Filho doente ou mãe deprimida?

Tcheca 1

Quando vieram relatar o que estava escrito no diário, descobri que Pedro ocupava o lugar de “sua majestade o bebê, como, em 1914, diria Freud, no texto “Sobre o narcisismo: uma introdução.
Recebo um casal aflito em meu consultório: foram encaminhados pelo pediatra, que me disse que a criança tinha distúrbios de sono. Coincidência ou não, naquela mesma semana tinha lido a respeito da pesquisa da fisioterapeuta e professora da USP, Patrícia Daniele Araújo, feita com 1.027 crianças entre três e cinco anos, matriculadas na rede de ensino da cidade de São Paulo. Segundo a pesquisadora, os principais distúrbios do sono que afetam as crianças são: 48,5% movimentam-se muito enquanto dormem, 38% acordam durante a noite e demoram a voltar a dormir, 35% roncam, 21% fazem xixi na cama. Ainda de acordo com a pesquisa, a maioria desses problemas tende a diminuir, naturalmente, após os cinco anos. Qual seria então o problema da criança que iria receber?
Pedro, 18 meses, chegou no colo dos pais. A entrevista foi tão confusa que não consegui entender a queixa da família nem a descrição dos sintomas da criança. A única coisa que os pais concordavam entre si era que o menino, terceiro filho de uma prole de três, não dormia à noite. A mãe era professora e o pai dentista. O filho mais velho tinha 17 anos e a filha do meio, 14. Os pais desejaram esse filho tardio. Após uma semana de tratamento, o menino passou a dormir. Milagre? Não, psicanálise.
Pedi que a família fizesse um diário detalhado de seu cotidiano e trouxesse na segunda entrevista. Chegaram a registrar três dias de convivência com a criança. Inspirada em O Seminário da Carta Roubada, de Jacques Lacan, eu queria estudar a rede de relações. Queria saber em que lugar cada um estava e, o mais importante, em que lugar tinham colocado Pedro.
Quando vieram relatar o que estava escrito no diário, descobri que Pedro ocupava o lugar de “sua majestade o bebê, como, em 1914, diria Freud, no texto “Sobre o narcisismo: uma introdução”. A família era freudiana exemplar. Ao “acolher” o bebê, estavam amando a si mesmos. Fascinados com o fato de que bebês não precisam limitar o seu narcisismo, tinham projetado, em Pedro, sua ânsia de gozo ilimitado. O acolhimento dos excessos do menino, infelizmente, estava prejudicando toda a família.
Um exemplo: ele impunha a todos os horários de dormir e de acordar. Assim, ninguém mais tinha disposição para o trabalho ou para a escola. Não era o bebê que tinha distúrbio do sono! Eram seus pais que tinham, por assim dizer, “distúrbio narcísico”! Supostamente temendo as reações espetaculares do bebê (como, por exemplo, bater a cabeça na parede quando alguém o contrariava), a família ficava refém de suas escolhas.
Nesse ponto, o estudo do texto “Nota sobre a criança”, de 1969, me serviu de auxílio. Lembremos que, para Lacan, “o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar”. Ao escutá-la, pude perceber que o menino era colocado como um band-aid de seu sintoma: o fato de estar 24 horas do seu dia ocupando-se do “Pedrinho”, desculpabilizava-a de ocupar o lugar de mulher e de mãe dos outros filhos. Projetando-se no filho, a mãe se oferecia ao deleite.
Tracei então um plano de ação para a família, exigindo consequência. Fui enfática ao dizer que cada um precisava se responsabilizar por sua parte. Combinamos que Pedro deveria ser mantido acordado durante o dia. Traçamos brincadeiras e atividades que poderiam ser feitas com ele. À noite, a família prepararia a criança para, paulatinamente, ir se acalmando: menos barulho, luz, televisão etc. A parte mais difícil foi convencer a mãe de Pedro, já que a sua tendência era a de sempre corresponder à demanda. Insisti.
Resultado: o bebê passou a dormir à noite e, consequentemente, a família pôde desfrutar do sono há muito tempo perdido. Não posso terminar esse relato com “foram felizes para sempre”. Tão logo o sintoma do menino cessou, sua mãe entrou em depressão. Ponto para Lacan e entendamos que o caso dentista é outra história. Publicado originariamente em 18 de dezembro de 2015

Publicado originariamente em 23 de outubro de 2015

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
Adicionar a favoritos link permanente.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *