A psicanálise (en)cena

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Sábado à noite, no Rio de Janeiro, calor de matar! No primeiro final de semana de abril, quando muitos poderiam estar caminhando à beira-mar ou jogando uma conversa fora, muitos cariocas, como eu, fomos assistir à peça no Teatro Maison de France. Valeu muito a pena. Tive boas surpresas. O nome do teatro tem todo o glamour francês, no entanto, o público, na sua maioria jovem, viu uma peça despojada em que o brilhantismo estava na atuação marcante dos personagens.
Como a peça veio parar no Brasil? Motivado pelo convite do Freud Museum, em Londres, Antonio Quinet escreveu e montou uma peça teatral em língua inglesa. Sua estreia ocorreu em 12 de novembro de 2013. Posteriormente, Quinet produziu a versão brasileira dessa peça. Ela está registrada no livro Hilda e Freud (2016), pela Giostri Editora, de São Paulo. Na obra, Hilda Doolitle, poeta, escritora e ensaísta da língua inglesa (1886-1961) rememora sua análise com Freud.
Três quadrados apoiados no palco. Enganou-se quem pensou que cada um pudesse se referir à típica cena edípica: pai, mãe e filho. Esses grandes quadrados ora eram usados para sentar, ora para deitar. Nada em excesso. Quinet surpreendeu ao tirar de cena o típico divã de Freud ou as reproduções das obras de arte do psicanalista, tão comumente divulgadas. O diálogo entre os personagens foi o que manteve a transferência do espectador com os atores, ou melhor, com Hilda e Freud.
A maestria de Quinet está no esvaziamento proposital das cenas típicas e até caricaturais de um consultório de um psicanalista, sobretudo de Freud. Quem foi na ânsia de fazer vários “flashes”, ainda que sem luzes, caiu do cavalo, ou melhor, do divã! Apresentada em um só ato, a peça fez com que o espectador tivesse que se confrontar, de uma só vez, com a sutileza de diálogos cuidadosamente arquitetados pelo autor.
Por falar em queda, o chão do palco, todo revestido de espuma, amortecia não só a quebra de expectativa como também criava uma atmosfera onírica a partir da qual não se ouvia nenhum passo dos personagens: tanto Freud quanto Hilda pareciam levitar no pulsar incessante do inconsciente.
As sessões entre Hilda e o pai da psicanálise deram o que falar. Quinet conseguiu, em doze cenas, destacar os momentos mais cruciais da análise da paciente. Hilda foi procurar Freud por causa de um bloqueio na escrita. É verdade, caro leitor, mesmo as escritoras mais geniais podem passar por “maus pedaços”. Por que ela, sendo poeta, não conseguia mais escrever? Eis a dúvida que a levou ao divã.
Hilda foi corajosa. Sabia que era no divã que teria de encontrar modos de superar a angústia da página em branco. Assim, ao longo da análise, por meio da escuta e intervenções de Freud, a escritora pôde se deparar com a falta essencial que marca o ser humano. Ao reconhecê-la, a paciente resolveu, em suas palavras, a sua “equação pessoal”. Em um dado momento, Hilda disse: “As mulheres são perfeitas”. Ao que Freud respondeu, quebrando todas as suas expectativas: “Perfeitas com suas faltas”.
Eis uma das lições mais preciosas da psicanálise: quanto mais o ser humano se depara com a sua falta, menor a expectativa que cria de si mesmo e dos outros. Não sendo mais afligido pela busca da completude, cada pessoa pode aprender, à sua maneira, a lidar com os inesperados da vida, com “algo novo para ser encontrado”.
Quinet mantém no espectador essa falta, sugerindo-lhe não uma completude em um cenário elegantemente povoado. Ao evidenciar o vazio, permite com que cada um, à sua maneira, ache um modo de se encontrar com a psicanálise! Quinet não está interessado em dar uma “lição” do que é a psicanálise. Ele segue, corajosamente, o desejo. E você, em qual papel escolheu atuar?

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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