O amarelado silêncio do analista

Brasil 6

Trouxe a filha como se fosse um brinquedo quebrado. Cabia a mim consertá-la.

A Clínica do Real privilegia a monstração, aquilo que precisa ser passado no mundo, mas não consegue entrar no desfiladeiro das palavras. Analisar como funciona a clínica com crianças ajuda a revelar como esse trabalho se dá. Com as crianças pequenas, mais comumente, trabalha-se no nível do sem palavras. O caso Maíra ilustra esse aspecto.
Aos 11 anos, quando me foi trazida pela mãe, falava muito pouco e, quando o fazia, mostrava pobreza lexical e uso de frase muito simples e truncadas. Muitas vezes, ao invés de responder minhas perguntas, ela as repetia em eco, mesmo as mais simples como: – Como é o seu nome? Mesmo os meus gestos eram imitados por ela quando interagia comigo. Esteve em análise durante dois anos e quatro meses.
Maíra chegou ao meu consultório acompanhada de sua mãe, que a trouxe por indicação de um pediatra. Segundo ele, todos os exames clínicos da menina estavam normais, mas ela sofria de enurese noturna. A mãe já tinha procurado ajuda de um neurologista e de um nefrologista, em vão. A solução temporária estava sendo forrar o colchão com um plástico. Trouxe a filha como se fosse um brinquedo quebrado. Cabia a mim consertá-la.
Narrou-me que o médico indicou uma análise por julgar que o que a menina tinha era “emocional”. Pensando, acabou supondo que a menina havia se traumatizado com o nascimento do irmãozinho, à época, com menos de um ano. Como o bebê teve problema de refluxo quando nasceu, demandou maiores cuidados da mãe, que ficava acordada a noite inteira em vigília para evitar o risco do filho engasgar após ser alimentado. Maíra havia ficado em segundo plano.
Os dois filhos tinham sido gerados por acidente. A mãe não queria tocar no assunto de como foi a gestação da menina, fugindo pela tangente quando eu lhe perguntava algo. Quanto ao pai da menina, era, no dizer da esposa, um “homem casado com o mercado de capitais”. As poucas vezes que via a menina era quando, por um acaso, ainda estava em casa antes da criança ir para o colégio.
O início do tratamento exigiu muito desprendimento por parte do analista. A menina desvitalizava o que eu falava. Sempre era monossilábica e economizava cada palavra que dirigia a mim. Se eu lhe perguntava: “Como foi na escola?”, me respondia: “foi muito bom”. Se eu insistia em pedir-lhe explicações do que significava esse “muito bom”, limitava-se a responder: “muito bom”. Durante uns quatro meses em análise, Maíra nunca se queixou da enurese.
Acabei tentando recorrer a alguns atalhos para tocar a menina. Convidei-a para desenhar. Percebi que todos os seus desenhos eram monocromáticos: por exemplo, fazia um cenário com tudo verde (carro, casa, criança etc.). Todos os traços eram milimetricamente controlados por ela. Economizava em tudo, inclusive nos pedaços de papel dedicados aos desenhos. Em poucas palavras: a menina estava, com os desenhos, reproduzindo o mesmo padrão esvaziado de sua fala…
O ponto de virada aconteceu quando eu notei que ela usava todas as cores, menos o amarelo. Resolvi instigá-la. Antes de sua chegada, preparei uma mistura amarelada em ponto de um mingau ralo. Convidei-a para brincar com a tinta ao mesmo tempo em que lhe perguntei por que ela nunca escolhia o amarelo para suas produções. Muito brava, respondeu-me que não gostava e ponto. Continuei a provocá-la, imitando seu modo de falar.
Muito irritada, teve uma explosão de raiva. Começou a molhar as mãos na tinta e a sacudi-las por todos os lados. Respingou o amarelo por todos os cantos, inclusive em mim. Não satisfeita, derrubou a vasilha, fazendo com que uma grande quantidade de tinta caísse em mim. Assustou-se, provavelmente esperando ser repreendida. Limitei-me a abraçá-la, sem dizer uma única palavra. Em prantos, aconchegou-se em meus braços.
Era uma quinta-feira. Na segunda, a mãe me ligou dizendo que, a partir daquela data, Maíra nunca mais urinou na cama. Após esse primeiro efeito terapêutico, tinha começado a análise de Maíra.

Comer até morrer: tratamento da dívida impagável?

Turquia 1

Fica uma interrogação a respeito de como nós, psicanalistas, compreendemos a cirurgia bariátrica. Se ela incide sobre o corpo biológico, como fica o corpo pulsional após sua realização?
Na Conversação clínica IPLA 2015, intitulada “O corpo, de Freud a Lacan, pelos casos clínicos”, Helainy Andrade apresentou “Dos 170 quilos ao apetite de viver”. Bem escrito, o relato instigou. Era a história de uma jovem senhora de 37 anos, chamada Bethânia. Como ler um caso clínico? Qual recorte o leitor vai privilegiar? Decidi fazer o exercício de interpretar esse caso com a grade de leitura da Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano – USP.
Demanda inicial de análise: Segundo a analista, a demanda de análise de Bethânia era poder libertar-se da “prisão emocional” com relação à mãe. Helainy, entretanto, privilegiou, desde o título do relato, outro tipo de prisão: o anteparo que 170 quilos colocavam entre a paciente e o mundo. Logo, a analista interessou-se pela prisão corporal. A demanda de se livrar da prisão corporal não foi explicitada por Bethânia. Ao mesmo tempo em que ela nada dizia a respeito de sua obesidade, narrava, como se não tivesse importância, as limitações impostas por seu corpo. Helainy frisa que Bethânia evitava perceber a existência do corpo próprio. Ficava o dia todo no trabalho e, se preciso, à noite também. Não tinha amigos e nenhuma vida social. O único fator ligado à sexualidade que dava prazer à jovem senhora era a compra, duas vezes no mês, de roupas de cama na melhor loja da cidade.
Os principais significantes: Na história narrada por Helainy, os significantes que se destacam estão ligados ao par visível/invisível. A paciente narrava os modos por meio dos quais tentava se tornar invisível e não se dava conta de que com o seu corpo grande e o seu mau-humor causava o efeito contrário. Essa posição estaria ligada a um “como se”, especificando, à dificuldade de legitimar suas conquistas.
Modos preferenciais de gozo: O gozo de Bethânia estava relacionado ao “se fazer ver”. Assim, o que poderia parecer apenas um distúrbio alimentar estava relacionado com a satisfação obtida na quebra da expectativa alheia. A analista destaca tanto a insensibilidade de Bethânia ao próprio corpo quanto suas tentativas de se fazer invisível. Temos, então, um exemplo de gozo acéfalo que, para se manter, precisava da invisibilidade das suas consequências.
A direção clínica adotada pela analista: Inicialmente, Helainy acatou a demanda de Bethânia. Ajudou-a a “recuperar a vida” das mãos da mãe, desmantelando a história que ela contara para si própria. Para tanto, a analista positivou as conquistas da paciente até aquele momento (como, por exemplo, o seu notável sucesso profissional). Fazendo isso, a analista incidiu sobre sua dívida de gratidão. Aparentemente, isso se deu porque Bethânia pôde legitimar as conquistas da sua vida.
Modos de pinçamento do gozo ao longo do tratamento: Nos primeiros três meses, Helainy foi a favor do sintoma relacionado com a demanda inicial. Deixou que a paciente esgotasse suas queixas a respeito da relação com a mãe. Então, a analista incidiu uma interrogação: O que você pode fazer que leve sua assinatura? Isso permitiu que Bethânia começasse a dar menos importância a sua ficção e se deslocasse na direção de si mesma, localizando seus próprios pontos de fixão. Para contar consigo mesma, que história ela iria escrever dali para a frente?
Algumas ponderações para além do relato: Gostaria de trazer um texto que lê a cirurgia de redução do estômago do ponto de vista da psicanálise. Chama-se “A cirurgia de redução do estômago: interdição de que?, de Silvia Esther Soria de Cuesta. A psicanalista correlaciona a obesidade mórbida com “as novas formas que o sofrimento toma em uma sociedade construída e mantida nos moldes do consumismo”. A partir de sua experiência clínica, afirma que os pacientes, ao relatar sua situação, experimentam a falta de palavras. Fica uma interrogação, portanto, a respeito de como nós, psicanalistas, compreendemos a cirurgia bariátrica. Se ela incide sobre o corpo biológico, como fica o corpo pulsional após sua realização?
No Seminário 20, Lacan afirma que “Nada força ninguém a gozar, senão o superego. O superego é o imperativo do gozo – Goza!” (p. 11). No caso de Bethânia, o supereu funcionava como parceiro do gozo desenfreado pela comida. Em outras palavras, se o supereu é a instância que instaura a culpa no sujeito, a ponto de “esmagá-lo”. O sentimento de culpa teria levado Bethânia a mortificar o seu corpo para que, morrendo, não se sentisse mais culpada por ter nascido ou por ter uma dívida impagável com a mãe.
No relato, parece haver uma articulação entre a comilança desenfreada e a sensação de dívida com a mãe. Era como se o superego dissesse: “Come até morrer! Goza com a tua comida!”. Afirma-se que Bethânia queria pagar a dívida com seu sofrimento e com o próprio corpo. Depreende-se, portanto, que a relação com a mãe gerava culpa e, essa, por sua vez, recrudescia o superego. Finalmente, o imperativo do superego poderia estar relacionado aos 170 quilos. Parece que sua posição de gozo se relacionava ao “fazer-se sugar” (pela mãe, mas não só). A paciente escolheu fazer uma cirurgia bariátrica para conter o gozo desenfreado quando justamente se viu aliviada da culpa. Abre-se, aí, um interessante campo de pesquisa para pensar no tratamento da obesidade mórbida. Podemos passar a palavra para a psicanálise, que terá muito a dizer.

