A psicanálise e o trabalho

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A entrevista que se segue foi originariamente escrita a pedido de um veículo de comunicação. Como as boas perguntas suscitaram uma reflexão importante a respeito da felicidade no trabalho, a reproduzimos em nossa página. Nosso objetivo foi mostrar em que medida a psicanálise pode ler os sintomas atuais relacionados ao trabalho e ajudar quem dela se beneficia a viver uma vida mais produtiva.

O trabalho pode ser considerado prejudicial à saúde da população? Por quê?
Não, ao contrário. Quando alguém fez boas escolhas, o trabalho pode ser uma forma de criar e mostrar sua singularidade ao mundo.

Quando o trabalho pode se tornar prejudicial?
Quando a pessoa não sente prazer na atividade que escolheu para si e não consegue se implicar nas mudanças necessárias.

Na sua opinião, o que teria causado a situação que enfrentamos hoje em relação à vida profissional?
O fato de as pessoas terem demorado para dar respostas à grande competição no mercado. Se faltam vagas para quem é pouco qualificado, sobram para a mão de obra especializada. Isso gera stress em quem não consegue emprego e, também, em quem tem de trabalhar por dois, já que não tem colegas com quem dividir a responsabilidade.

O que seria um trabalho saudável?
Aquele no qual a pessoa tem oportunidade de se reinventar todos os dias. Um trabalho saudável não é feito somente das condições externas favoráveis. Por exemplo, um professor pode ter todos os recursos didáticos à disposição, ter poucos alunos em sala, trabalhar em uma escola de ambiente colaborativo e, mesmo assim, se sentir infeliz com relação ao seu trabalho. A alegria vem da oportunidade de fazer diferença.

O que você pensa sobre esses transtornos e síndromes que estão sendo diagnosticados por conta de muito estresse no trabalho?
Na clínica psicanalítica, trabalhamos com o caso a caso. Assim, não estigmatizamos alguém que chega se autorotulando. Para além de diagnósticos generalizantes, vamos investigar quais os sintomas específicos de cada sujeito. É preciso buscar por que a pessoa permanece em uma relação vampiresca e por quais motivos transforma o seu trabalho em um martírio.

Qual a principal causa de indivíduos terem chegado a esse alto nível de estresse no trabalho? Isso é reversível?
Um dos principais motivos para o estresse exagerado é a pessoa achar que pode fazer tudo. Cada um precisa saber seu limite. Às vezes as pessoas se cobram demais e pensam que teriam condições de atender a qualquer expectativa, independente das condições efetivas para isso. São pessoas que vivem aflitas por que não conseguem lidar com a pressão de que algo pode não sair como o planejado. Esse alto nível de estresse é reversível. Uma análise pode ajudar o sujeito a não ficar tão congelado nas expectativas do outro sobre ele. Um tratamento psicanalítico busca ajudar o sujeito a se comprometer com suas escolhas, sabendo avaliá-las estrategicamente.

Atualmente, muito se fala da “síndrome de burnout”. Quais são as principais características dessa síndrome?
“Síndrome de burnout” não é um termo do campo da psicanálise. É um nome dado a uma série de sintomas cuja causa sempre está relacionada ao trabalho. De modo resumido, as principais características são: esgotamento físico e emocional. A literatura especializada afirma que a estrutura da síndrome é feita de três aspectos: a) desgaste e exaustão emocional; despersonalização e incompetência ou falta de realização pessoal.

Existe alguma diferença entre essa síndrome para uma depressão comum? Qual seria?
Estamos falando de uma linha muito tênue entre uma coisa e outra. Tanto em um caso quanto em outro o sujeito se vê esmagado por contingências externas que afetam toda a sua vida psíquica, levando-o a sintomas físicos. Toda depressão pode acarretar em decréscimo no trabalho e todo decréscimo no trabalho pode acarretar em depressão.

O que esses transtornos relacionados ao trabalho causam na vida de um paciente?
Congelam a pessoa em uma posição de vítima, de injustiçada pelo outro. Ela fica triste, desanimada, sempre mostrando um desamparo frente ao outro. Não tem alegria de criar algo diferente ou de realizar suas funções profissionais.

