Em 19 de novembro de 2018, a psicanalista Maria da Glória Vianna integrou a mesa “Saúde Mental no Ensino Superior” na II Semana de Arquitetura e Urbanismo no Instituto Federal de São Paulo. Compuseram a mesa também Fernanda Maurer Balthazar, Edmundo Fernandes Souza Filho e Allan Saffiotti. Segue a fala de Glória Vianna “O difícil percurso na Universidade”.
Esta fala, a partir do ponto de vista da psicanálise de orientação lacaniana, propôs, em primeiro lugar, discutir os impactos emocionais que a entrada na universidade pode acarretar na vida do estudante e sua saúde, se possível, mostrar que a melhor saída frente à angústia da escolha e a depressão é sustentar as opções – sejam lá quais forem – e se responsabilizar pelas consequências das próprias escolhas.
Isso implica, inclusive, a possibilidade de mudança de curso, reprovação deliberada em disciplinas e, porque não, um esforço ainda maior para bancar um percurso de excelência. Muitas opções são possíveis na vida. Na amizade, no amor, no grupo de trabalho, são necessárias escolhas mais ou menos compatíveis com o desejo de quem as faz. Podemos manter um namoro, casamento ou não; prosseguir em uma sociedade ou não; terminar uma graduação ou não. Em qualquer dessas escolhas haverá perda. Para fazer alguma coisa, estaremos deixando de fazer outra. Nunca conseguiremos ganhar tudo. Daí a necessidade de estar confortável com a opção que fez, mesmo que desagrade aos outros.
Sigmund Freud, conhecido como o pai da psicanálise, explicou que para todo ser humano existem coisas que são difíceis de serem elaboradas e viram conteúdos que ficam recalcados, escondidos no inconsciente. Utilizando o vocabulário da construção civil, poderíamos dizer que quem sofre de uma doença psíquica passou por um processo de fundação que não foi bem feito. É como se, durante o processo de construção de sua subjetividade, a massa de concreto não tivesse sido bem trabalhada, levando o concreto a “dar bolha”.
Esse concreto poroso pode ficar assim por anos na vida da pessoa, sobretudo quando as circunstâncias ou exigências da vida não o confrontaram com grandes adversidades ou conflitos. A pessoa parece confortável na própria pele, mas é uma aparência externa, de quem não olha mais de perto a qualidade estrutural da construção. Assim, um incidente que para outra pessoa pareceria pequeno, para essa pessoa poderá desencadear um quadro mais grave, como, por exemplo, forte angústia ou a famosa depressão.
Freud usou a palavra construção ao referir-se às construções que uma pessoa faz em análise. Ao longo do seu tratamento, o sujeito vai alicerçando, colocando um pilar, uma viga de cada vez, separando quais seriam os materiais básicos; aqueles que quer usar e os que não… Se o trabalho analítica dá certo, justamente por ficar melhor alicerçada, a pessoa se torna mais tolerante às frustações, aos revezes e às surpresas da vida.
Enquanto isso não acontece, a fragilidade da construção psíquica nos dá sinais. Na psicanálise os chamamos de sintomas. Os sintomas são como o mofo que aparece em uma parede. A presença do mofo indica que algo não está bem. No entanto, ficar olhando para o mofo sem atuar sobre ele não resolve problema algum. Para resolvê-lo é preciso um trabalho muito maior de abertura da parede para que se saiba onde está o vazamento.
Por isso é sempre muito delicado apontar dedos para uma suposta causa da depressão. Podemos até encontrar fatores externos que são desencadeadores do sofrimento psíquico, mas um quadro depressivo não se instala sem que haja, por parte do sujeito, algum tipo de predisposição, por exemplo, alguma fundação em que o concreto ficou poroso. Lembro aqui o triste episódio das inúmeras trincas que ocasionaram o abandono do edifício, no Rio de Janeiro, em cuja construção foram encontradas conchas do mar no meio do concreto.
O que eu estou fazendo aqui? Valeu a pena tanto esforço? Venci depois de ter enfrentado quase 300 competidores. Por que não estou gostando tanto? É um processo saudável de avaliar e ressignificar suas escolhas. Em si, esse processo, cujo nome é angústia, não causa problema algum. A problemática se agrava quando a pessoa não consegue encontrar um rumo para sua angústia, fazendo dela a mola para a criatividade. Aí nasce a depressão.