Publicado originariamente em 18 de dezembro de 2015

Filho doente ou mãe deprimida?

Tcheca 1

Quando vieram relatar o que estava escrito no diário, descobri que Pedro ocupava o lugar de “sua majestade o bebê, como, em 1914, diria Freud, no texto “Sobre o narcisismo: uma introdução.
Recebo um casal aflito em meu consultório: foram encaminhados pelo pediatra, que me disse que a criança tinha distúrbios de sono. Coincidência ou não, naquela mesma semana tinha lido a respeito da pesquisa da fisioterapeuta e professora da USP, Patrícia Daniele Araújo, feita com 1.027 crianças entre três e cinco anos, matriculadas na rede de ensino da cidade de São Paulo. Segundo a pesquisadora, os principais distúrbios do sono que afetam as crianças são: 48,5% movimentam-se muito enquanto dormem, 38% acordam durante a noite e demoram a voltar a dormir, 35% roncam, 21% fazem xixi na cama. Ainda de acordo com a pesquisa, a maioria desses problemas tende a diminuir, naturalmente, após os cinco anos. Qual seria então o problema da criança que iria receber?
Pedro, 18 meses, chegou no colo dos pais. A entrevista foi tão confusa que não consegui entender a queixa da família nem a descrição dos sintomas da criança. A única coisa que os pais concordavam entre si era que o menino, terceiro filho de uma prole de três, não dormia à noite. A mãe era professora e o pai dentista. O filho mais velho tinha 17 anos e a filha do meio, 14. Os pais desejaram esse filho tardio. Após uma semana de tratamento, o menino passou a dormir. Milagre? Não, psicanálise.
Pedi que a família fizesse um diário detalhado de seu cotidiano e trouxesse na segunda entrevista. Chegaram a registrar três dias de convivência com a criança. Inspirada em O Seminário da Carta Roubada, de Jacques Lacan, eu queria estudar a rede de relações. Queria saber em que lugar cada um estava e, o mais importante, em que lugar tinham colocado Pedro.
Quando vieram relatar o que estava escrito no diário, descobri que Pedro ocupava o lugar de “sua majestade o bebê, como, em 1914, diria Freud, no texto “Sobre o narcisismo: uma introdução”. A família era freudiana exemplar. Ao “acolher” o bebê, estavam amando a si mesmos. Fascinados com o fato de que bebês não precisam limitar o seu narcisismo, tinham projetado, em Pedro, sua ânsia de gozo ilimitado. O acolhimento dos excessos do menino, infelizmente, estava prejudicando toda a família.
Um exemplo: ele impunha a todos os horários de dormir e de acordar. Assim, ninguém mais tinha disposição para o trabalho ou para a escola. Não era o bebê que tinha distúrbio do sono! Eram seus pais que tinham, por assim dizer, “distúrbio narcísico”! Supostamente temendo as reações espetaculares do bebê (como, por exemplo, bater a cabeça na parede quando alguém o contrariava), a família ficava refém de suas escolhas.
Nesse ponto, o estudo do texto “Nota sobre a criança”, de 1969, me serviu de auxílio. Lembremos que, para Lacan, “o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar”. Ao escutá-la, pude perceber que o menino era colocado como um band-aid de seu sintoma: o fato de estar 24 horas do seu dia ocupando-se do “Pedrinho”, desculpabilizava-a de ocupar o lugar de mulher e de mãe dos outros filhos. Projetando-se no filho, a mãe se oferecia ao deleite.
Tracei então um plano de ação para a família, exigindo consequência. Fui enfática ao dizer que cada um precisava se responsabilizar por sua parte. Combinamos que Pedro deveria ser mantido acordado durante o dia. Traçamos brincadeiras e atividades que poderiam ser feitas com ele. À noite, a família prepararia a criança para, paulatinamente, ir se acalmando: menos barulho, luz, televisão etc. A parte mais difícil foi convencer a mãe de Pedro, já que a sua tendência era a de sempre corresponder à demanda. Insisti.
Resultado: o bebê passou a dormir à noite e, consequentemente, a família pôde desfrutar do sono há muito tempo perdido. Não posso terminar esse relato com “foram felizes para sempre”. Tão logo o sintoma do menino cessou, sua mãe entrou em depressão. Ponto para Lacan e entendamos que o caso dentista é outra história. Publicado originariamente em 18 de dezembro de 2015

