porta do armário, dei uma escapadinha para fora, mas eu volto. Entro dentro do armário, tranco a porta com cadeado. Eu juro.
3.Qualquer mulher ficaria molhadinha só de olhar para o abdômen dele.

h) Aos jargões dos homossexuais:
1.Bofe bom é bofe burro!
2.Homem pra mim tem que ser igual a café: forte, quente e gostoso.
3.Mamãe não tem um coração, tem um mousse de morango no lugar, de tão doce que é!

Há um elemento em comum entre todas essas expressões idiomáticas: elas dizem respeito a algo que a pessoa fez, involuntariamente, e se esqueceu. Só se dá conta do que está havendo quando sofre um revide pelo qual não se vê minimamente responsável. Essa posição inconsequente é sintetizada, ainda por cima, em seu nome de felicidade: Félix. No personagem, isso é motivo da graça que seduz.

Apesar de engraçado, o humor de Félix tem consequências. Ao se mostrar íntimo de suas criações verbais, que não deixam de exigir erudição, Félix se desresponsabiliza dos acontecimentos criados por ele. Ele nunca foi responsável por nada. Se algo de mal lhe aconteceu, só pode ter sido culpa do Papi Soberano, por exemplo.

Acreditamos que ele tenta, habilmente, seduzir aquele que o ouve. Caso solicitasse uma análise, Félix seria um desafio ao analista. Ele correria o risco de se imobilizar pelo canto da sereia. Não é o caso. Seu analista teria de confrontá-lo com a consequência de seus atos, talvez, encarnando uma versão do ditado Se ele vem com o milho, a gente volta com a pipoca. E, quer saber? Nem vem de garfo que hoje é dia de sopa!

Se ele fizesse uma análise, seguramente sua vida não seria mais uma piada, mas não estaria proibida a outro tipo de felicidade.

Publicado originalmente em 01 de novembro de 2013.

Precisa assinar embaixo?

Franca 2

Ao ser caracterizada, desde criança, como alguém “abatido”, uma paciente de 40 anos percebeu que viveu para endossar esse adjetivo.

Um insulto recebido na infância pode dar o tom da vida de uma pessoa enquanto ela deixa que isso aconteça. Foi o que ocorreu com Paula, 40 anos, divorciada e mãe de dois filhos. Era do tipo que cruzava as pernas sedutoramente para chorar. Procurou análise com uma queixa de se sentir “sem vida” mesmo sendo uma advogada bem-sucedida. Relatava estar com pressão baixa, com a pele gelada e se sentindo muito cansada. O clínico havia atestado ótima saúde, dizendo: “o que esta moça tem é da cabeça, não do corpo”.
A mãe havia lhe dito que, durante a gestação da filha, havia temido que essa nascesse com problema. O casal teve a menina (filha única) em idade avançada. Em uma das sessões, Paula assinou embaixo dos temores de sua mãe, dizendo: “Posso não ter nascido débil mental, mas não escapei de ficar amarela”. Certa manhã, chegou ao consultório dizendo-se muito perturbada. Narrou que estava angustiada. Pela presença desse afeto percebeu que um comentário de sua empregada havia lhe tocado: “a senhora está com uma aparência de cansada, um pouco abatida”. Na sessão, uma lembrança de infância ocorreu-lhe. Quando menina, havia sido forçada, por sua mãe, a tomar muito óleo de fígado de bacalhau. A mãe tinha como ambição que sua filha fosse corada. Dizia que, tomando tal óleo, Paula melhoraria e se tornaria uma “menina corada como as outras crianças. Deixaria de ser abatida”.
Vemos, portanto, que nos primeiros minutos de sessão, a palavra “abatida” apareceu duas vezes. A primeira, no comentário da empregada, a segunda, na insistência da mãe. A partir de sua perturbação conclui-se que, na infância, Paula foi insultada por esse significante e, a partir de então, nunca havia deixado de dar consistência a ele. De novo, assinou embaixo. Para ela, a palavra “abatida” parecia ser a marca de sua insuficiência aos olhos dos outros. A analista guardou silêncio. A palavra “abatida” apareceu pela terceira vez. Paula relatou que, aos seis ou sete anos, acompanhou sua mãe em um açougue. Naquele tempo, era comum que os açougues vendessem aves mortas para que fossem preparadas mais frescas. Paula resolveu ler o letreiro do estabelecimento. Nele, estava escrito: “Carnes de primeira e aves abatidas”.
Ignorando o significado da expressão “aves abatidas”, tentou inferir o significado da expressão a partir da palavra “abatida”. Então, apontando as aves mortas expostas sobre uma bancada, perguntou à sua mãe se aquelas galinhas, assim como ela, sofriam do fígado. Que triste e desvitalizante identificação!
A paciente lembrou que sua mãe tinha rido muito e havia lhe explicado que a expressão “aves abatidas” era utilizada para designar as “aves mortas”. Narrou-me que, assim que compreendeu a explicação de sua mãe, havia exclamado, cheia de júbilo por ter entendido que, nesse caso, “abatidas” significava “sacrificada”: “Sim, abatida!”. A partir desse fluxo associativo, que poderia ter progredido de modo infinito, como gerar trabalho? Como livrar Paula dessa identificação mortificante, bastante relacionada com os sintomas inicialmente relatados? No caso, “ave abatida”, ao fazer parte do idioleto de Paula, apontava para sua posição de gozo, a qual havia gerado os sintomas que a fizeram procurar inicialmente o médico. O corpo doente de Paula dava sempre a impressão de que ele era o fardo que carregava por ser “amarela”, “abatida”. Em outras palavras, sua doença era uma homenagem a sua mãe.
A abordagem escolhida por mim foi a leitura literal do inconsciente. Sem nada explicar ou acrescentar, suspendi a sessão, limitando-me à seguinte pontuação: “Há muito tempo”. Essa pontuação teve finalidade de despertar o analisante, obtendo o efeito de corte, de suspensão e surpresa. Ao introduzir uma marca temporal, “há muito tempo”, foi possível escapar de uma circularidade que dava consistência ao seu sintoma. Assim, convoquei-a a se dar conta de que morta, amarela, gelada, foi como sempre esteve.
O significante “abatida” insultou Paula, fixando-a em sua posição de morta, funcionando como uma hipnose, um feitiço. Presa na teia do insulto ficava paralisada, a ponto de não reagir, pois não o detectava. Como Jorge Forbes nos alertou que costuma acontecer, Paula pensava que o “insulto lhe caia bem”. Seu caso ensina que, para gerar trabalho e deslocar o gozo de uma pessoa, o analista precisa extirpar o insulto que, fixando-a a uma identificação mortífera, a impede de viver de modo mais feliz, criativo e responsável.

