Maria Lúcia veio procurar uma análise por indicação de seu ortopedista. Dizia que já não aguentava mais. Não conseguia andar direito, subir ou descer escadas. Após três cirurgias no joelho, ele “não obedecia, não dobrava mais”.
O médico tinha feito um primeiro contato com a analista. Durante a terceira cirurgia, quando entraram com o artroscópio em seu joelho, viram que toda a articulação do joelho estava liberada. Na sala de cirurgia, a equipe tinha conseguido dobrar o joelho! Era um mistério: se o joelho estava livre fisiologicamente livre, por que não mexia? O que estaria aprisionando Maria Lúcia?
Na primeira sessão, Maria Lúcia contou ao analista que sempre foi “dura na queda”. Filha mais velha, sempre manteve uma relação de rivalidade com os dois irmãos mais novos. Disse que só ela gostava de esportes: tênis, equitação, corrida, saltos ornamentais. Nas suas palavras, “o que só eu e meu pai gostávamos… ele, sim, meu incentivador”. Para ela, seus irmãos eram “bons de plateia”. Dizia que ninguém era “páreo” para ela. Deixou claro que não havia assunto com relação ao qual não desse a última palavra. Orgulhava-se de levar o outro à “exaustão verbal”; perseguia o que queria e não tinha medo de tamanho ou de grito! Era inflexível. Foi assim que, segundo ela, era bem-sucedida na profissão: administradora de empresas.
Tudo lhe parecia bem até que sofreu “uma dura queda”, a partir da qual a vida só foi “degringolando”. Um dia, durante mais uma discussão violenta com o filho mais velho, na presença de sua filha e do marido, Maria Lúcia escorregou na rampa da garagem e caiu. O tombo teve consequências nefastas: fratura exposta do joelho e parte da tíbia! Em suas palavras, foi castigada sem o merecer. Foi submetida a uma cirurgia e diversos tratamentos em sua cidade natal. Tudo em vão. Foi quando resolveu se mudar para São Paulo, para que fosse atendida “pelo melhor ortopedista”. E assim fez. No cálculo de Maria Lúcia, tudo se resolveria. A família tinha posses e era só tomar um avião, passar em uma consulta e logo voltaria à vida normal.
Nada aconteceu conforme o planejado, para o desespero de Maria Lúcia. O tempo passou e nova cirurgia foi feita para, segundo o ortopedista paulista, corrigir alguns erros, má colocações e parafusos. A saga pela mobilidade reiniciou-se: internações, homecare, centro cirúrgico, fisioterapias… E com um discurso de indignação e injustiça da vida Maria Lúcia chegou à análise. Afinal, queria encontrar alguém a quem pudesse culpabilizar por seu sofrimento.
Ao longo das sessões, a rigidez daquela senhora foi dando espaço a um sorriso amável e tímido. A paciente foi percebendo que, até então, ser dura, inflexível, era o que dava o tom de sua vida, a ponto de toda fixidez agora se transferia para uma parte de seu corpo: o joelho. Era preciso, então, que essa articulação, a dobradiça emperrada, conseguisse se mexer.
Por que Maria Lúcia não conseguia dobrar a articulação de seu joelho? Ela confundia a dobra do desejo com tornar-se alienada ao gozo do Outro. Julgava ter de manter uma relação de servidão em relação ao Outro. Assim, para ela, concordar significava seu apagamento como sujeito, e não, ao contrário, seu advento como tal.
A direção da análise consistia em viabilizar uma mudança de posição. Era necessário levá-la a entender que o Outro não é tão poderoso a ponto de poder esmagá-la. Abalar certezas, abrir negociações. Incluir o imprevisto, a surpresa, o acaso. Assim, Maria Lúcia não precisaria mais ficar condenada a atender à imagem de filha ideal perante o pai.