Publicado originariamente em 23 de outubro de 2015

Obesidade infantil: culpabilizar ou responsabilizar?

Brasil 5

A obesidade infantil tem aumentado ano após ano em vários países, inclusive, no Brasil. Desde o ponto de vista da psicanálise, podemos entender que esse sintoma alude a outra fome, que se expressa pelo gosto de alimentos que engordam.
“Pais deveriam ser punidos pela obesidade de filhos”? Este foi o título de um artigo publicado pela BBC News, de autoria Justin Parkinson, em 18/02/2015. O artigo da BBC explica que está debatendo a possibilidade de multar pais com filhos obesos. O que se perfila nessa proposta é a ideia de que os pais estejam sendo relapsos no cuidado com os filhos. Será que multá-los os tornaria mais atenciosos?
O tema é instigante. A obesidade infantil tem aumentado ano após ano em vários países, inclusive, no Brasil. Desde o ponto de vista da psicanálise, podemos entender que esse sintoma alude a outra fome, que se expressa pelo gosto de alimentos que engordam.
Sabemos que, atualmente, a configuração das famílias mudou. É cada vez maior o número de pais e mães que trabalham o dia todo, mas isso não justificaria o fato de terem se omitido de organizar um cardápio com os cuidadores ou instituições que recebem a criança. Dentro do seu orçamento e tempo, cada família pode encontrar formas criativas para lidar com a alimentação de seus filhos. A alimentação pode ser vista como um momento propiciador de descoberta de sabores, cheiros, comparações de textura etc.
Um dia, ouvi de uma mãe que vez ou outra ela levava seus filhos para lancharem fora. Ela não os proibia de escolher o lanche. Mas, querendo mantê-los longe dos excessos, já planejava o “antes e o depois”. Ela disse: “- Sabe, se sei que eles vão pedir, por exemplo, algo muito calórico, já imaginando a situação, ou vou dar uma volta a pé com eles antes de voltar para casa ou, ainda, paro o carro um pouco mais longe”!
Ter um filho doente excede ao preço de qualquer multa. Uma pessoa que paga, em dinheiro, por sua omissão, sente-se aliviado de sua culpa, mas não de sua responsabilidade. Entendemos que imputar culpa a alguém não leva a nada. Os interessados precisariam realizar um trabalho de responsabilização dos pais. A culpa leva os pais ao martírio, mas não fornece combustível para a ação implicada. Para tanto, é necessário assumir o lugar de pai ou de mãe desde o qual a pessoa se sente responsável pela saúde física, mental e psíquica dos filhos que decidiu ter.
É necessário compreender que a obesidade infantil é um sintoma dos pais que se manifesta nos filhos. Ele revela que algo não vai bem na família. Quando os pais não lidam com seus excessos e omissões, os filhos acabam se tornando depósitos dos efeitos das dificuldades paternas.
Maria da Glória Vianna é psicanalista, mestre em linguística pela PUC e membro do Corpo de Formação do IPLA.

Publicado originariamente em 25 de setembro de 2015

Criança insegura: de que medo falamos?

Franca 1

O que é uma criança insegura, como pode ser caracterizada?

