A diferença do amor: o relacionamento de casais

Em 29 de abril de 2023, proferimos uma palestra no IV Fórum Rotary Pela Paz. Este texto é o resumo do conteúdo da palestra.

Agradeço, primeiramente, ao convite de estar com vocês para proferir palestra sobre relacionamento de casal. 

A partir da psicanálise, quero cumprir dois objetivos: 1) discutir a respeito da dificuldade dos relacionamentos, buscando entender o desencontro amoroso; e 2) mostrar que, apesar de difícil, o laço amoroso não é impossível.

Dividi a minha fala em duas partes. Na primeira, quero narrar algumas cenas cotidianas que ora mostram um desencontro entre os pares, ora propiciam uma reflexão a respeito da vida a dois. Na segunda, quero discutir a asserção segundo a qual aquilo que costura a possibilidade de o relacionamento se manter (bem e feliz) é o amor, e nada mais. Para isso, vamos entender o que a psicanálise chama de amor. 

Abordarei alguns pontos colhidos da minha escuta clínica, nessa escuta de homens e mulheres que se perguntam, junto comigo, “mas, Gloria, do que se trata esse encontro tão atrapalhado de bom? 

Na cena 1, vou contar uma historinha, ou melhor, um “causo” que circula pela internet.

Diz a história que um casal tomava café da manhã no dia de suas Bodas de Prata. A mulher, passou manteiga na casca do pão e a entregou para seu marido, ficando com o miolo. Ela pensou: “Sempre quis comer a melhor parte do pão, mas amo demais o meu marido e, por 25 anos, sempre lhe dei o miolo. Mas hoje quis satisfazer o meu desejo. Acho justo que eu coma o miolo pelo menos uma vez na vida!”. 

Para sua surpresa o rosto do marido abriu-se num sorriso sem fim e ele lhe disse:

_ “Muito obrigado por este presente, meu amor. Durante 25 anos, sempre desejei comer a casca do pão, mas como você sempre gostou tanto dela, jamais ousei pedir!”.

Gostaria de ouvir vocês a respeito desse “causo” que durou 25 anos… Por que isso aconteceu? Porque estamos na esfera do amor como sacrifício e na relação imaginária de como um vê o outro… Um imaginava que o outro queria X e que, na verdade, o outro também, por sua vez, imaginava que o outro queria Y! E quem não queria o que o outro achava que ele(a) queria, aceitou o querer do outro como certo! De imaginário em imaginário, o casal foi se enganando por 25 anos. Foram 25 anos de uma enganação quanto ao miolo e a casca!!! Quantas outras sustentaram esse casamento ou, podemos nos perguntar, sustentam o relacionamento de muitas pessoas? 

Uma curiosidade: a palavra relacionamento vem da raiz relação que, em Latim, significa relatio que, por sua vez, significa ato de relatar, narrar alguma situação ou trazer alguma coisa de volta. Pensando nessa definição, a pergunta que me vem à mente é: o que ou como esse casal poderia narrar os cafés da manhã ao longo desses 25 anos? 

Cena 2:

Uma amiga querida estava radiante, ao me convidar para a sua festa de Bodas de Prata. Tamanha alegria me instigou a lhe perguntar “sobre esses 25 anos…”. Ante à minha pergunta, minha amiga me responde muito animada: “cada dia é, na verdade, um dia… as coisas são diferentes… e na medida em que as coisas acontecem, a gente vai se posicionando!”

Vejam, enquanto o primeiro casal há 25 anos fazia a mesma coisa, uma repetição enfadonha que causava sofrimento, esse casal encarava o diferente como algo positivo. Não deixava o relacionamento cair na rotina e na mesmice. À medida que as circunstâncias da vida aconteciam, eles se posicionavam e iam sendo felizes um desfrutando da presença do outro. 

Cena 3:

A mulher, casada já há bastante tempo, estava trocando de roupa, pois o casal ia jantar fora. O marido entra no quarto e, ao ver a mulher tirando a roupa que estava vestida, pergunta: “ué, você está tirando a roupa, em vez de vestir?”. A mulher responde que tirou, porque estava achando feia. Então, pergunta ao marido o que ele estava achando. O marido responde que 2% só estava feia. Desconfiada, a mulher lhe pergunta sobre os outros 98% e ele lhe responde: “os outros 98% estavam simplesmente horríveis!”.

