O outro samba da psicanálise

Gloria 3

Um psicanalista funciona ouvindo os “surdos” da bateria da vida.

O sucesso da escola de samba nasce do compromisso dos participantes com a Escola na qual desfilam. Do mesmo modo, o sucesso de uma análise está no quanto a dupla envolvida, analista e analisante vestem a camisa da direção da cura.
Engana-se quem pensa que um desfile de uma escola é feito de maneira aleatória ou improvisada. São meses de trabalho de pesquisa, de elaboração, de amadurecimento de uma ideia. Não há nenhuma garantia de sucesso. Os imprevistos podem ser de diversas ordens. Um carro que quebra, uma pessoa que desiste em cima da hora, um cálculo errado do tempo etc. Quem desfila precisa lidar com tudo o que aparece.
Ao retroagir sobre o enredo de sua vida, quem sofre se dá conta de que seu samba atravessou. Não consegue escutar nem sua voz, nem a do outro. Perdeu pontos na harmonia. Não conseguiu manter vivo o pulsar do inconsciente. Na evolução, o fluxo não foi constante. Abriu brechas no meio de sua vida. Vai para a análise vestindo uma série de fantasias que encontrou ao longo da vida, sem saber muito bem por que. A chegada não empolga o analista.
Em análise, o paciente percebe que sempre seguiu o mesmo enredo. É por isso que o samba sempre sai com a mesma batida. Talvez, na busca de construir um desfile impecável, sem pecados e ideal aos olhos dos outros (a grande comissão julgadora), a pessoa se perdeu em tantas fantasias (rei, pirata, jardineira) e vacilou quanto ao lugar que gostaria de ocupar.
O analista é aquele que vai ajudar a pessoa a construir outro enredo. Ele escuta a desafinação ou quando a bateria não está acompanhando o ritmo do samba. Um psicanalista funciona como aquele que pode ouvir os “surdos” da bateria da vida de alguém. Trata-se de não permitir que o samba atravesse. Ao escolher por um tratamento psicanalítico, diferentemente de se calcar em critérios pré-estabelecidos por uma comissão julgadora, a pessoa arrisca-se a encarar o imponderável do desejo inconsciente. Trata aquilo que lhe é mais íntimo.
O carnaval pode até acabar na quarta-feira de cinzas. A praga analítica não passa. Com Freud, sabemos que o inconsciente pulsa constantemente. Nesse pulsar, cada qual aprenderá a construir outro samba.

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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