Pelo que a gente paga numa análise

Londres 1

Com o fim do casamento, tinha, também, perdido a convivência com os filhos. Como uma pessoa que tinha ganhado tudo dela não a queria?

Ao longo de uma análise, o pagamento de uma sessão é um dispositivo analítico. É o caso de uma paciente que chamarei de Aline, quarenta anos, empresária muito bem-sucedida, com excelente situação financeira.
Recebi o telefonema de uma senhora que se identificou como sua secretária. Ligou para marcar, para sua patroa, uma hora em meu consultório. Justificou seu telefonema dizendo que Aline chegaria de uma viagem ao exterior em dois dias. Com voz antipática, exigiu um horário. Aline tinha a encarregado de deixar a análise agendada. Não estava acostumada a ver seus pedidos não acatados.
No dia marcado, a empresária entrou em meu consultório exalando um forte perfume. Vestia grife da cabeça aos pés. Sapatos e bolsas de couro de cobra coroavam o conjunto. Não era propriamente bonita. Chamava atenção para si por meio da quantidade exagerada de adereços.
Não posso mais com tanto sofrimento, afirmou. Aline havia investido muito no casamento. Por exemplo, acordava antes do marido, maquiava-se e fingia estar dormindo, para que ele não tivesse uma surpresa desagradável com sua aparência ao despertar. Entretanto, havia sido trocada por uma mulher mais nova.
Para piorar, com o fim do casamento, tinha, também, perdido a convivência com os filhos. Não tinha a menor ideia do que tinha dado errado em sua vida. Nunca deixei faltar nada para os meus filhos, disse, perplexa, pelo abandono deles. Como uma pessoa que tinha ganhado tudo dela não a queria?
Pediu-me, chorando que eu a ajudasse. Como deve ter percebido, em mim, um semblante de hesitação, imediatamente disse que podia pagar o que fosse preciso. Afirmou que dinheiro não era, e nem nunca seria, um problema em sua vida. Ela detalhou: Além de ser uma grande empresária, tenho dinheiro de família. Se eu quiser ficar em casa, contando as flores do papel pintado do meu quarto, eu posso, mas decidi trabalhar.
Para fazer face ao meu silêncio, perguntou-me o preço da sessão. Respondi um preço absurdamente mais barato do que a média do mercado. Digamos, por exemplo, dez reais. Era, evidentemente, uma quantia irrisória para ela. Assustada, perguntou-me, gaguejando: Só isso?
Visando a informá-la que não é possível evitar o trabalho para ter uma vida qualificada pagando apenas em dinheiro, disse-lhe prontamente: Isso é exatamente o que você vai ter que ver!

Publicado originalmente em 04 de abril de 2014

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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