Qual língua se fala por aqui?

Franca 3

Os equívocos de uma psicanalista carioca nas ruas de São Paulo

A língua falada em São Paulo ultrapassa qualquer rivalidade entre os “manos” locais e os “broder” do Rio de Janeiro. Não é necessário estabelecer a linha de Tordesilhas para vermos que, definitivamente, São Paulo e Rio são duas cidades separadas pelo mesmo idioma. Não vou apregoar o português falado em uma ou em outra, mas peço aos leitores que, depois de saber a minha história, avaliem se é necessário, comprar um dicionário após os 50 minutos na ponte aérea.
Início de 1990, calor insuportável em São Paulo. Tentei arranjar uma vaga para estacionar o carro e, para minha surpresa, havia uma “esperando por mim”. Lá fui eu manobrando muito bem o carro, de fazer inveja a qualquer instrutor de autoescola! Havia um pequeno grupo de homens, que me olhavam atentamente (mais por estupefação do que por outro motivo). Assim que estacionei, um deles, muito solícito, aproximou-se de mim e perguntou: “Vai um cartão da Zona”? Frente ao meu espanto e indignação, o senhor bradava que eu só poderia ficar ali se eu comprasse o tal cartão. Com a boca seca de tanta raiva, respondi em tom duro que se alguém ali tinha algum cartão parecido com o mencionado, devia seguramente “ser a digníssima senhora sua mãe e a sua irmã”! Ele continuava sem entender minha reação e ainda disse em tom profético: “Depois não diga que eu não avisei”! O tal cartão da zona azul só chegou ao Rio de Janeiro dois anos depois. Naquela época, só contávamos com os “flanelinhas”, que nos ajudavam arranjar uma vaga e depois sumiam.
Quando cheguei à terra da garoa, ainda não existia o GPS. Então, ao sair de casa, contava um tempo a mais para me perder e depois me localizar. Na época, usávamos o Guia de Ruas, aquele livro que mais se assemelhava a um “Vade-mécum” de medicação de tarja preta. Todos tinham o Guia, logo, não poderia ficar sem um também. E assim ia tentando me orientar nessa cidade querida e caótica. Um dia, precisei ir ao Itaim. Até aí nada demais. Acontece que a pessoa no telefone frisou que o tal endereço ficava no “Itaim Bibi”. Já me sentindo apta a achar qualquer lugar no meu livrão, saí cheia de curiosidade a procurar o bairro. Então, como se diz no interior paulista, “montei no porco”! Ao conferir no Guia, fiquei muito impressionada com as expressões que se referiam ao bairro: “Chácara do Itaim”! Pensei: “deve ser um lugar muito bonito, com plantas e gramados”. Repetia o mantra à exaustão para ver se não errava: Itaim Bibi. Ledo engano! Já estava tão exausta que resolvi pedir ajuda. Abro a janela do carro e pergunto a um grupo: “Será que alguém pode me informar se já cheguei ao Itaim Fonfom!?”.
Perplexa, sem entender as gargalhadas que recebi como resposta, pensei que os equívocos da psicanálise e os mal-entendidos entre cariocas e paulistas se concretizavam na psicopatologia da minha vida cotidiana em São Paulo! Foi, então, que senti na pele que ainda não pertencia à mesma paróquia, como nos diz Lacan referindo-se às “tiradas espirituosas da língua”. Só assim pude, finalmente, conciliar-me com ela. Sacô meu bróder, digo, meu mano?

Publicado originalmente em 08 de fevereiro de 2013.

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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