Trouxe a filha como se fosse um brinquedo quebrado. Cabia a mim consertá-la.
A Clínica do Real privilegia a monstração, aquilo que precisa ser passado no mundo, mas não consegue entrar no desfiladeiro das palavras. Analisar como funciona a clínica com crianças ajuda a revelar como esse trabalho se dá. Com as crianças pequenas, mais comumente, trabalha-se no nível do sem palavras. O caso Maíra ilustra esse aspecto.
Aos 11 anos, quando me foi trazida pela mãe, falava muito pouco e, quando o fazia, mostrava pobreza lexical e uso de frase muito simples e truncadas. Muitas vezes, ao invés de responder minhas perguntas, ela as repetia em eco, mesmo as mais simples como: – Como é o seu nome? Mesmo os meus gestos eram imitados por ela quando interagia comigo. Esteve em análise durante dois anos e quatro meses.
Maíra chegou ao meu consultório acompanhada de sua mãe, que a trouxe por indicação de um pediatra. Segundo ele, todos os exames clínicos da menina estavam normais, mas ela sofria de enurese noturna. A mãe já tinha procurado ajuda de um neurologista e de um nefrologista, em vão. A solução temporária estava sendo forrar o colchão com um plástico. Trouxe a filha como se fosse um brinquedo quebrado. Cabia a mim consertá-la.
Narrou-me que o médico indicou uma análise por julgar que o que a menina tinha era “emocional”. Pensando, acabou supondo que a menina havia se traumatizado com o nascimento do irmãozinho, à época, com menos de um ano. Como o bebê teve problema de refluxo quando nasceu, demandou maiores cuidados da mãe, que ficava acordada a noite inteira em vigília para evitar o risco do filho engasgar após ser alimentado. Maíra havia ficado em segundo plano.
Os dois filhos tinham sido gerados por acidente. A mãe não queria tocar no assunto de como foi a gestação da menina, fugindo pela tangente quando eu lhe perguntava algo. Quanto ao pai da menina, era, no dizer da esposa, um “homem casado com o mercado de capitais”. As poucas vezes que via a menina era quando, por um acaso, ainda estava em casa antes da criança ir para o colégio.
O início do tratamento exigiu muito desprendimento por parte do analista. A menina desvitalizava o que eu falava. Sempre era monossilábica e economizava cada palavra que dirigia a mim. Se eu lhe perguntava: “Como foi na escola?”, me respondia: “foi muito bom”. Se eu insistia em pedir-lhe explicações do que significava esse “muito bom”, limitava-se a responder: “muito bom”. Durante uns quatro meses em análise, Maíra nunca se queixou da enurese.
Acabei tentando recorrer a alguns atalhos para tocar a menina. Convidei-a para desenhar. Percebi que todos os seus desenhos eram monocromáticos: por exemplo, fazia um cenário com tudo verde (carro, casa, criança etc.). Todos os traços eram milimetricamente controlados por ela. Economizava em tudo, inclusive nos pedaços de papel dedicados aos desenhos. Em poucas palavras: a menina estava, com os desenhos, reproduzindo o mesmo padrão esvaziado de sua fala…
O ponto de virada aconteceu quando eu notei que ela usava todas as cores, menos o amarelo. Resolvi instigá-la. Antes de sua chegada, preparei uma mistura amarelada em ponto de um mingau ralo. Convidei-a para brincar com a tinta ao mesmo tempo em que lhe perguntei por que ela nunca escolhia o amarelo para suas produções. Muito brava, respondeu-me que não gostava e ponto. Continuei a provocá-la, imitando seu modo de falar.
Muito irritada, teve uma explosão de raiva. Começou a molhar as mãos na tinta e a sacudi-las por todos os lados. Respingou o amarelo por todos os cantos, inclusive em mim. Não satisfeita, derrubou a vasilha, fazendo com que uma grande quantidade de tinta caísse em mim. Assustou-se, provavelmente esperando ser repreendida. Limitei-me a abraçá-la, sem dizer uma única palavra. Em prantos, aconchegou-se em meus braços.
Era uma quinta-feira. Na segunda, a mãe me ligou dizendo que, a partir daquela data, Maíra nunca mais urinou na cama. Após esse primeiro efeito terapêutico, tinha começado a análise de Maíra.