Do ponto de vista da psicanálise, existem procedimentos a serem realizados em um paciente com a síndrome de burnout?
Isso varia de pessoa para pessoa, por isso é muito difícil dizer “procedimentos”. O que funciona para uma pessoa, pode não ter nenhum efeito em outra. Por esse motivo, procurar uma psicanálise poderia ser uma boa ideia. O psicanalista vai trabalhar na direção de deslocar os modos fixos como cada um se satisfaz com esse sofrimento, ajudando-o a investir a energia em outras coisas que possam lhe gerar prazer.

Que remédio a psicanálise indica para pessoas com transtornos relacionados ao trabalho? Qual a forma de tratamento?
Indico a cura pela fala. Uma escuta psicanalítica pode ajudar, e muito, o paciente a lidar com esses sintomas. O tratamento psicanalítico consiste em levar a pessoa que se queixa do seu trabalho a se dar conta de sua enorme participação em seu sofrimento. O sofrimento surge por causa de algo que para aquele sujeito foi impossível de colocar em palavras, de significar. O psicanalista busca ajudar o paciente a aumentar o repertório de respostas que ele pode dar para as mais diversas situações adversas da vida, sejam vindas do trabalho, das relações amorosas etc.
Paralelamente, é importante fazer atividades que o ajudem a pensar em outras coisas, por exemplo, fazer aula de dança, praticar esportes, encontrar novos hobbies, aprender um novo idioma etc.

Existe “dolômetro” para o sofrimento humano?

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O que é mais difícil para a família? Surpreender-se com a morte abrupta de um ente querido ou assistir, imobilizado, ao fim que chega lentamente? A charada foi lançada pelo passageiro do meu lado, um renomado oncologista que assustou aos passageiros em volta com essa questão assim que o avião entrou em uma zona de turbulência.
É o tipo de pergunta que dá vontade de pedir licença e escapar pela saída de emergência do avião. Não era a escolha de Freud. Em todas as suas viagens de trem ou, até mesmo caminhando em montanhas, ele encontrava espaço para pensar a respeito da psicopatologia da vida cotidiana. Seguindo seu exemplo, resolvi ouvir meu companheiro de viagem.
O médico, que tinha por volta dos 60 anos, estava inquieto de tanto lidar com a família de quem parte. Segundo ele, ficava em dúvida toda vez que algum familiar lhe perguntava, por exemplo, “quanto tempo ainda lhe resta?”. Ele não sabia que situação seria a pior: a de quem perde o ente querido rapidamente ou a de quem teria que viver, por anos, observando um familiar definhar com alguma doença terminal. Para ele, o grau de sofrimento em um ou em outro caso era uma equação que precisaria ter uma resposta.
No senso comum, há sempre aqueles que pensam que para a família de quem viveu longos anos a morte é algo esperado. “Descansou”, é o que dizem. Ledo engano: rápido ou devagar, novo ou velho, o “susto do real” é sempre o mesmo. Lembremo-nos do que Lacan nos ensinou no Seminário XXIII a respeito do conceito de real: sempre será “uma pedra no caminho”, algo da ordem do inominável, do sem sentido.
A morte, seja ela vinda paulatinamente ou de chofre, sempre causa um estrago grande no coração da família. Como mensurá-lo? Independentemente da idade em que morre o ente querido, tenha ele vivido 15 ou 150 anos, o baque virá. Quem ama não é poupado!
Não existe um “dolômetro” ou “sofrimentômetro” que traduza a pressão exercida pelo real. Não se trata de saber quem sofre mais ou menos. Antes, cabe pensar em modos como cada familiar vai se virar para lidar com esse real (e os seus efeitos), que sempre chega em nossa vida sem conexões. Saibamos todos suportar o intolerável.