Sem nos aprofundar muito nas três cenas, o que podemos dizer? Todas dizem respeito à vida a dois, à convivência entre duas pessoas. A relação amorosa é composta do inesperado, para bem ou para mal. Todos vocês, provavelmente, podem se lembrar de alguma cena que os fizeram rir, chorar, ter raiva, arrependimento, euforia etc. 

Então gostaria de traçar alguns pontos a respeito do relacionamento de um casal:

  1. No amor, não há regras fixas ou normativas que valem para todos os relacionamentos

Podemos pensar que, na vida a dois, há sempre um dia a dia, um inesperado que ocorre e que nunca havia sido sequer pensado. Sabemos que, no cotidiano, as pessoas, muitas vezes, vão na direção de alcançar um ideal de relacionamento que imaginam que exista (mas, que é impossível): a mulher que passou 25 anos comendo a parte do pão de que não gostava não perguntou se algum dia poderia ser diferente. 

No caso da cena 3, a mulher poderia se perguntar: como meu marido, depois de tantos anos, me responde com a matemática? Não pode ser mais simples? Fazer graça quando estou correndo para sair para jantar?

O cotidiano vai sempre contra um ideal de certo e de errado. É preciso ir a favor da vida que tem de ser vivida a cada momento, pouco a pouco sendo aproveitada. Cada caso é um caso e cada relacionamento é único. Não se pode pautar em ideais externos. É preciso que cada casal construa, ao longo do tempo, seus acordos e combinados. 

Há também o relacionamento que surpreende. Como? Quando ouço as pessoas me contarem do namoro longo e do casamento “de conto de fadas” que deu errado. Por quê??? Ao rosto de espanto, pergunto o que a pessoa acha que se passou e a moça responde que não sabe, uma vez que eles sempre gostaram “das mesmas coisas”! Então, poderíamos dizer: Nossa! Alguém precisava dar um basta na mesmice! 

  1. O amor se sustenta na e pelas diferenças! 

Será que no caso do casamento do “conto de fadas” o fato de gostarem das mesmas coisas foi o que fez o casal se separar, justamente porque levou-os à monotonia do silêncio do que não é dito. Passar a gostar do “miolo de pão” e não mais da casca seria um problema para o casal?

O casal precisa saber que o verdadeiro amor acolhe as diferenças. Segundo o pai da psicanálise, Sigmund Freud, nós nunca amamos uma pessoa exatamente pelo que ela é, mas por um ideal daquilo que acreditamos que ela seja, reflete. E, sabemos, os ideais muitas vezes nos enganam. Por isso que, ao longo de uma vida, é preciso que no espaço do casal haja espaço para acolher com alegria os momentos inesperados e surpreendentes!

Na minha clínica, é muito comum ouvir pessoas falarem assim: “Surpreendente, Gloria, acho que me casei com outra pessoa… não reconheço mais essa pessoa com quem me casei!”.

Ao longo da vida, do cotidiano de uma existência a dois, as pessoas mudam, reformulam ideias, mudam propósitos de vida, mudam até mesmo os seus corpos, mudam de religião, filosofia, trabalho. O que acontece com o parceiro(a) que não acompanha? Sentiu-se excluído, expurgado da vida da outra? Será que toda mudança ou diferença precisaria ser encarada como problema? 

Os momentos em que aparecem as diferenças na vida de um casal acontecem frequentemente e não se trata de exclusão. Por que o outro não pode respeitar ou mesmo se inteirar dessa nova escolha do parceiro? A parceria não precisa ser, necessariamente, sobre as mesmas coisas, sobre repetições de velhos padrões, mas sobre novas escolhas, tanto individualmente ou com relação a algo que ambos possam descobrir juntos.

“Mas dra, nosso relacionamento parece que não fecha, cada hora é uma coisa, outra coisa, não pára de acontecer toda hora um monte de coisas…” 

Nesse caso, o que eu digo é que a conta não fecha, porque não tem de fechar, você não se casou com um livro caixa! Não há um débito/crédito/haver… Muitas vezes os papéis se alternam, pois não há um roteiro para o dia a dia da vida do casal. Viver com previsibilidade é trabalhar no almoxarifado, onde cada peça tem um lugar específico, desenhado para ela e só ela! 

Com a psicanálise, e no tocante ao amor, aprendemos que o sujeito tem de saber lidar com a falta de garantia, para além do fato de que todos nós somos mortais. É impossível um casamento onde se conte quantas vezes na semana alguém lavou a louça… não há uma conta alvo para se chegar a uma perfeição, ou mesmo uma aproximação entre os casais, na medida em que falar em relacionamento já é falar numa inversão total da vida de cada uma pessoa: vamos falar de duas, que vão coabitar. 

