Solidão no ar

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Independentemente de você viajar sozinho ou acompanhado, nunca estará só. Existe sempre uma equipe de plantão que se encarregará de servi-lo. São os comissários de bordo, rapazes e moças que se vestem impecavelmente. Responsáveis por não “deixar faltar nada”, cumprimentam sorrindo todos os passageiros, avisam o que se pode ou não fazer…
Claro que, dada a natureza humana, nada é perfeito. Sempre há um chefe da equipe que, ao se encarregar de transmitir os avisos de pouso e decolagem, fala em uma língua que, cá entre nós, é bem difícil de entender: “leidiz zend gentlemeim plizi…”.
As mulheres sempre capricham na maquiagem, usam coques perfeitos ou um gel que deixa o cabelo à prova de qualquer tempo, turbulência ou céu de brigadeiro. Nenhum fio sai do lugar. Seguem um script, andam igual, sorriem, levantam as poltronas para a posição vertical, avisam que a “porta do avião fechou com atraso alheio à nossa vontade”!
Depois que os passageiros entram, existe sempre aquele tempo para que as pessoas se acomodem. Os comissários sempre dão um “jeitinho” para atender a demanda do outro. Nunca vi um deles ser indelicado com um passageiro, mesmo diante de pedidos que nunca poderiam atender, como, por exemplo, servir algo que não existe no cardápio.
Parecem estar sempre tendo que inventar respostas para questões delicadas. Como explicar para os passageiros que o “compartimento superior” do avião não é como uma mala de carro ou extensão da casa da pessoa? Como colocar a caixa com os doces para a festa da sobrinha da moça da 9F? Como juntar o paletó do executivo com uma caixa de chocolates importados?
As crianças recebem um tratamento especial. Os comissários sempre procuram um modo de acalmá-las, para que nada “perturbe” o bom andamento da viagem. Brinquedos, um chocolate. Algumas retribuem a gentileza, outras olham desconfiadas, como se precisassem de que o pai ou a mãe assentissem para que elas pudessem corresponder ao cumprimento.

Observando tanta competência, é de se perguntar se o modo de ação dos comissários de bordo pode nos servir de paradigma para bem viver, afinal eles parecem se virar com todos os imprevistos. Será?
O ar não é lugar para ser criativo. As coisas não podem mudar de lugar. Não existe uma bandeja sequer que, depois de usada, possa ficar destravada. Há regras internacionais a serem respeitadas. Cabe aos comissários segui-las e transmiti-las. A cada voo, o comissário segue um roteiro implacável independente da reação ou olhar do passageiro. No ar, tudo é absolutamente repetitivo, cada procedimento precisa ser cumprido à risca. No ar, eles são anônimos.
Vendo cada um desses moços e moças do ar, fico pensando na solidão. Imaginem a equipe de comissários tentando demonstrar seus aborrecimentos pessoais e tristezas. Com quem falar? A equipe não tem vontade própria. Enfim, é importante se perguntar: Como sair do “piloto automático” e aterrissar em terra firme, onde tudo foge à previsibilidade? Como sair do anonimato e se inscrever singularmente em algum lugar? Fiquemos com essas questões na nossa bagagem de mão. O preço para quem quer viver uma vida sem turbulência é a pura repetição do mesmo.

“Solidão no ar” é parte da série “Ponte Aérea”. Confira o último texto publicado aqui.

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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