Existe “dolômetro” para o sofrimento humano?

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O que é mais difícil para a família? Surpreender-se com a morte abrupta de um ente querido ou assistir, imobilizado, ao fim que chega lentamente? A charada foi lançada pelo passageiro do meu lado, um renomado oncologista que assustou aos passageiros em volta com essa questão assim que o avião entrou em uma zona de turbulência.
É o tipo de pergunta que dá vontade de pedir licença e escapar pela saída de emergência do avião. Não era a escolha de Freud. Em todas as suas viagens de trem ou, até mesmo caminhando em montanhas, ele encontrava espaço para pensar a respeito da psicopatologia da vida cotidiana. Seguindo seu exemplo, resolvi ouvir meu companheiro de viagem.
O médico, que tinha por volta dos 60 anos, estava inquieto de tanto lidar com a família de quem parte. Segundo ele, ficava em dúvida toda vez que algum familiar lhe perguntava, por exemplo, “quanto tempo ainda lhe resta?”. Ele não sabia que situação seria a pior: a de quem perde o ente querido rapidamente ou a de quem teria que viver, por anos, observando um familiar definhar com alguma doença terminal. Para ele, o grau de sofrimento em um ou em outro caso era uma equação que precisaria ter uma resposta.
No senso comum, há sempre aqueles que pensam que para a família de quem viveu longos anos a morte é algo esperado. “Descansou”, é o que dizem. Ledo engano: rápido ou devagar, novo ou velho, o “susto do real” é sempre o mesmo. Lembremo-nos do que Lacan nos ensinou no Seminário XXIII a respeito do conceito de real: sempre será “uma pedra no caminho”, algo da ordem do inominável, do sem sentido.
A morte, seja ela vinda paulatinamente ou de chofre, sempre causa um estrago grande no coração da família. Como mensurá-lo? Independentemente da idade em que morre o ente querido, tenha ele vivido 15 ou 150 anos, o baque virá. Quem ama não é poupado!
Não existe um “dolômetro” ou “sofrimentômetro” que traduza a pressão exercida pelo real. Não se trata de saber quem sofre mais ou menos. Antes, cabe pensar em modos como cada familiar vai se virar para lidar com esse real (e os seus efeitos), que sempre chega em nossa vida sem conexões. Saibamos todos suportar o intolerável.

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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Um Comentário

  1. Fui surpreendida pelos dois “modelos” em um único ano!!!
    Passada… Passei!!! E continuo passando, acalentada pelas doces lembranças!!!

  2. Cada um sentirá a seu modo e na sua profundidade. Cada um lidará de um jeito único. Sem protocolos e receitas – algo que pode ser,inclusive, tão perturbador quanto a dor da perda.
    Lindo texto, Glória! Sempre atenta à vida, com tudo que há nela.

  3. Pingback:O terno do desejo ⋆ Glória Vianna

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