Em julho de 2015, a Agência Brasil publicou a matéria “Crianças e adolescentes se sentem inseguros na capital paulista”. A reportagem divulgou uma pesquisa realizada pela Rede Nossa São Paulo, que entrevistou 805 crianças e adolescentes, entre 10 a 17 anos, em todas as áreas da cidade. O levantamento apontou que 67% dos entrevistados consideram a capital paulista insegura, sendo que o índice faz parte da pesquisa de Indicadores de Referência de Bem-Estar no Município. Os temores relatados referem-se às periculosidades comuns às metrópoles, como assaltos, balas perdidas, sequestros etc., que afetam a integridade física das pessoas. Mas, seria somente esse tipo de medo que afeta as crianças?
A experiência clínica mostra-nos que não. Vários motivos podem apontar para a insegurança infantil que, muitas vezes, em nada se relaciona com o sentimento de desamparo empírico. É muito comum pais e educadores procurarem a ajuda de um psicanalista para saber lidar com a “insegurança de uma criança”. Na vida real, o que é uma criança insegura, como pode ser caracterizada?
Vários comportamentos podem indiciar a insegurança infantil. Um menino que atrapalha a aula, querendo bancar “o valentão”, pode, na verdade, estar dando a ver o quanto se sente inseguro no ambiente escolar. Outro exemplo comum é a criança que faz bulling. Se, na superfície, ela parece estar se achando “o máximo”, a necessidade de desqualificar os demais mostra que não é bem assim.
Existem traços que denotam insegurança. Destacamos a precipitação, a incapacidade de esperar, a tentativa de completar a frase dos outros antes que esses terminem o que estão dizendo. Esses comportamentos indiciam para o adulto algo da insegurança da criança. O que ela não consegue falar, mostra por meio de ações que, muitas vezes, são rotuladas pelo adulto como incompreensíveis. “Insegurança”, portanto, é um predicativo que engloba um conjunto de reações que variam de criança para criança, mas que denotam que algo não vai bem.
É importante, ainda, fazermos outras perguntas: a criança nasce insegura? Há um gene que a torna insegura? É praga? Passa pela saliva ou o vírus está no ar? Depende do índice de periculosidade de uma metrópole? Não. Para a psicanálise, a insegurança é um sintoma de relações familiares que tornam a criança uma escrava do que ela pensa serem os ideais de sua família.
Nessa perspectiva, a criança fica tentando adivinhar o que os outros querem dela. Busca corresponder, exatamente, ao que pensa que deixaria papai e mamãe sempre felizes. Passa o dia todo a sondar o ambiente, na espreita. Quer captar o mood (o astral) de seu entorno. Vive como se fosse obrigada a ter uma bola de cristal para, antecipadamente, prever o que vai agradar ao outro. Por essa razão, tenta controlá-lo, fazendo com que ele apenas diga o que lhe seria agradável.
Se nós não observarmos bem, é difícil diferenciar a criança insegura da criança amorosa. A criança amorosa também tenta agradar ao outro, mas o faz de maneira equilibrada. Quer, espontaneamente, externar sua gratidão e seu amor.
A criança insegura, diferente, não age de modo espontâneo. Ela é refém do outro. Tenta moldar as suas expectativas para não ser repreendida. É uma espécie de ator, que adequa ao seu papel o que pensa ser o conveniente para o outro. Ao fazê-lo, se vê em uma armadilha, que ela mesma construiu. Teme ser desmascarada e perder o amor das pessoas que estão ao seu entorno. No fundo, a criança sabe que a pessoa que é amada é o personagem que ela representa. Está o tempo todo com medo de perder a afeição que recebe ao fazer o jogo das expectativas. Passa seus dias amedrontada. Mede seus passos. Angustia-se.
Se a insegurança não é genética e nem depende, unicamente, da realidade empírica, o ambiente familiar é essencial para que a criança consiga se libertar das expectativas do outro e, em si, construa um ponto de sustentação para dizer o que pensa e fazer o que gosta.

Publicado originariamente em 28 de agosto de 2015

Decálogo dos achados acidentais em uma análise

Tcheca 2

A formação do psicanalista implica ter se confrontado, na própria análise, com a surpresa dos achados acidentais:

