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Franca 2

Ao ser caracterizada, desde criança, como alguém “abatido”, uma paciente de 40 anos percebeu que viveu para endossar esse adjetivo.

Um insulto recebido na infância pode dar o tom da vida de uma pessoa enquanto ela deixa que isso aconteça. Foi o que ocorreu com Paula, 40 anos, divorciada e mãe de dois filhos. Era do tipo que cruzava as pernas sedutoramente para chorar. Procurou análise com uma queixa de se sentir “sem vida” mesmo sendo uma advogada bem-sucedida. Relatava estar com pressão baixa, com a pele gelada e se sentindo muito cansada. O clínico havia atestado ótima saúde, dizendo: “o que esta moça tem é da cabeça, não do corpo”.
A mãe havia lhe dito que, durante a gestação da filha, havia temido que essa nascesse com problema. O casal teve a menina (filha única) em idade avançada. Em uma das sessões, Paula assinou embaixo dos temores de sua mãe, dizendo: “Posso não ter nascido débil mental, mas não escapei de ficar amarela”. Certa manhã, chegou ao consultório dizendo-se muito perturbada. Narrou que estava angustiada. Pela presença desse afeto percebeu que um comentário de sua empregada havia lhe tocado: “a senhora está com uma aparência de cansada, um pouco abatida”. Na sessão, uma lembrança de infância ocorreu-lhe. Quando menina, havia sido forçada, por sua mãe, a tomar muito óleo de fígado de bacalhau. A mãe tinha como ambição que sua filha fosse corada. Dizia que, tomando tal óleo, Paula melhoraria e se tornaria uma “menina corada como as outras crianças. Deixaria de ser abatida”.
Vemos, portanto, que nos primeiros minutos de sessão, a palavra “abatida” apareceu duas vezes. A primeira, no comentário da empregada, a segunda, na insistência da mãe. A partir de sua perturbação conclui-se que, na infância, Paula foi insultada por esse significante e, a partir de então, nunca havia deixado de dar consistência a ele. De novo, assinou embaixo. Para ela, a palavra “abatida” parecia ser a marca de sua insuficiência aos olhos dos outros. A analista guardou silêncio. A palavra “abatida” apareceu pela terceira vez. Paula relatou que, aos seis ou sete anos, acompanhou sua mãe em um açougue. Naquele tempo, era comum que os açougues vendessem aves mortas para que fossem preparadas mais frescas. Paula resolveu ler o letreiro do estabelecimento. Nele, estava escrito: “Carnes de primeira e aves abatidas”.
Ignorando o significado da expressão “aves abatidas”, tentou inferir o significado da expressão a partir da palavra “abatida”. Então, apontando as aves mortas expostas sobre uma bancada, perguntou à sua mãe se aquelas galinhas, assim como ela, sofriam do fígado. Que triste e desvitalizante identificação!
A paciente lembrou que sua mãe tinha rido muito e havia lhe explicado que a expressão “aves abatidas” era utilizada para designar as “aves mortas”. Narrou-me que, assim que compreendeu a explicação de sua mãe, havia exclamado, cheia de júbilo por ter entendido que, nesse caso, “abatidas” significava “sacrificada”: “Sim, abatida!”. A partir desse fluxo associativo, que poderia ter progredido de modo infinito, como gerar trabalho? Como livrar Paula dessa identificação mortificante, bastante relacionada com os sintomas inicialmente relatados? No caso, “ave abatida”, ao fazer parte do idioleto de Paula, apontava para sua posição de gozo, a qual havia gerado os sintomas que a fizeram procurar inicialmente o médico. O corpo doente de Paula dava sempre a impressão de que ele era o fardo que carregava por ser “amarela”, “abatida”. Em outras palavras, sua doença era uma homenagem a sua mãe.
A abordagem escolhida por mim foi a leitura literal do inconsciente. Sem nada explicar ou acrescentar, suspendi a sessão, limitando-me à seguinte pontuação: “Há muito tempo”. Essa pontuação teve finalidade de despertar o analisante, obtendo o efeito de corte, de suspensão e surpresa. Ao introduzir uma marca temporal, “há muito tempo”, foi possível escapar de uma circularidade que dava consistência ao seu sintoma. Assim, convoquei-a a se dar conta de que morta, amarela, gelada, foi como sempre esteve.
O significante “abatida” insultou Paula, fixando-a em sua posição de morta, funcionando como uma hipnose, um feitiço. Presa na teia do insulto ficava paralisada, a ponto de não reagir, pois não o detectava. Como Jorge Forbes nos alertou que costuma acontecer, Paula pensava que o “insulto lhe caia bem”. Seu caso ensina que, para gerar trabalho e deslocar o gozo de uma pessoa, o analista precisa extirpar o insulto que, fixando-a a uma identificação mortífera, a impede de viver de modo mais feliz, criativo e responsável.

Publicado originalmente em 18 de outubro de 2013.

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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