Solidão no ar

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Independentemente de você viajar sozinho ou acompanhado, nunca estará só. Existe sempre uma equipe de plantão que se encarregará de servi-lo. São os comissários de bordo, rapazes e moças que se vestem impecavelmente. Responsáveis por não “deixar faltar nada”, cumprimentam sorrindo todos os passageiros, avisam o que se pode ou não fazer…
Claro que, dada a natureza humana, nada é perfeito. Sempre há um chefe da equipe que, ao se encarregar de transmitir os avisos de pouso e decolagem, fala em uma língua que, cá entre nós, é bem difícil de entender: “leidiz zend gentlemeim plizi…”.
As mulheres sempre capricham na maquiagem, usam coques perfeitos ou um gel que deixa o cabelo à prova de qualquer tempo, turbulência ou céu de brigadeiro. Nenhum fio sai do lugar. Seguem um script, andam igual, sorriem, levantam as poltronas para a posição vertical, avisam que a “porta do avião fechou com atraso alheio à nossa vontade”!
Depois que os passageiros entram, existe sempre aquele tempo para que as pessoas se acomodem. Os comissários sempre dão um “jeitinho” para atender a demanda do outro. Nunca vi um deles ser indelicado com um passageiro, mesmo diante de pedidos que nunca poderiam atender, como, por exemplo, servir algo que não existe no cardápio.
Parecem estar sempre tendo que inventar respostas para questões delicadas. Como explicar para os passageiros que o “compartimento superior” do avião não é como uma mala de carro ou extensão da casa da pessoa? Como colocar a caixa com os doces para a festa da sobrinha da moça da 9F? Como juntar o paletó do executivo com uma caixa de chocolates importados?
As crianças recebem um tratamento especial. Os comissários sempre procuram um modo de acalmá-las, para que nada “perturbe” o bom andamento da viagem. Brinquedos, um chocolate. Algumas retribuem a gentileza, outras olham desconfiadas, como se precisassem de que o pai ou a mãe assentissem para que elas pudessem corresponder ao cumprimento.

Observando tanta competência, é de se perguntar se o modo de ação dos comissários de bordo pode nos servir de paradigma para bem viver, afinal eles parecem se virar com todos os imprevistos. Será?
O ar não é lugar para ser criativo. As coisas não podem mudar de lugar. Não existe uma bandeja sequer que, depois de usada, possa ficar destravada. Há regras internacionais a serem respeitadas. Cabe aos comissários segui-las e transmiti-las. A cada voo, o comissário segue um roteiro implacável independente da reação ou olhar do passageiro. No ar, tudo é absolutamente repetitivo, cada procedimento precisa ser cumprido à risca. No ar, eles são anônimos.
Vendo cada um desses moços e moças do ar, fico pensando na solidão. Imaginem a equipe de comissários tentando demonstrar seus aborrecimentos pessoais e tristezas. Com quem falar? A equipe não tem vontade própria. Enfim, é importante se perguntar: Como sair do “piloto automático” e aterrissar em terra firme, onde tudo foge à previsibilidade? Como sair do anonimato e se inscrever singularmente em algum lugar? Fiquemos com essas questões na nossa bagagem de mão. O preço para quem quer viver uma vida sem turbulência é a pura repetição do mesmo.

“Solidão no ar” é parte da série “Ponte Aérea”. Confira o último texto publicado aqui.

Quanto tempo dura seu plano de voo?

