Em dezembro de 2017, a psicanalista Maria da Glória Vianna foi convidada pela colega Leda Guerra para a III Conversação Clínica, “A Clínica e seus atos” da Liga de Psicanálise Lacaniana de Maceió (AL). Segue um breve resumo dos principais aspectos abordados na palestra “O psicanalista como cirurgião: como operar na clínica psicanalítica”.
O título da conferência, “O psicanalista como cirurgião: como operar na clínica psicanalítica”, não foi aleatório. Foi inspirado na Conferência XXVIII, de 1916, na qual Freud fez uma relação entre o tratamento psicanalítico e a operação cirúrgica. Ele afirmou “O tratamento hipnótico procura encobrir e dissimular algo existente na vida mental; o tratamento analítico visa a expor e eliminar algo. O primeiro age como cosmético, o segundo, como cirurgia” (página 526).
Foi mostrado que o analista precisa adaptar sua prática a cada caso. Um exemplo. Pedro, um menino de 10 anos, tinha sido sorteado pela loteria das desgraças. Sofria e se fechava agressivamente. A queixa da família era a de que o menino era mal-humorado e hostil, especialmente com seu irmão mais novo. A qualquer manifestação de afeto, recrudescia em um mutismo. Outras vezes, recorria aos chutes e aos pontapés. Nas primeiras sessões, Pedro pouco falou. Quando não estava mudo, dava respostas vagas como “não sei” ou, ainda, dava de ombros. Quieto em um canto, respondia a todas as perguntas da analista monossilabicamente. Considerando que o menino tinha razões empíricas para sofrer, como demovê-lo de suas defesas?
O humor e a imitação teatral foram escolhidos. Um exemplo. A analista fez cartazes com as principais frases evasivas utilizadas pelo menino: não sei; talvez; pode ser; você quem sabe, acho que sim. O combinado era que, durante as sessões, ele não poderia dizer nenhuma daquelas frases. Quando percebia que ele responderia com um “não-sei”, o cartaz era levantado. Pedro ria e concordava em falar. A partir de certo ponto da análise, foi possível, inclusive, brincarem de inventar palavras. Esses manejos afloraram a criatividade do menino. Pedro passou a relacionar-se com as pessoas de modo mais afetivo e a interessar-se por jogos, cursos e outras atividades criativas.
Para o pai da psicanálise, o analista é como um cirurgião. Seu trabalho é extremamente delicado. Cabe a ele saber localizar qual o ponto específico está causando dor no paciente para calcular sua incisão. Sendo “cirurgião do inconsciente”, pode trabalhar na direção de levar alguém a se desvencilhar dos modos de gozo que o fazem sofrer e o impedem de caminhar em direção ao seu desejo.
Para tanto, ele precisa agir como um médico que lanceta um ferimento de um paciente sob seus cuidados. Um analista nunca pode “fugir da raia”, não temendo cortar onde deve para exercer seu ofício, mesmo que, normalmente, a pessoa que foi cortada não goste muito disso. Sabemos que ninguém chega para um médico e diz: eu vim aqui para sofrer…!
Mantendo a metáfora de Freud, podemos dizer que, a cada momento, o psicanalista atualiza sua escuta escolhendo um bisturi, o qual possibilita uma incisão que toca o corpo. Colocado em ação no setting analítico, o bisturi constitui um ato, uma operação que visa a acordar o paciente. No caso de Pedro, o humor buscou enganchar o menino nas relações com as outras pessoas e com o saber.
Um bisturi, quando bem usado, incide diretamente no ponto de gozo do paciente. Dada sua precisão, os bisturis da clínica psicanalítica poupam sofrimento a quem procura uma análise. Na clínica, não se pode ficar girando em falso para a direção da cura, pois o risco de espanar é grande. Mal-usado, entretanto, o bisturi causa grandes estragos. Uma análise não é inócua. Ela não tampa o sintoma, mas faz com que a pessoa se vire com ele. Por esse motivo, o analista não pode sair, a torto e à direita, abrindo o inconsciente em qualquer lugar, de qualquer modo. Ao contrário: ele precisa calcular qual tratamento é o mais adequado para cada pessoa.
Seria, então, o caso, de, na formação de novos analistas, oferecer aos novatos um catálogo de bisturis? Infelizmente, nada é tão simples. Não existe um bisturi bom ou mau. Freud já afirmava que o instrumento, em si, não garante sua eficácia. Ele postulava: “Não há instrumento ou método médico que esteja garantido contra mau uso. Se um bisturi não corta, tampouco pode ser usado para curar”. (p. 536).
Para além de qualquer instrumento, o que é fundamental são as mãos que o manejam. Decorre desse postulado o reconhecimento da importância, para o analista, de ter ido, tão longe possível com sua análise pessoal. É só libertado de suas identificações que esse cirurgião do inconsciente poderá ter o desprendimento necessário para fazer o que deve ser feito e para não fazer nada, quando esse for o melhor curso de ação. Afinal, ninguém é mestre do inconsciente.