Publicado originalmente em 18 de outubro de 2013.

Qual língua se fala por aqui?

Franca 3

Os equívocos de uma psicanalista carioca nas ruas de São Paulo

A língua falada em São Paulo ultrapassa qualquer rivalidade entre os “manos” locais e os “broder” do Rio de Janeiro. Não é necessário estabelecer a linha de Tordesilhas para vermos que, definitivamente, São Paulo e Rio são duas cidades separadas pelo mesmo idioma. Não vou apregoar o português falado em uma ou em outra, mas peço aos leitores que, depois de saber a minha história, avaliem se é necessário, comprar um dicionário após os 50 minutos na ponte aérea.
Início de 1990, calor insuportável em São Paulo. Tentei arranjar uma vaga para estacionar o carro e, para minha surpresa, havia uma “esperando por mim”. Lá fui eu manobrando muito bem o carro, de fazer inveja a qualquer instrutor de autoescola! Havia um pequeno grupo de homens, que me olhavam atentamente (mais por estupefação do que por outro motivo). Assim que estacionei, um deles, muito solícito, aproximou-se de mim e perguntou: “Vai um cartão da Zona”? Frente ao meu espanto e indignação, o senhor bradava que eu só poderia ficar ali se eu comprasse o tal cartão. Com a boca seca de tanta raiva, respondi em tom duro que se alguém ali tinha algum cartão parecido com o mencionado, devia seguramente “ser a digníssima senhora sua mãe e a sua irmã”! Ele continuava sem entender minha reação e ainda disse em tom profético: “Depois não diga que eu não avisei”! O tal cartão da zona azul só chegou ao Rio de Janeiro dois anos depois. Naquela época, só contávamos com os “flanelinhas”, que nos ajudavam arranjar uma vaga e depois sumiam.
Quando cheguei à terra da garoa, ainda não existia o GPS. Então, ao sair de casa, contava um tempo a mais para me perder e depois me localizar. Na época, usávamos o Guia de Ruas, aquele livro que mais se assemelhava a um “Vade-mécum” de medicação de tarja preta. Todos tinham o Guia, logo, não poderia ficar sem um também. E assim ia tentando me orientar nessa cidade querida e caótica. Um dia, precisei ir ao Itaim. Até aí nada demais. Acontece que a pessoa no telefone frisou que o tal endereço ficava no “Itaim Bibi”. Já me sentindo apta a achar qualquer lugar no meu livrão, saí cheia de curiosidade a procurar o bairro. Então, como se diz no interior paulista, “montei no porco”! Ao conferir no Guia, fiquei muito impressionada com as expressões que se referiam ao bairro: “Chácara do Itaim”! Pensei: “deve ser um lugar muito bonito, com plantas e gramados”. Repetia o mantra à exaustão para ver se não errava: Itaim Bibi. Ledo engano! Já estava tão exausta que resolvi pedir ajuda. Abro a janela do carro e pergunto a um grupo: “Será que alguém pode me informar se já cheguei ao Itaim Fonfom!?”.
Perplexa, sem entender as gargalhadas que recebi como resposta, pensei que os equívocos da psicanálise e os mal-entendidos entre cariocas e paulistas se concretizavam na psicopatologia da minha vida cotidiana em São Paulo! Foi, então, que senti na pele que ainda não pertencia à mesma paróquia, como nos diz Lacan referindo-se às “tiradas espirituosas da língua”. Só assim pude, finalmente, conciliar-me com ela. Sacô meu bróder, digo, meu mano?

Publicado originalmente em 08 de fevereiro de 2013.