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Enquanto o avião acelera, passageiros tentam adormecer, outros procuram ficar acordados para aproveitar cada segundo do mundo visto ali de cima. Talvez pensem que as coisas vistas lá do alto sejam mais bonitas, os problemas menores, enfim, a vida como se fosse o jardim de uma casinha de bonecas… Enquanto isso, alguns conversam, outros ficam em silêncio, alguns leem, outros se ajeitam interminavelmente na poltrona… Há, ainda, os que, em poucos segundos, tomam grandes decisões.
Dada a variedade de situações que ocorrem dentro de um avião, penso que, às vezes, o melhor seria acionar o setting analítico e reclinar a poltrona. Como dar conta da duração de uma viagem no tempo? Idealmente, para se chegar a um destino, há um período de voo estipulado. No entanto, nem sempre acontece de o tempo cronológico obedecer ao plano de voo inicial. Os motivos variam: um aeroporto fechado por causa de um mau tempo, que impede a aeronave de aterrissar; um problema técnico; uma diferença grande de fuso horário etc.
Mas, independente de atrasos ou antecipações, o tempo que se passa em uma aeronave não é contado, psiquicamente, da mesma forma por todas as pessoas que ali estão. O substantivo tempo vem do latim tempus; temporis. Ambos os termos significam a divisão da duração em instante, segundo, minuto, hora, dia, mês, ano etc. A pergunta a se fazer é como demarcar, para além dessa divisão cronológica, a duração de uma viagem ou o que se passa na cabeça de alguém nesse período?
Assim, 50 minutos podem parecem 50 horas para aquela pessoa que muito esperou por um determinado encontro, mas também podem significar 5 minutos para aquela que quer procrastinar aquilo que lhe aguarda em seu destino final. Essa oscilação na duração temporal não seria muito parecida com o tempo lógico de uma sessão analítica?
Penso que sim. Muitas vezes, parece que uma sessão de análise durou horas, quando, cronologicamente, foram alguns minutos. Em algumas, a pessoa foi transportada para um tempo da infância, em outras, para pensar na vida dali a 5 anos. Enfim, subjetivamente, o tempo em cada sessão é singular e leva a cada um pensar em diferentes modos de lidar com ele.
Sabemos que a um passageiro é impossível controlar o tempo de uma viagem. Da mesma forma, quando se entra em uma sessão de análise, não se pode ordenar ao inconsciente “vamos, mostre a sua cara agora”! “Signifique, faça um lapso!!!”. E quem disse que o tempo de uma sessão se finda quando o paciente sai do consultório?
O tempo de uma viagem, tal qual do inconsciente, tem um ritmo, um compasso próprio que independe da vontade individual. É preciso esperar ativamente sua manifestação, a sua hora, e estar atento aos diversos avisos que ele nos dá.
Durante essa “viagem”, lembro-me de uma paciente de oito anos que um dia me disse: “minha mãe falou que a viagem era muito longa, mas eu marquei no relógio e chegamos numa hora diferente da que ela falou, e estamos em outro país, como pode?”. A indignação dessa criança é maravilhosa. Nessa pouca idade, ela ainda não calcula a diferença de fuso-horário. Pensa que só existe um único tempo em todo o mundo.
E o que acontece quando alguém cresce e ainda está fixado em uma posição cristalizada com relação ao tempo? Quantas pessoas literalmente “pararam” no tempo? Penso que é justamente com essas questões que um analista lida quando recebe alguém que está calcado em uma única verdade a respeito do tempo, seja do passado ou do futuro.
Ao contrário do tempo cronológico que “não pára, não pára não”, funcionando sempre linearmente, o tempo da psicanálise opera por retroação. Para frente e para trás em um vaivém constante. É, portanto, nesse vaivém, idas e vindas da fala do analisando que o analista atua, com uma pergunta aqui, uma pausa ali, para surpreender o sujeito, provocando uma turbulência em suas certezas e tirando-o do piloto automático.
Antes de aterrissar e pedir para que coloquem a poltrona na posição vertical, lembremo-nos de uma recomendação de Lacan (1953, p. 253): “a arte do analista deve consistir em suspender as certezas do sujeito, até que se consumem suas últimas miragens. E é no discurso que deve escandir-se a resolução delas”.

“Quanto tempo dura seu plano de voo?” é parte da série “Ponte Aérea”. Confira o primeiro texto da série aqui.

Silêncio na ponte aérea?

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Grande agitação no saguão. Todos os passageiros deverão dirigir-se a outro portão de embarque. Assim, tais quais beduínos no deserto, os passageiros caminham com suas bagagens. O percurso nem é tão longo, mas parece uma eternidade, para quem, há mais de uma hora, tenta embarcar em um voo, sentar-se na aeronave, respirar e desfrutar de um pouco de silêncio, seja para dormir, ler um bom livro ou planejar oque fará na cidade de destino.

Toda semana, meus pés experimentam a sensação de, pelo menos por 50 minutos, flutuarem. Decolam em São Paulo e pousam no Rio de Janeiro. Não interessa o motivo da viagem. Cada um sabe de si, em seu silêncio mais perturbador que o motor do avião! Mas, esse silêncio tem seu tempo contado. Não se pode escapar do fato de que alguém vai reclinar a poltrona, pedir licença para se sentar no banco ao lado, esbarrarem alguma parte do seu corpo, pedir desculpas, porque pisou no seu pé ou mesmo pedir para baixar a persiana da janela. Quando finalmente o avião está preparado para a decolagem e você pensa que o silêncio vai reinar nos ares, lá vêm os intermináveis avisos! É preciso abstrair, caso contrário, você não “descola”!

Enfim, conseguir ficar em silêncio ou mesmo desfrutar de, ainda que por pouco tempo, um estado de ausência de barulho de qualquer ordem, é uma ilusão. Quando o avião decola, estamos mais perto do “mundo da lua”. No entanto, parece que ninguém pode se permitir estar nesse estado, em momentos de pura leveza e contemplação.

Da janela, é só você começar a olhar as nuvens se movimentando em slow motion que lá vem alguém pedindo para levantar a poltrona, puxar um papo sobre um último episódio do mundo da política ou de banalidades do dia a dia. A impressão que tenho é que pouco se suporta o silêncio. Quanto poderíamos aprender com ele. Ao invés disso, ninguém o suporta. Há sempre alguém mastigando um chiclete, falando com quem acabou de conhecer, questionando os comissários de bordo a respeito de qualquer coisa. Enfim, mais que ouvir o silêncio, as pessoas querem ouvir o som da própria voz ou de um outro.

