Fim de caso

gloria7

“Rasgue as minhas cartas. E não me procures mais, assim será melhor, meu bem! O retrato que eu te dei, se ainda tens, não sei, mas se tiver, devolva-me…”! Assim, nos idos anos 1960/1970, Leno e Lilian começavam sua canção… Várias mocinhas da época se identificavam com essa perspectiva. Pensavam que, rasgando as cartas, picariam sua dor em pedacinhos. Dá resultado?
Tudo desaparecerá rasgando, picando, queimando fotos, cartas, recordações? Algo anula o tempo que se passou junto? O que dizer da triste ex-esposa que rasga as fotos de um álbum de casamento fracassado? Por acaso, rasgando as fotos, bane-se de seu coração a pessoa outrora amada?
Não é tão simples romper um amor. É pena que ainda existam “Lenos e Lilians”, aqueles que, usando desses expedientes, conseguem colocar em ato vinganças “maligrinas”. O amante engana-se ao pensar que rasgando ou picando recordações, é possível retirar o amado do coração, de sua alma ou de suas entranhas. Também se ilude quem acredita que, para esquecer um grande amor, deve-se arranjar outro, e o outro do outro e, assim, sucessivamente. Equivoca-se, ainda, quem escolhe a via do poder da vingança, outra forma do desejo de durar. As recordações não são passíveis desse expediente? A psicanálise diz que não.
Essas vias, todas muito comuns, são expressões da certeza narcísica do poder do pensamento. É como se a pessoa que sofre a desilusão amorosa precisasse acreditar que, graças a sua enorme força mágica, a pessoa vai se dar mal pelo simples fato de tê-la deixado. Dói, mas é importante perceber que ninguém é a rainha do pedaço. Perturba, mas é necessário notar que nosso narcisismo avassalador não dá o direito de arbitrar com quem uma pessoa além de nós deve ou não ficar.
Como enterrar alguém vivo? Não se trata de se precipitar para arranjar outro ou outra, mas de se dar o tempo para se arranjar com a dura realidade de saber que não é o dono do mundo. Quem diminui o seu narcisismo pode perceber que amores vêm e vão independentes de suas mandingas ou de suas encenações dignas de novelas mexicanas. Ele para de tentar restituir o passado e só tem a ganhar com isso. É só quando o amante desiludido entende que a fila andou que ele também pode andar.

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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