Para Freud (1930), o sofrimento é condição existencial do sujeito, pois o acompanha desde seu nascimento perdurando por toda sua história, apresentando diferenças substanciais em cada fase do desenvolvimento. Uma pessoa saudável, portanto, é aquela que consegue tolerar a parcela de sofrimento necessária para ter prazer na vida. Para ter prazer em fazer manobras radicais no skate, por exemplo, o jovem tem que suportar o sofrimento do iniciante que, cai, tem dores musculares, escuta zombaria dos colegas etc.
O problema é que, quando a estrutura é mais frágil, a pessoa tende a se pautar pelo princípio do prazer, ou seja, ela se afasta de tudo que causa esse “bom sofrimento”. Então, ao invés de treinar skate, ela torce contra. Vai até a pista e fica trolando e rogando praga contra quem teve coragem de fazer o que ela não consegue.
Uma pesquisa realizada, em 2016, na Universidade de Indiana, apontou que o curso de arquitetura é o que mais demanda tempo de estudo: 2,5 horas por semana a mais do que qualquer outro curso. Outra matéria, agora em solo brasileiro, perguntou o porquê de a universidade “estar deixando os estudantes doentes”. Dentre os motivos elencados pelas pesquisas, destacam-se a falta de estrutura dos cursos, a pressão dos professores etc. Seriam essas pesquisas uma verdade absoluta? O que ganhamos ao acreditar nelas?
A psicanálise não trabalha com raciocínio causalista. O que é verdade para uma pessoa agora, não é para seu vizinho. Então, se alguém fica muito estressado em um emprego que exige muito horário, prazos e concentração, outro pode ter uma crise de angústia com a proximidade das férias. E agora, o que vou fazer com todo esse tempo livre, ele pensa. Estava tudo tão arrumadinho….
Resta saber por que tantos acreditam tão fácil no raciocínio causalista. Para a psicanálise, quando a gente toma como verdade um significante qualquer, por exemplo, “a Universidade é a causa de uma doença mental”, paradoxalmente você se tranquiliza. Não precisa mais pensar porque está se sentindo tão insatisfeito. Continuará deprimido, mas, pelo menos, ficará menos angustiado, iludido que entendeu qual é a causa. O problema é que a pessoa paga caro por isso. Paga com seu corpo. O significante “estou deprimido por causa da Universidade” pode vir a parasitar a vida do estudante, como se fosse um chiclete difícil de ser desgrudado.
A psicanálise vai na contramão disso. Para nós, psicanalistas, nenhuma palavra sela um destino. Por exemplo, existe uma diferença entre alguém chamar você de irresponsável e você assinar embaixo ou não. São as escolhas e atitudes que a pessoa faz que mostrará se ela quis ocupar ou não esse lugar de responsável, irresponsável, criativo etc.
Após a saída do ensino médio, a felicidade e a euforia da entrada na universidade, no curso escolhido, são marcadas por um evento conhecido como “trote”. A cada ano, os “veteranos” se especializam mais nas formas de recebimento, de dar boas-vindas, muitas vezes de formas inusitadas, aos calouros. O trote marca um rito de passagem: de uma formação genérica e obrigatória, oferecida no nível médio para a formação universitária, específica, escolhida pela pessoa.
A solidão da sua escolha vai acompanhar o estudante o tempo todo. Está nos pequenos detalhes, como por exemplo: Quase nenhum professor faz chamada em voz alta; muitos nem sabem o nome dos alunos; as disciplinas podem não manter os mesmos colegas, não conseguindo manter uma constância nos grupos de trabalho; os temas para os trabalhos finais podem ser livres, jogando o aluno de novo na angústia da escolha.
Na universidade, o aluno é convocado a estudar sozinho, aprender a visitar a biblioteca, aprofundar-se nas leituras que tiver interesse e avaliar como importantes para sua carreira. O “estudar para a prova” lentamente perde consistência, até porque a avaliação passa a ser feita de diferentes formas, muitas vezes exigindo do aluno a criação de projetos, a discussão de textos teóricos.
Essas mudanças convocam a singularidade e, consequentemente, fazem com que as fundações para a construção as respeito das quais já falamos sejam exigidas ao máximo.
Caso a pessoa tenha entrado na Universidade de maneira não burocrática, logo vai perceber que esse ingresso custará a construção de uma outra relação com o saber, mais participativa e ativa. Na linguagem da psicanálise, podemos dizer que a entrada na Universidade exige uma entrada em outro tipo de laço social, uma estrutura de significação diferente, na qual o saber passa a ser o centro. Por natureza, essa transformação do laço será traumática.
O caráter de traumático desse laço relaciona-se com o fato de que, para produzir conhecimento de modo ativo, o sujeito precisa se expor, falhar, ser criticado e, consequentemente, sempre se frustrar nas suas expectativas de reconhecimento. Um aluno gasta horas para fazer um trabalho que, para ele ficou maravilhoso e, para o professor, ficou aquém. Vai demorar bastante tempo, inclusive, para o aluno entender porque estava aquém. Vai demorar mais tempo, ainda, para entender que para ele pode continuar estando muito bom, independente da avaliação do outro.
Por esse motivo, aqueles alunos cuja estruturação inicial já era mais frágil, ao serem confrontados com esse instante traumático, retrocederão para a margem desse enlaçamento. Diante de tantas mudanças e desafios, isolam-se. Oscilam entre irem à luta para buscar os seus objetivos e recuarem frente às “topadas” que dão no meio do percurso. É como se a pessoa fosse um apaixonado em dúvida entre duas sedutoras: a depressão e o esforço para sustentar suas escolhas.
Os impactos emocionais que a entrada na universidade acarreta são grandes, mas fazem parte do crescimento de um jovem que opta por uma carreira. É preciso que possam se defrontar com as inúmeras e variadas insatisfações que vão aparecer. É preciso, ainda, que tenham que enfrentar perguntas tais como “será que é isso mesmo que quero fazer?”; “se eu parar, será que meus pais vão ficar tristes?” “Antes, era tudo que queria, o que, agora, me faz pensar que não quero continuar?”.
Não existe o paraíso terrestre. Segundo Freud (1930), o ser humano está condenado à cultura, consequentemente deverá, todos os dias, equacionar as suas vontades e as exigências da sociedade. Essa conta nunca fecha muito bem. Se eu não faço meus trabalhos e vou para a praia, vou ter problemas financeiros. Se não vou para a praia e só trabalho, posso acabar com uma úlcera. Não existe impunidade. Logo, o segredo da vida é achar a economia que, para cada um de nós, nos deixa menos infelizes.
Nesses momentos, muitas vezes fraquejamos. Abrimos mão do que queremos em favor das supostas exigências da cultura. Para que isso não aconteça, é necessário um desejo persistente, decidido. A despeito de eu não conseguir nomear o meu conflito, eu encontrarei uma saída para ele, na medida em que puder insistir em uma via que se relacione com a marca da minha singularidade. Isso implica poder ser esquisito, bizarro ou sem noção aos olhos dos outros.
Para quem não gosta de estudar, a pessoa que passa doze horas estudando é muito bizarra. Para quem valoriza muito uma universidade federal, quem abandona o curso de arquitetura por ter detestado essa escolha é completamente sem noção. Mas ambos os caminhos são válidos caso forem a vacina contra a depressão. A pessoa precisa estar consciente que em ambos haverá perda.
A vida é aguentar e peitar a insatisfação. A psicanálise vai focalizar que é justamente a insatisfação que pode levar o homem à criação. Isso ocorre na medida em que nos tira da zona de conforto e nos leva a produzir, mudar, construir. Logo, as frustrações precisam ser encaradas com naturalidade. Não existe ninguém premiado pela vida. Só na fantasia da pessoa que a vida do outro é melhor que a dele. Ninguém diz: nossa, minha infância foi maravilhosa. E, se disser, é mentira. Quero defender uma subversão frente à acomodação, à resignação. Só explicar os sintomas não basta.
A psicanálise nos ajuda a nos assenhorar de nossa vida. Ela nos coloca uma pergunta incômoda, porém capital: Qual a sua parte no sofrimento de que se queixa? Para o estudante que está sofrendo, é fundamental que ele encontre um espaço de interlocução onde possa falar na tentativa de construir uma resposta para essa pergunta.
Se ele não conversar com ninguém, sua queixa se torna repetitiva e acarreta vários prejuízos em todos os setores de sua vida. O isolamento tende a se agravar e os sintomas físicos só pioram. Se a pessoa não se implica nas suas questões, vai entrar em um circuito de repetição infernal.
Vai de médico em médico. De gastrite em gastrite. Só que, a “gastrite” quer dizer “acho que eu não gostei desse curso e não tenho coragem de pensar a respeito desse assunto”. Não vale a pena ficar amarelando no sofrimento, sozinho. Por um lado, a pessoa tem que buscar ajuda, por outro, a instituição precisa encontrar mecanismos para escutar esse sujeito que sofre.