De São Paulo ao Rio de Janeiro são 50 minutos em que o passageiro experimenta a sensação de uma imaterialidade. Enquanto o avião não aterrissa, são outros sons que quebram o silêncio da rotina diária. O telefone não vai tocar, não chegará aviso de mensagem com mais um problema para resolver, a campainha não será ouvida, o chefe não vai lhe cobrar nenhum relatório… O tempo é curto e passa tão rápido que quando, finalmente, a pessoa pensa que o silêncio reinará, lá vêm os avisos de preparação para a aterrisagem.

É chegada a hora em que o sujeito vai ter que “cair na real” e aterrissar nos barulhos e sons da vida cotidiana, ou melhor, da sua psicopatologia da vida cotidiana.Assim, ao invés de ouvir tantos barulhos de buzinas e celulares, que tal pararmos para pensar na necessidade de ouvirmos nosso silêncio? Esse sim precisa ser escutado atentamente, não importando quando e onde. Trata-se de um silêncio que não cessa de buscar maneiras de não se fazer ouvir. E por falar nisso, que cartão de embarque você escolherá para ouvi-lo?

 

“Silêncio na ponte aérea?” é parte da série “Ponte Aérea”, com novos textos a serem publicados.

A psicanálise (en)cena

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Sábado à noite, no Rio de Janeiro, calor de matar! No primeiro final de semana de abril, quando muitos poderiam estar caminhando à beira-mar ou jogando uma conversa fora, muitos cariocas, como eu, fomos assistir à peça no Teatro Maison de France. Valeu muito a pena. Tive boas surpresas. O nome do teatro tem todo o glamour francês, no entanto, o público, na sua maioria jovem, viu uma peça despojada em que o brilhantismo estava na atuação marcante dos personagens.
Como a peça veio parar no Brasil? Motivado pelo convite do Freud Museum, em Londres, Antonio Quinet escreveu e montou uma peça teatral em língua inglesa. Sua estreia ocorreu em 12 de novembro de 2013. Posteriormente, Quinet produziu a versão brasileira dessa peça. Ela está registrada no livro Hilda e Freud (2016), pela Giostri Editora, de São Paulo. Na obra, Hilda Doolitle, poeta, escritora e ensaísta da língua inglesa (1886-1961) rememora sua análise com Freud.
Três quadrados apoiados no palco. Enganou-se quem pensou que cada um pudesse se referir à típica cena edípica: pai, mãe e filho. Esses grandes quadrados ora eram usados para sentar, ora para deitar. Nada em excesso. Quinet surpreendeu ao tirar de cena o típico divã de Freud ou as reproduções das obras de arte do psicanalista, tão comumente divulgadas. O diálogo entre os personagens foi o que manteve a transferência do espectador com os atores, ou melhor, com Hilda e Freud.
A maestria de Quinet está no esvaziamento proposital das cenas típicas e até caricaturais de um consultório de um psicanalista, sobretudo de Freud. Quem foi na ânsia de fazer vários “flashes”, ainda que sem luzes, caiu do cavalo, ou melhor, do divã! Apresentada em um só ato, a peça fez com que o espectador tivesse que se confrontar, de uma só vez, com a sutileza de diálogos cuidadosamente arquitetados pelo autor.
Por falar em queda, o chão do palco, todo revestido de espuma, amortecia não só a quebra de expectativa como também criava uma atmosfera onírica a partir da qual não se ouvia nenhum passo dos personagens: tanto Freud quanto Hilda pareciam levitar no pulsar incessante do inconsciente.
As sessões entre Hilda e o pai da psicanálise deram o que falar. Quinet conseguiu, em doze cenas, destacar os momentos mais cruciais da análise da paciente. Hilda foi procurar Freud por causa de um bloqueio na escrita. É verdade, caro leitor, mesmo as escritoras mais geniais podem passar por “maus pedaços”. Por que ela, sendo poeta, não conseguia mais escrever? Eis a dúvida que a levou ao divã.
Hilda foi corajosa. Sabia que era no divã que teria de encontrar modos de superar a angústia da página em branco. Assim, ao longo da análise, por meio da escuta e intervenções de Freud, a escritora pôde se deparar com a falta essencial que marca o ser humano. Ao reconhecê-la, a paciente resolveu, em suas palavras, a sua “equação pessoal”. Em um dado momento, Hilda disse: “As mulheres são perfeitas”. Ao que Freud respondeu, quebrando todas as suas expectativas: “Perfeitas com suas faltas”.
Eis uma das lições mais preciosas da psicanálise: quanto mais o ser humano se depara com a sua falta, menor a expectativa que cria de si mesmo e dos outros. Não sendo mais afligido pela busca da completude, cada pessoa pode aprender, à sua maneira, a lidar com os inesperados da vida, com “algo novo para ser encontrado”.
Quinet mantém no espectador essa falta, sugerindo-lhe não uma completude em um cenário elegantemente povoado. Ao evidenciar o vazio, permite com que cada um, à sua maneira, ache um modo de se encontrar com a psicanálise! Quinet não está interessado em dar uma “lição” do que é a psicanálise. Ele segue, corajosamente, o desejo. E você, em qual papel escolheu atuar?

