Criança insegura: de que medo falamos?

Franca 1

O que é uma criança insegura, como pode ser caracterizada?

Em julho de 2015, a Agência Brasil publicou a matéria “Crianças e adolescentes se sentem inseguros na capital paulista”. A reportagem divulgou uma pesquisa realizada pela Rede Nossa São Paulo, que entrevistou 805 crianças e adolescentes, entre 10 a 17 anos, em todas as áreas da cidade. O levantamento apontou que 67% dos entrevistados consideram a capital paulista insegura, sendo que o índice faz parte da pesquisa de Indicadores de Referência de Bem-Estar no Município. Os temores relatados referem-se às periculosidades comuns às metrópoles, como assaltos, balas perdidas, sequestros etc., que afetam a integridade física das pessoas. Mas, seria somente esse tipo de medo que afeta as crianças?
A experiência clínica mostra-nos que não. Vários motivos podem apontar para a insegurança infantil que, muitas vezes, em nada se relaciona com o sentimento de desamparo empírico. É muito comum pais e educadores procurarem a ajuda de um psicanalista para saber lidar com a “insegurança de uma criança”. Na vida real, o que é uma criança insegura, como pode ser caracterizada?
Vários comportamentos podem indiciar a insegurança infantil. Um menino que atrapalha a aula, querendo bancar “o valentão”, pode, na verdade, estar dando a ver o quanto se sente inseguro no ambiente escolar. Outro exemplo comum é a criança que faz bulling. Se, na superfície, ela parece estar se achando “o máximo”, a necessidade de desqualificar os demais mostra que não é bem assim.
Existem traços que denotam insegurança. Destacamos a precipitação, a incapacidade de esperar, a tentativa de completar a frase dos outros antes que esses terminem o que estão dizendo. Esses comportamentos indiciam para o adulto algo da insegurança da criança. O que ela não consegue falar, mostra por meio de ações que, muitas vezes, são rotuladas pelo adulto como incompreensíveis. “Insegurança”, portanto, é um predicativo que engloba um conjunto de reações que variam de criança para criança, mas que denotam que algo não vai bem.
É importante, ainda, fazermos outras perguntas: a criança nasce insegura? Há um gene que a torna insegura? É praga? Passa pela saliva ou o vírus está no ar? Depende do índice de periculosidade de uma metrópole? Não. Para a psicanálise, a insegurança é um sintoma de relações familiares que tornam a criança uma escrava do que ela pensa serem os ideais de sua família.
Nessa perspectiva, a criança fica tentando adivinhar o que os outros querem dela. Busca corresponder, exatamente, ao que pensa que deixaria papai e mamãe sempre felizes. Passa o dia todo a sondar o ambiente, na espreita. Quer captar o mood (o astral) de seu entorno. Vive como se fosse obrigada a ter uma bola de cristal para, antecipadamente, prever o que vai agradar ao outro. Por essa razão, tenta controlá-lo, fazendo com que ele apenas diga o que lhe seria agradável.
Se nós não observarmos bem, é difícil diferenciar a criança insegura da criança amorosa. A criança amorosa também tenta agradar ao outro, mas o faz de maneira equilibrada. Quer, espontaneamente, externar sua gratidão e seu amor.
A criança insegura, diferente, não age de modo espontâneo. Ela é refém do outro. Tenta moldar as suas expectativas para não ser repreendida. É uma espécie de ator, que adequa ao seu papel o que pensa ser o conveniente para o outro. Ao fazê-lo, se vê em uma armadilha, que ela mesma construiu. Teme ser desmascarada e perder o amor das pessoas que estão ao seu entorno. No fundo, a criança sabe que a pessoa que é amada é o personagem que ela representa. Está o tempo todo com medo de perder a afeição que recebe ao fazer o jogo das expectativas. Passa seus dias amedrontada. Mede seus passos. Angustia-se.
Se a insegurança não é genética e nem depende, unicamente, da realidade empírica, o ambiente familiar é essencial para que a criança consiga se libertar das expectativas do outro e, em si, construa um ponto de sustentação para dizer o que pensa e fazer o que gosta.

Publicado originariamente em 28 de agosto de 2015

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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