Existe igualdade no gozo?

Brasil 2

Maria José se questionava a respeito do que ela era, homem ou mulher, sujeito ou objeto.

Maria José, 35 anos, era uma profissional bem-sucedida. Não no amor: veio procurar uma análise por ser sempre traída e abandonada. Divorciada, mãe de uma filha adolescente, era bonita e vistosa. Não compreendia como os homens não a amavam com a intensidade que ela os amava.
No início de sua análise, foi possível perceber que, em grande parte, o motivo dos sucessivos fracassos amorosos da moça poderia ser atribuído à ambiguidade de sua posição que, em relação aos seus namorados, ora se colocava em posição masculina, ora se colocava em posição feminina. Essa ambiguidade, aliás, já estava anunciada em seu nome próprio, composto por meio da justaposição de um nome feminino (Maria) e de um masculino (José). Maria José se questionava a respeito do que ela era, homem ou mulher, sujeito ou objeto.
Tudo nela era um exagero. O uso de bijuterias, o falar alto, a compulsão sexual, o gesticular escandaloso apontava para um gozo excessivo. Seu linguajar era, predominantemente, de “baixo calão”. Não se constrangia ao falar vários palavrões e, ao referir-se aos seus parceiros, dizia que eles, comparados a ela, “eram sempre meia-bomba!”.
Era obscena nas narrativas com a qual contava as inúmeras aventuras amorosas. Descia a detalhes anatômicos que expunham particularidades escatológicas de seus parceiros, como se, de outra forma, não pudesse dar conta de seu espanto por não ter pênis.
Dizia ter nojo do ex-marido. Recriminava, com asco, seus hábitos pouco higiênicos. Reativamente, ela limpava a casa também exageradamente. “Um belo dia, não aguentei mais tanto encerar e arrumar e pedi, junto com o desquite, a minha transferência para o Rio de Janeiro”, narrou Maria José.
Nas sessões, por sua teatralidade, Maria José reproduzia as estratégias usadas para a sedução. Na posição face a face, fazia de tudo para que se confirmasse sua posição de ser objeto do olhar do outro. Para deslocá-la dessa posição, convidei-a a passar ao divã. Essa passagem permitiu-lhe colocar, na palavra, sua dependência do gozo obtido pela sedução de sua imagem estampada no olhar do outro e, consequentemente, abrir espaço para uma posterior conquista do corpo próprio.
Maria José mantinha competição ferrenha com os homens. Indignada, reclamava não entender os motivos de não poder, como eles, em uma mesma semana, transar com três pessoas diferentes. Achava uma injustiça o fato de que um homem com esse comportamento ficasse conhecido como o “pinto doce” e ela como “piranha”, e não como “a gostosa”.
Paradoxalmente, ela era capaz de esperar horas até que um parceiro lhe telefonasse. Esperava passivamente para poder namorar um pouco. Quando contava os momentos de “abandono”, recheava seu relato de choro, parecendo frágil e meiga. Havia um contraste entre sua linguagem “cafajeste” e a delicada utilizada ao falar da sua solidão.

Durante algum tempo, nem o trabalho analítico progredia, nem a situação de frustração amorosa cedia. Nos momentos nos quais ficava claro em que não haveria possibilidade de manejar a sessão para que fosse algo além de uma enumeração de amantes, eu a interrompia. Era uma tentativa de dar um basta ao seu gozo fálico, o de mera descrição das performances amorosas, como se ela fosse um Don Juan de saias.
O tratamento foi girando em falso, pois não havia muita variação em pornografia… O que fazer para deslocar Maria José? Optei por um duplo manejo: aumentar a frequência das sessões, visando a empanturrá-la com os seus próprios relatos monótonos, e diminuir a sua duração.
A oportunidade de deslocá-la de sua posição surgiu quando, ao narrar uma conversa com suas amigas, Maria José afirmou ter dito o seguinte: “pois é Isabel, porque nós não arranjamos homens como nós…!”.
Aparentemente, ela não percebeu a ambiguidade que sua frase continha: 1) Ênfase no “como nós, Maria José e Isabel, que somos legais, bonitas, simpáticas”; 2) Ênfase no “homens”, “como nós, Maria José e Isabel, que também somos homens”.
Ao ouvir esse enunciado, decidi equivocar. Sem entrar em detalhes, imediatamente suspendi a sessão dizendo: “Tchau, José!”. Seu susto foi tão grande que ela não conseguia achar onde havia deixado a bolsa…
Isso fez efeito! Suas narrativas deixaram de ser feitas ora do lugar de “machão” ora do de “princesinha”. Saímos do campo dos lugares genéricos. Fundou-se, então, espaço para uma mulher madura, sofrida, solitária, com muita vontade de examinar sua vida em busca de matéria-prima para inventar sua singularidade.

Publicado originalmente em 22 de novembro de 2013

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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