Elogio ao incompleto: Só a morte completa a vida

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Pedro Henrique, 42 anos, um advogado bem-sucedido, contou-me que não entendia os motivos pelos quais, apesar de seu sucesso pessoal e profissional, não conseguia se libertar de uma angústia que o aprisionava. Já tinha procurado ajuda de vários médicos e feito uma bateria de exames. Buscava uma resposta para o grande “x” da sua vida. Dizia que sempre faltava uma parte que, na visão dele, o completaria.
Não teve nenhum sucesso. Foi por essa razão que veio procurar a minha ajuda, indicada por um médico da família. Nas primeiras sessões, contou-me como se sentia infeliz porque, apesar de ter seguido o script traçado por seus pais, ter conseguido um bom emprego, um casamento feliz, achava que tinha saltado uma parte da vida. Era como se uma folha aquele script tivesse voado de suas mãos. Qualificava-se como uma pessoa blasé: nada o comovia.
Durante as sessões, eu tentava encontrar algo que escapasse à cadeia da fala tão rigorosamente construída por ele. Aliás, Pedro Henrique dominava a arte da retórica. Um dia, quando cortei a sessão, lhe disse: “Pedro, ficamos por aqui”. Imediata e abruptamente, o paciente me interrompeu e falou: “Pedro Henrique”! Ao ver essa reação, eu disse: “sim, Pedro. Eu me chamo Maria da Glória e ora as pessoas me chamam pelo nome composto, ora por Glória ou, ainda, apenas Maria. Isso é um problema para você?”
Foi nesse momento que o inconsciente se abriu. Contou-me que exigia que o chamassem de Pedro Henrique porque foi fruto de uma gravidez gemelar. Uma única placenta o unia ao seu irmão. Um se chamaria Pedro e outro Henrique. No entanto, um bebê morreu no parto. Teria sido o Pedro ou o Henrique? Os pais, diante dessa situação, deram-lhe o nome composto de “Pedro Henrique”. Passou a “lembrar-se” da sensação estranha que sentia quando as pessoas da família olhavam para ele. Pareciam sempre procurar outra pessoa.
Pedro Henrique havia sido incapaz de sustentar o enigma da morte. Carregava o nome do irmão morto na tentativa de se completar. Não valia mais ter entendido que não é impossível interpretar a morte? Teria se livrado de ter de viver uma vida dupla, composta por um ser humano vivo e outro morto.

O outro samba da psicanálise

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Um psicanalista funciona ouvindo os “surdos” da bateria da vida.

