Educação além do piloto automático

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Véspera de feriado. O caminho até o aeroporto já dava indícios do caos que me esperava. Eu tinha insistido. A saudade da cidade maravilhosa era maior. O dia estava tão quente que o ar-condicionado não dava conta de refrescar os ânimos. O negócio era ter paciência e torcer para que, na aeronave, eu encontrasse uma boa companhia para conversar.
Sentada na poltrona ao meu lado, a adolescente deu o primeiro passo: “tá quente aqui, né”. Estava com vários livros no colo e foi logo falando de sua preparação para o vestibular. Até o ano passado, detestava todas as matérias de exatas. Agora, adorava. Tinha passado de um sentimento de ódio ao de amor por essas matérias como matemática, física e química. O que teria acontecido?
Sabendo que eu era psicanalista, perguntou se Freud explicava. Depois, pediu, mais séria: “você poderia me ajudar a entender por que, antes, eu não gostava de nada disso e agora, cada vez mais, adoro matérias difíceis?”.
Pedi que me detalhasse como a mudança tinha ocorrido. Este ano tinha entrado uma nova professora de química na escola. Algo dessa professora fez com que deixasse de se entediar com qualquer fórmula. A professora vivia a química de modo vibrante. Mostrava que a disciplina estava intrinsecamente ligada à vida de todas as pessoas. Ela tinha sido fisgada.
Qual a química dessa professora? De que elementos são feitos aqueles que conseguem provocar mudanças radicais nos alunos? A química dessas pessoas se relaciona ao tipo de transferência que mobilizam. A adolescente foi tocada por um traço dessa professora, por sua paixão. Se viu, então, convocada a sair de uma posição de acomodação e abraçou a de insistência diante daquilo que ela não sabia. Não queria ser igual à professora de química.
A professora pôde transmitir, para além dos conteúdos, o próprio desejo de saber. Elas foram além do enlaçamento por meio da transferência imaginária. Quando a transferência simbólica opera, existe a transmissão de desejo de saber. O aluno não é mero repetidor de um conteúdo, se vê implicado a construir outra coisa.
Moral da história: nessa ponte aérea, acabei conhecendo o exemplo de uma professora que, mantendo seu desejo de ensinar, conseguiu fazer uma ponte entre os seus alunos e o conhecimento. A propósito, não seria essa a única possibilidade de ajudar alguém a sair do piloto automático?

“Educação além do piloto automático” é parte da série “Ponte Aérea”. Leia mais textos aqui.

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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Um Comentário

  1. Olá Glória..muito pertinente com meu atual momento.. sair do piloto automático… bjs.. Val Rocha..

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