  • Quem começa uma análise, pede ajuda. A pessoa espera que o analista possa tirá-la de seu sofrimento;
  • Portanto, o que a pessoa espera encontrar é uma SOLUÇÃO para seus problemas;
  • No curso de uma análise, ela descobre, em primeiro lugar, a sua implicação nos problemas dos quais se queixa. Normalmente, esse é primeiro achado acidental;
  • Mais tipicamente, a pessoa desenvolve intensos sentimentos de culpa. Passa a se martirizar pelo curso de sua vida;
  • Se persiste no exame desses desarranjos, acaba por encontrar uma força maior do que ela; força essa que, até aquele momento, vinha agindo como causa do sofrimento da pessoa. É o segundo achado acidental;
  • É provável que, nesse ponto, a pessoa fique curiosa pelos contornos do inconsciente, cuja existência concreta acabou de descobrir. Ao longo dessa exploração, a pessoa acaba percebendo o caráter de falácia do cenário inicial que a levou a procurar uma análise. É o terceiro achado acidental;
  • A pessoa percebe que a história por meio da qual narrava sua vida não dá conta de apreendê-la em sua singularidade. É o quarto achado acidental;
  • Então, movida por um entusiasmo (que é resultado de uma análise levada a bom termo), perceberá a necessidade de inventar formas de inserir no mundo sua singularidade. É o quinto achado acidental;
  • No momento de investir na inserção das formas visíveis de sua singularidade no mundo, perceberá que, quase sempre, a repercussão social desse advento é difícil de ser suportada, tomando a forma de: agressividade, inveja, retaliação, sabotagem etc. É o sexto achado acidental;
  • Caso a pessoa consiga sustentar sua opção na comunidade na qual está inserida, descobrirá a necessidade de criar modos de lidar (savoir-y-faire) consigo e com seus pares. É o sétimo achado acidental;
  • Na sequência normal de sua vida, a pessoa percebe que os ganhos obtidos ao longo de uma análise precisam ser renovados para se manter. Não há garantias vitalícias. Um dos modos de manter o frescor de suas conquistas é renovando-as, em uma clínica. É o oitavo achado acidental;
  • Nos embates clínicos, perceberá que, nas instâncias nas quais não avançou, não consegue guiar ninguém. Como analista, seus pontos cegos serão aqueles que se mantiveram cegos durante a análise pessoal. É o nono achado acidental;
  • Concluindo: O décimo achado acidental do psicanalista que se forma é relativo à própria formação. Como o título desta contribuição indica, essa implica ter se confrontado, na própria análise, com a surpresa dos achados acidentais.

Publicado originariamente em 19 de dezembro de 2014

Achados ‘acidentais’ na vida, na genética e na psicanálise – Trechos selecionados

Aeroporto 1

com Suelen Gregatti da Igreja

Você procura uma coisa, descobre outra. Seria razoável imputar aos geneticistas a responsabilidade de informar, para as pessoas que realizam um sequenciamento genético, achados acidentais que, como o nome indica, apontam para diagnósticos inesperados? Esta foi a questão guia de uma pesquisa que, em outubro, o Instituto da Psicanálise Lacaniana (IPLA) apresentou, no maior congresso de genética do mundo, realizado no San Diego Convention Center, em San Diego, Califórnia (EUA), no 64th Annual Meeting of the American Society of Human Genetics.
Nosso trabalho, “Next generation DNA Sequencing and Incidental Findings. Consultant’s opinion about the impact of being informed”, foi inserido no eixo “questões éticas, legais, sociais e políticas na genética”. Foi realizado no âmbito do projeto Desautorizando o Sofrimento Padronizado, em uma parceria entre o Instituto da Psicanálise Lacaniana e o Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo. Proposto por Jorge Forbes, diretor da Clínica de Psicanálise desse centro de estudos, com apoio de sua diretora, a geneticista Mayana Zatz, o trabalho foi executado com colaboração de Claudia Riolfi, Rita Pavanello, Teresa Genesini, Suelen Igreja e de Maria da Glória Vianna.
Na realização da pesquisa, elaboramos um questionário, no qual perguntamos a pessoas de diferentes idades e graus de escolaridade se elas gostariam de ser informadas caso, ao se submeterem a um sequenciamento genético, descobrissem, por exemplo, um alto risco de desenvolver doenças que não estavam sendo inicialmente investigadas, como câncer de mama ou de próstata. Dentre as 208 pessoas que responderam, 85% afirmaram a vontade de serem informadas acerca de eventuais achados acidentais.
Chamou atenção, inclusive, que, nesse caso, 80% das pessoas declararam desejar receber um acompanhamento psicanalítico para lidar com uma eventual angústia frente ao conhecimento inesperado.
“Lidar com o inesperado” foi o aspecto que uniu nosso trabalho com o dos outros pôsteres inseridos no mesmo eixo temático. Cabe ressaltar que, dentre os apresentados no evento, apenas 1,7% discutiram aspectos ligados a questões voltadas à conduta diante dos achados acidentais. Fomos os únicos a incluir a dimensão subjetiva de quem recebe um diagnóstico.
Para dar a ver a diferença da abordagem do nosso trabalho com os demais que foram apresentados no mesmo eixo temático, com relação aos modos de interpretar o que seja o “lidar com o inesperado”, destacamos, a partir da leitura dos resumos, quais os aspectos éticos mais discutidos.
Foi dado destaque ao caráter de normatização da ética, configurada de modo a garantir a privacidade daqueles que se submetem a um sequenciamento genético. A principal preocupação quanto a esse aspecto está nas consequências médicas e legais. Discutiu-se a necessidade de criação de leis que regulamentem a “personalized medicine” (medicina personalizada) e de se estabelecer leis e uma política uniforme, que preservem as possibilidades de escolha e de controle sobre o sequenciamento genético de cada pessoa que se submeter a ele. Pretende, assim, garantir a privacidade das informações geradas por esse tipo de sequenciamento.
A criação de bancos de dados para partilhamento genético, por exemplo, é um dos cernes da preocupação dos pesquisadores, que buscam um aparato jurídico para o exercício de seu trabalho. Nas palavras dos pesquisadores, a ética tem um caráter moralista, ligado ao campo do dever expresso em verbos tais como: necessitar, precisar, ter e poder.
Notamos que a configuração da ética, tal como apresentada no evento da ASGH, não é a mesma trabalhada por nós. Para eles, ela está ligada a uma lei que se coloca como um imperativo “para todos”, por um lado controlando as ações das pessoas e, por outro, trabalhando com a ordem de uma previsão quanto ao futuro.
Diferente é a nossa visão da ética, que, para nós, não é um “bom para todos”, mas a responsabilidade singular frente ao acaso e a surpresa. Estamos acostumados com achados acidentais. A clínica psicanalítica é a clínica do inesperado, da surpresa, do que chamamos, com Lacan, de Real; aquilo sobre o qual não se pode falar, nem representar.
A clínica psicanalítica, com essa experiência do Real, pode oferecer melhores caminhos aos geneticistas do que se verem engessados em moralismos disciplinares.
Foi o trabalho que apresentamos.