O sucesso da escola de samba nasce do compromisso dos participantes com a Escola na qual desfilam. Do mesmo modo, o sucesso de uma análise está no quanto a dupla envolvida, analista e analisante vestem a camisa da direção da cura.
Engana-se quem pensa que um desfile de uma escola é feito de maneira aleatória ou improvisada. São meses de trabalho de pesquisa, de elaboração, de amadurecimento de uma ideia. Não há nenhuma garantia de sucesso. Os imprevistos podem ser de diversas ordens. Um carro que quebra, uma pessoa que desiste em cima da hora, um cálculo errado do tempo etc. Quem desfila precisa lidar com tudo o que aparece.
Ao retroagir sobre o enredo de sua vida, quem sofre se dá conta de que seu samba atravessou. Não consegue escutar nem sua voz, nem a do outro. Perdeu pontos na harmonia. Não conseguiu manter vivo o pulsar do inconsciente. Na evolução, o fluxo não foi constante. Abriu brechas no meio de sua vida. Vai para a análise vestindo uma série de fantasias que encontrou ao longo da vida, sem saber muito bem por que. A chegada não empolga o analista.
Em análise, o paciente percebe que sempre seguiu o mesmo enredo. É por isso que o samba sempre sai com a mesma batida. Talvez, na busca de construir um desfile impecável, sem pecados e ideal aos olhos dos outros (a grande comissão julgadora), a pessoa se perdeu em tantas fantasias (rei, pirata, jardineira) e vacilou quanto ao lugar que gostaria de ocupar.
O analista é aquele que vai ajudar a pessoa a construir outro enredo. Ele escuta a desafinação ou quando a bateria não está acompanhando o ritmo do samba. Um psicanalista funciona como aquele que pode ouvir os “surdos” da bateria da vida de alguém. Trata-se de não permitir que o samba atravesse. Ao escolher por um tratamento psicanalítico, diferentemente de se calcar em critérios pré-estabelecidos por uma comissão julgadora, a pessoa arrisca-se a encarar o imponderável do desejo inconsciente. Trata aquilo que lhe é mais íntimo.
O carnaval pode até acabar na quarta-feira de cinzas. A praga analítica não passa. Com Freud, sabemos que o inconsciente pulsa constantemente. Nesse pulsar, cada qual aprenderá a construir outro samba.

Humanizar-se no SUS?

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Aumentar o tempo de formação dos médicos não basta para tornar os currículos dos cursos de medicina mais humanizados.

O Ministro da Educação Aloizio Mercadante anunciou uma alteração na grade curricular do curso de medicina. A partir de 2015, o curso passa de seis para oito anos de duração. Nos últimos dois anos, o ciclo de formação será feito no Sistema Único de Saúde (SUS). Na avaliação de Mercadante, a experiência no SUS vai “humanizar” a formação universitária. Frente a essa posição, perguntamos: Basta atender pessoas desprovidas de recursos financeiros para ficar mais humano? Quais são os principais nós dessa formação?
Lembremos que a palavra “diagnóstico” vem do grego, significando “ver através”. Indica que o profissional precisa saber atravessar a cortina de fumaça das palavras que lhe são dirigidas quando o paciente chega com suas queixas. Se tomarmos, por exemplo, uma especialidade médica como a ginecologia, veremos que, na prática, vários dos sintomas relatados excedem ao campo do que compete à ação do ginecologista. Nesse momento, pode fazer duas ações: encaminhar a paciente para outro profissional ou peneirar o que deve ou não ser valorizado daquilo que está sendo relatado.
Para iluminar as complicações de uma época em que os médicos de família são exceção, e as especialidades se multiplicam, procuramos o professor José Roberto Filassi, professor livre docente em ginecologia pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador de mastologia do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP) para discutir a prática do consultório do ginecologista, profissional que atende mulheres cujas queixas físicas, algumas vezes, excedem ao corpo biológico.
Filassi conta que alterações de peso, distúrbios menstruais e secreção vaginal são as principais queixas das mulheres que procuram o ginecologista atualmente. Para o médico, a partir do reconhecimento da diferença entre o quadro físico e, por exemplo, os efeitos das alterações hormonais e consequentes mudanças no humor, ginecologista e psicanalista podem fazer parcerias produtivas. Segundo ele, às vezes, antes mesmo do exame clínico, é possível perceber que a queixa da mulher advém de um sofrimento psíquico.
Em sua clínica, dor mamária e dor ou incômodo na região vulvar – sem sinais clínicos que justifiquem esse aparecimento – talvez sejam os exemplos mais comuns, devido à cancerofobia (horror mórbido do câncer). Quando isso ocorre, o ginecologista é, segundo Filassi, convidado a se portar como uma espécie de “amigo Freud”, que escuta as queixas da esfera emocional. Para o médico, essa tendência aumenta nas fases da vida da mulher, bem marcadas por alterações emocionais: adolescência, gravidez e o climatério.

