Fica uma interrogação a respeito de como nós, psicanalistas, compreendemos a cirurgia bariátrica. Se ela incide sobre o corpo biológico, como fica o corpo pulsional após sua realização?
Na Conversação clínica IPLA 2015, intitulada “O corpo, de Freud a Lacan, pelos casos clínicos”, Helainy Andrade apresentou “Dos 170 quilos ao apetite de viver”. Bem escrito, o relato instigou. Era a história de uma jovem senhora de 37 anos, chamada Bethânia. Como ler um caso clínico? Qual recorte o leitor vai privilegiar? Decidi fazer o exercício de interpretar esse caso com a grade de leitura da Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano – USP.
Demanda inicial de análise: Segundo a analista, a demanda de análise de Bethânia era poder libertar-se da “prisão emocional” com relação à mãe. Helainy, entretanto, privilegiou, desde o título do relato, outro tipo de prisão: o anteparo que 170 quilos colocavam entre a paciente e o mundo. Logo, a analista interessou-se pela prisão corporal. A demanda de se livrar da prisão corporal não foi explicitada por Bethânia. Ao mesmo tempo em que ela nada dizia a respeito de sua obesidade, narrava, como se não tivesse importância, as limitações impostas por seu corpo. Helainy frisa que Bethânia evitava perceber a existência do corpo próprio. Ficava o dia todo no trabalho e, se preciso, à noite também. Não tinha amigos e nenhuma vida social. O único fator ligado à sexualidade que dava prazer à jovem senhora era a compra, duas vezes no mês, de roupas de cama na melhor loja da cidade.
Os principais significantes: Na história narrada por Helainy, os significantes que se destacam estão ligados ao par visível/invisível. A paciente narrava os modos por meio dos quais tentava se tornar invisível e não se dava conta de que com o seu corpo grande e o seu mau-humor causava o efeito contrário. Essa posição estaria ligada a um “como se”, especificando, à dificuldade de legitimar suas conquistas.
Modos preferenciais de gozo: O gozo de Bethânia estava relacionado ao “se fazer ver”. Assim, o que poderia parecer apenas um distúrbio alimentar estava relacionado com a satisfação obtida na quebra da expectativa alheia. A analista destaca tanto a insensibilidade de Bethânia ao próprio corpo quanto suas tentativas de se fazer invisível. Temos, então, um exemplo de gozo acéfalo que, para se manter, precisava da invisibilidade das suas consequências.
A direção clínica adotada pela analista: Inicialmente, Helainy acatou a demanda de Bethânia. Ajudou-a a “recuperar a vida” das mãos da mãe, desmantelando a história que ela contara para si própria. Para tanto, a analista positivou as conquistas da paciente até aquele momento (como, por exemplo, o seu notável sucesso profissional). Fazendo isso, a analista incidiu sobre sua dívida de gratidão. Aparentemente, isso se deu porque Bethânia pôde legitimar as conquistas da sua vida.
Modos de pinçamento do gozo ao longo do tratamento: Nos primeiros três meses, Helainy foi a favor do sintoma relacionado com a demanda inicial. Deixou que a paciente esgotasse suas queixas a respeito da relação com a mãe. Então, a analista incidiu uma interrogação: O que você pode fazer que leve sua assinatura? Isso permitiu que Bethânia começasse a dar menos importância a sua ficção e se deslocasse na direção de si mesma, localizando seus próprios pontos de fixão. Para contar consigo mesma, que história ela iria escrever dali para a frente?
Algumas ponderações para além do relato: Gostaria de trazer um texto que lê a cirurgia de redução do estômago do ponto de vista da psicanálise. Chama-se “A cirurgia de redução do estômago: interdição de que?, de Silvia Esther Soria de Cuesta. A psicanalista correlaciona a obesidade mórbida com “as novas formas que o sofrimento toma em uma sociedade construída e mantida nos moldes do consumismo”. A partir de sua experiência clínica, afirma que os pacientes, ao relatar sua situação, experimentam a falta de palavras. Fica uma interrogação, portanto, a respeito de como nós, psicanalistas, compreendemos a cirurgia bariátrica. Se ela incide sobre o corpo biológico, como fica o corpo pulsional após sua realização?
No Seminário 20, Lacan afirma que “Nada força ninguém a gozar, senão o superego. O superego é o imperativo do gozo – Goza!” (p. 11). No caso de Bethânia, o supereu funcionava como parceiro do gozo desenfreado pela comida. Em outras palavras, se o supereu é a instância que instaura a culpa no sujeito, a ponto de “esmagá-lo”. O sentimento de culpa teria levado Bethânia a mortificar o seu corpo para que, morrendo, não se sentisse mais culpada por ter nascido ou por ter uma dívida impagável com a mãe.
No relato, parece haver uma articulação entre a comilança desenfreada e a sensação de dívida com a mãe. Era como se o superego dissesse: “Come até morrer! Goza com a tua comida!”. Afirma-se que Bethânia queria pagar a dívida com seu sofrimento e com o próprio corpo. Depreende-se, portanto, que a relação com a mãe gerava culpa e, essa, por sua vez, recrudescia o superego. Finalmente, o imperativo do superego poderia estar relacionado aos 170 quilos. Parece que sua posição de gozo se relacionava ao “fazer-se sugar” (pela mãe, mas não só). A paciente escolheu fazer uma cirurgia bariátrica para conter o gozo desenfreado quando justamente se viu aliviada da culpa. Abre-se, aí, um interessante campo de pesquisa para pensar no tratamento da obesidade mórbida. Podemos passar a palavra para a psicanálise, que terá muito a dizer.
Publicado originariamente em 18 de dezembro de 2015