Publicado originalmente em 05 de dezembro de 2014

Copa de corpos

Portugal 1

Por um “corte de cetim”, um pequeno “regalo” ou qualquer coisa assim, alguém se coloca na mão do gringo. O que estão oferecendo?

Nesses tempos de copa, não foram raras as vezes em que, ao passear por um dos bairros mais famosos do mundo, Ipanema, no Rio de Janeiro, encontrei o mesmo cenário povoado de outros personagens além dos habituais. As ruas estavam cheias de gringos passeando, indo aos restaurantes, às compras etc. As línguas faladas (e inventadas) eram muitas. Quando ninguém se entendia, o recurso à velha mímica entrava em ação.
Nesse vaivém, foi impossível não notar a presença da “turma da viração”: moças, rapazes, adolescentes, pessoas de meia idade (tem para todos os gostos e tira-gostos), que expõem seus corpos em uma grande bandeja para que “os gringos” os escolham. Como tubarões em volta da presa, circulam ao redor dos vários hotéis do bairro.
Os turistas, enquanto andam, são seguidos por olhares ávidos. Quando decidem sentar, rapidamente encontram companhia. São moças ou rapazes que “chegaram junto”, como se não quisessem nada. Na busca de atrair a atenção do outro, vale até arriscar um “portunhol” e pedir uma “cueca-cuela” para o turista falante de espanhol. A sorte é lançada!
O que está em jogo nessa “loteria da vida”? Trata-se de um corpo atirado a esmo por alguém que quer se fazer olhar? É o caso da encenação da fantasia de “ser o escolhido”? É atração sexual pura e simples? Ou uma expectativa de abrir mão da responsabilidade de viver ao encontrar um gringo que lhe abra as portas para uma vida melhor?
Na prática, não é difícil de descobrir o que se passa depois desse contato inicial. Por um “corte de cetim”, um pequeno “regalo” ou qualquer coisa assim, alguém se coloca na mão do gringo. O que estão oferecendo? Provavelmente prazer sexual, acrescido do gozo de poder colocar alguém no lugar de objeto. A “turma da viração” deposita no outro a esperança de um futuro melhor, projetando nele as esperanças de ser retirado da realidade em que vive.
Essa situação é emblemática, não se localizando apenas na Copa do Mundo. Diariamente, pessoas abdicam-se do seu desejo em troca de fantasias. É como se, ao invés de escolherem o time para o qual vão torcer, se deixassem ser escolhidas por ele. É pena! Fixadas na ilusão de que existe um outro capaz de levá-las ao paraíso, ficam à mercê de uma bola perdida.

Publicado originalmente em 04 de julho de 2014

Pelo que a gente paga numa análise

Londres 1

Com o fim do casamento, tinha, também, perdido a convivência com os filhos. Como uma pessoa que tinha ganhado tudo dela não a queria?