Na avaliação de Filassi, é nessa hora que, para muitos profissionais, sobra razão e falta sensibilidade. Muitos médicos se apavoram com o que julgam ser o sofrimento psíquico das mulheres e passam a, por exemplo, aplicar a terapia da reposição hormonal indiscriminadamente. Para ele, isso é um erro. O médico deveria saber “escutar”. A reposição hormonal visa a, exclusivamente, manter a qualidade de vida feminina e sua aplicação é indicada somente quando se fizer necessária. Trata-se de uma terapia individualizada para cada mulher.
Outros exemplos de quadros que exigiriam, por parte do médico, uma escuta mais apurada são aqueles em que a mulher chega dizendo: “Minha avó teve câncer de mama, minha mãe também” e pede uma mastectomia total. Para Filassi, trata-se de uma decisão que precisa ser cuidadosamente avaliada a partir das orientações dadas por um mastologista. Isso porque essa cirurgia é uma conduta de exceção no tratamento e “não deve se tornar regra”.
Filassi ainda aponta que outra situação complicada na clínica ginecológica do século 21 são os novos medicamentos que têm impactos na sexualidade humana, tais como os “famosos azulzinhos”. Eles têm dado origem a sintomas inéditos, tais como HPV em pessoas com idade avançada. O ginecologista afirma que explicar a uma mulher acima dos 50 anos com relacionamento estável que está com HPV é muito delicado, pois, normalmente, ela fica extremamente preocupada e revoltada.
Tendo em vista o exposto, pensamos que repensar o currículo dos cursos de medicina é, de fato, bastante importante, mas não se resume a fazer os jovens profissionais a atender neste ou naquele serviço de saúde. Para aprender a parte “humanitária” para lidar com o paciente, vai ser necessário um pouco mais do velho e bom “amigo Freud”. Mais especificamente, é hora de voltar a aprender a ler o sintoma a partir dos indícios clínicos, tal como Freud nos ensinou.
Existe um limite muito tênue entre a escuta de um médico clínico e o de um psicanalista. Se, para o segundo, é imprescindível localizar os componentes físicos das queixas que lhe são dirigidas e encaminhar o paciente para um médico, para o primeiro, também é necessário reconhecer os limites de sua ação. Será que isso precisa, necessariamente, ser aprendido no SUS? Não sei se as pessoas que já tiveram a necessidade de utilizar esse serviço de saúde se sentiram comparativamente mais bem escutadas do que em outros.

Publicado Originalmente em 13 de setembro de 2013.

TPM é o outro nome da angústia?

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A sigla TPM, tão conhecida como Tensão Pré-menstrual, bem poderia designar outra coisa: TEMPO PARA MOSTRAR. Mostrar o que? Que algo não anda bem em mim. TPM poderia ser um nome bonito para designar o vazio que as mulheres experimentam, sem saber o que é. Poderia ser uma sigla que, ao nomear suas angústias, torna-as mais palatáveis, permitindo tratá-las.
Ao receber, de um médico, o diagnóstico de TPM, é como se uma mulher tomasse para si o direito de permanecer tensa. É licença para angústia. Muita gente se ancora nesse diagnóstico para justificar suas dificuldades psíquicas. Dar um diagnóstico de TPM pode, portanto, ser muito delicado: a pessoa pode, a partir dele, se sentir à vontade para insultar o marido, ignorar o filho, chorar sem motivos…
É como se, em certas épocas, comportamentos inaceitáveis se tornassem respeitáveis e, até, esperados. Afinal, “estar de TPM” virou, em alguns casos, justificativa para tudo. A TPM é como um problema de junta: junta tudo e joga fora.
Do ponto de vista médico, a TPM é uma síndrome, um conjunto de sintomas. Do ponto de vista psicanalítico, é um lembrete mensal de que a mulher não está confortável com o aparelho reprodutor feminino.
A sensação da cólica menstrual, fisiologicamente, corresponde à força que o corpo precisa fazer quando ocorre a descamação do endométrio. Pode ser desconfortável, mas não precisa ser dolorido. Ou seja, não precisa ser um carma mensal para a mulher.
O período menstrual varia de mulher para mulher. De todo modo, é até lembrado em canções da música brasileira, como “Cor de Rosa Choque”, de Rita Lee. Em um dos versos, se lê: “mulher é bicho esquisito, todo mês sangra”. O que tem de esquisito nisso? Se uma pessoa dá consistência à esquisitice de seu corpo, o que é natural passa a ser insuportável.
A TPM, portanto, é sinal do que? Sinal de que uma parceria entre um médico e um psicanalista poderia ser bem-vinda. Na mesma medida em que a pessoa pode encontrar, no ginecologista, tratamento para as dores fisiológicas, pode buscar, em um psicanalista, tratamento para os sintomas psíquicos que buscam expressão em seu corpo.