Passemos agora, ainda nesse aspecto de o amor se sustentar na e pela diferença, a comentar a respeito do mito da “Cara metade”! Parece que antes de casar-se com X fulano era 50, agora ambos se tornaram 100! Eu poderia dizer, que sem graça… é a apologia do ‘unido venceremos’, igual a panela de arroz? 

Para a psicanálise, existe uma subversão: vocês não estão juntos para completar o que você imagina que o outro quer ou, ainda, que você vai acertar no alvo e completar a parte que falta ao seu amor! Isso lhes parece amor ou um compromisso com a servidão? A submissão? O apagamento das diferenças, em prol de quê? 

Entendamos que gestos de carinho, mimos, agrados, comprometimento com o outro são outra coisa! Por que eu tenho que comer sempre o pedaço do pão que imagino que o outro não queira? 

Mas, doutora, o que, afinal, é o amor para a Psicanálise?

Para a psicanálise, entre os dois há um MURO – tantos são os obstáculos a serem transpostos, o que não se confunde absolutamente com gestos de carinho.

Não prezamos o ente querido por um acúmulo que qualidades que se assemelham àquilo que gostaríamos que ele(a) tivesse, mas amamos essa pessoa pelas suas diferenças, e por um todo que não se explica. Assim, quando digo ‘eu te amo’, devo acrescentar, segundo Lacan, ‘mesmo que não saiba por quê”!

Vai ser isso, ‘esse não sei o quê’ – aliás, que vai manter o amor duradouro, tão sério e tão surpreendente ao mesmo tempo! É o sem saber por que o que vai fazer amarmos.

Assim, escapamos então do ‘escrito nas estrelas’ que, muitas vezes, vai subjugar o casal, submetê-lo a uma lei do que já que estava escrito! Ao contrário, o ser humano necessita deixar a chama acesa desse destino, mas que ele mesmo escreveu. Se algo é escrito, foi traçado por ele mesmo, e, portanto, não tem nada a ver com as estrelas. 

A manutenção de um ideal de perenidade vai na contramão da psicanálise, na medida em que não implica o sujeito, implica as estrelas. A perenidade das coisas, a comunhão absoluta durante toda a vida é uma impossível exigência do destino. O amor pede, como nos disse o poeta, peito de remador, pede arriscar-se a se comprometer com sua escolha. Assim, nos parece que o amor, o amar, é arriscar-se na repetição do ‘mesmo diferente’, saber-se possível diferente junto. Esta é a concepção da psicanálise, que trabalha pela manutenção da diferença e da singularidade de cada um.  

Agora, encaminhando para o fechamento, duas observações: O psicanalista francês Jacques Lacan dá uma definição de amor que, a mim, é muito cara. Se no dia a dia as pessoas entendem que amar é se doar ao outro, no sentido de completar o outro, Lacan no Seminário XI define o amor como “dar aquilo que não se tem, a quem não pediu”. Vou repetir: “dar aquilo que não se tem, a quem não pediu”.

Se esta frase acarreta um mal-entendido é na medida em que ela gira ao contrário da completude. Quanto mais mantermos e lidarmos bem com o mal-entendido, mais duradouro o amor. Como assim? Pois quando amo, dou tudo o que não tenho, não me limitando aos bens materiais, mas dou-lhe minhas faltas, minhas mágoas, tudo o que geralmente não se partilha e que vai alimentar o amor. 

O amor vai juntando os retalhos desta tapeação que vai fazendo com ela uma miragem, fazendo com que os companheiros suportem a realidade do cotidiano. 

O sujeito promete dar o que não tem, sim, para ser melhor, engana o parceiro para dizer que vai dar até mesmo aquilo que não tem a quem nada pediu. Ou seja, não entra uma parte de troca, de amor por merecimento. 

O amor vai ter essa função de sustentar a enganação na medida em que por amor, oferecemos o que não temos!

Agora, depois de tudo o que conversamos aqui, pergunto: relacionamento de casal é para todo mundo? Não, por quê? Se não ficar é doença ou insanidade? Nem uma coisa nem outra, os seres humanos têm todo o direito de optarem por uma vida em conformidade com aquilo que pensam e sentem.

No entanto, para quem opta por ter um. Cuide com amor e divirta-se com a diferença e singularidade do outro!

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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