Ao longo de uma análise, o pagamento de uma sessão é um dispositivo analítico. É o caso de uma paciente que chamarei de Aline, quarenta anos, empresária muito bem-sucedida, com excelente situação financeira.
Recebi o telefonema de uma senhora que se identificou como sua secretária. Ligou para marcar, para sua patroa, uma hora em meu consultório. Justificou seu telefonema dizendo que Aline chegaria de uma viagem ao exterior em dois dias. Com voz antipática, exigiu um horário. Aline tinha a encarregado de deixar a análise agendada. Não estava acostumada a ver seus pedidos não acatados.
No dia marcado, a empresária entrou em meu consultório exalando um forte perfume. Vestia grife da cabeça aos pés. Sapatos e bolsas de couro de cobra coroavam o conjunto. Não era propriamente bonita. Chamava atenção para si por meio da quantidade exagerada de adereços.
Não posso mais com tanto sofrimento, afirmou. Aline havia investido muito no casamento. Por exemplo, acordava antes do marido, maquiava-se e fingia estar dormindo, para que ele não tivesse uma surpresa desagradável com sua aparência ao despertar. Entretanto, havia sido trocada por uma mulher mais nova.
Para piorar, com o fim do casamento, tinha, também, perdido a convivência com os filhos. Não tinha a menor ideia do que tinha dado errado em sua vida. Nunca deixei faltar nada para os meus filhos, disse, perplexa, pelo abandono deles. Como uma pessoa que tinha ganhado tudo dela não a queria?
Pediu-me, chorando que eu a ajudasse. Como deve ter percebido, em mim, um semblante de hesitação, imediatamente disse que podia pagar o que fosse preciso. Afirmou que dinheiro não era, e nem nunca seria, um problema em sua vida. Ela detalhou: Além de ser uma grande empresária, tenho dinheiro de família. Se eu quiser ficar em casa, contando as flores do papel pintado do meu quarto, eu posso, mas decidi trabalhar.
Para fazer face ao meu silêncio, perguntou-me o preço da sessão. Respondi um preço absurdamente mais barato do que a média do mercado. Digamos, por exemplo, dez reais. Era, evidentemente, uma quantia irrisória para ela. Assustada, perguntou-me, gaguejando: Só isso?
Visando a informá-la que não é possível evitar o trabalho para ter uma vida qualificada pagando apenas em dinheiro, disse-lhe prontamente: Isso é exatamente o que você vai ter que ver!

Publicado originalmente em 04 de abril de 2014

Cachaça não é água, não!

Brasil 1

Para curar as ressacas da vida, não basta apelar para o Engov

Está chegando o fim do ano. Muita correria, a começar pelas donas de casa, para quem Natal e Ano-Novo não podem passar sem uma grande ceia. No caso do ano que vai chegar, a comemoração é acompanhada sempre de muita bebida: brinda-se por qualquer coisa, a qualquer hora.
Brinda-se, sobretudo, pelo que já se foi, pois não há como saber o que vem pela frente. Depois, reclama-se da ressaca. Ressaca… é assim o nome que se dá aos excessos, de bebida , de saudade, de amor, de tudo! Olhos de ressaca… Como nos arrependemos dos efeitos da “água que o passarinho não bebe”…
Dia seguinte: gosto de cabo de guarda-chuva na boca, corpo doído, dor de cabeça e a pergunta: como foi mesmo tudo ontem? Para a ressaca das festas de fim de ano, dizem que não há melhor medicação que o famoso “Engov”, cujo nome, aliás, parece ter se originado da pronúncia dada pela neta do dono do laboratório, ao ouvir a palavra em inglês “hangover”, ressaca. Resta saber se a ressaca que chega com o fim do ano é exclusivamente causada pela bebida.
Com certeza, a cachaça é marvada, porém, ainda mais marvada é a quebra das nossas expectativas. Muitas promessas são feitas, sobretudo, quando se começa a primeira semana do ano novo. Por exemplo: vou deixar de fumar, de tomar tanta cerveja, de comer tanto…
Lendo essas promessas com o jargão da psicanálise, podemos dizer que a pessoa promete a si própria domesticar o seu gozo, torná-lo menos associado ao sofrimento. As promessas de Ano-Novo, quase sempre, se referem à possibilidade de associar gozo e prazer. Por esse motivo mesmo, quando fazemos, desconfiamos: Mas será que não foi assim também no ano passado, e no retrasado também?
Há excessos que parecem ser incuráveis. Quanto a eles, nada adiantam as promessas, mas, sim, a consequência das ações. Quando não conseguimos fazer valer nossas próprias promessas, haja ressaca do coração e da vida! Só que, aí, o remédio talvez não seja “Engov”, mas uma boa sessão de análise, ou, quem sabe, uma boa dose de cachaça!

Publicado originalmente em 28 de dezembro de 2013