Lacan autoclavado

Lacan: Mais ainda, o corpo

Ao preparar as aulas do Curso 2021 – MAIS AINDA, O CORPO, acabei cotejando a versão original do texto de Lacan em francês com algumas traduções diferentes de um de seus Seminários. Uma era a versão mais conhecida de todos, do Jorge Zahar Editor, outra, de uma edição alternativa disponível na internet.

Supostamente, a tradutora da edição alternativa tinha desejado fazer um trabalho melhor do que o anterior, corrigindo o que julgava serem as falhas. A colega foi pela via do acréscimo. Começou explicando de onde veio a tradução. Prosseguiu fazendo uma lista obsessiva da origem do texto que serviu de base para a referida tradução. A cada decisão, ia explicando o porquê procedeu dessa ou daquela maneira. 

A consequência do acréscimo é que ele pode acarretar, para aqueles que leem pela primeira ou décima vez, um aprisionamento de sentido. O que se pôde depreender foi uma necessidade, por parte da tradutora, de querer captar exatamente todos os meandros dos enunciados de Lacan. Evidentemente, em alguns momentos é interessante dar esclarecimentos a respeito dos diferentes modos de apreensão de um termo em língua estrangeira, no entanto, é preciso cautela para que informações não sejam transformadas em uma bula do texto psicanalítico.  

Fico aqui pensando na especificidade da tradução do Seminário de Lacan. Nesse caso específico, é preciso que o tradutor se preocupe menos com a exatidão das palavras e mais em manter a frouxidão da ligação entre palavra e coisa. Ao traduzir, é preciso que o trágico do texto apareça; trágico no sentido daquilo que escapa a uma síntese reducionista. 

Cabe ao leitor suportar sua angústia ante ao sentido que sempre pode ser outro. Frente a tantas notas do tradutor, vale lembrar o incrível personagem Odorico Paraguaçu, elaborado pelo nosso escritor Dias Gomes: “não é possível que a alma esteja lavada e enxaguada”. 

Como lidar com a angústia? Com o desejo e com a análise pessoal. Suportar a dureza da leitura e pensar a pluralidade do enunciados coloca os leitores da psicanálise frente ao não saber, ao equívoco constitutivo da linguagem. 

Penso ser deveras elegante manter a palavra traduzida em um lugar silencioso, instigador para que o leitor procure mais além da escrita, mais além de seu corpo, nas lacunas da sua lalangue, assim, o enigmático terá sentido.

Se você ficou curioso para entender imbricada relação entre corpo e linguagem e sua incidência na clínica, venha estudar psicanálise conosco, no grupo Enlaçamentos Clínicos.

Lacan Autoclavado

Nossa, que texto foi esse! A angústia de entender

Na sala de embarque, a psicanalista folheava os Escritos, de Jacques Lacan. Uma moça olhava o livro fixamente. Estaria intrigada pela quantidade de papeizinhos coloridos nele colados? Apresentou-se. Chamava-se Rose e era estudante do terceiro ano de psicologia. Seu interesse pela psicanálise aumentava a cada aula da disciplina, mas a angústia cada vez mais tomava conta de si.

Naquela semana tinha levado um susto: o texto “Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano”, publicado justamente nos Escritos. Ela até entendia o significado das palavras; no entanto, não conseguia entender o que significava o conjunto do texto. Comentou: “Nossa, que texto foi esse!”.

Seu comentário fazia alusão a um funk carioca. Com isso, apontava a dimensão da tríade inibição, sintoma e angústia que a leitura do texto lacaniano pode gerar. A angústia aparece porque diante de certos textos o leitor se defronta com um não saber que, por sua vez, é intrínseco de sua constituição como sujeito. Deparando-se com ela, o leitor tem toda a liberdade de fechar o livro ou enfrentar a angústia utilizando-a como combustível para sua curiosidade.

Entretanto, se fazer amigo desse “não sei, não estou entendendo, mas vou persistir” é condição necessária para aqueles que desejam estudar psicanálise. É preciso disposição para “abrir o texto”, indo às fontes dos autores que ele cita, retomando os conceitos mobilizados no texto e, acima de tudo, prosseguir na análise pessoal, para ter maior intimidade com aquilo que não se pode saber.

É preciso que o leitor se proponha a decifrar o enigma do texto, contrapondo sua leitura a uma teoria subjacente, que o remete a um não sei isso. Cada texto é singular e surpreendente, assim como o é cada sessão de análise. O analista lacaniano usa as palavras de cada dia para sair do lugar comum. O arranjo que faz delas toca o sujeito, buscando alterar a relação que ele até então tinha com as palavras.

Coragem, quebra narcísica e curiosidade são ingredientes fundamentais para se estudar psicanálise e para levar a cabo uma análise. Assim, ao brincar com a letra do funk, a carioca Rose talvez tenha acertado mais do que imaginava. Assim como na canção, uma coisa aparentemente inesperada (o tiro, o texto difícil, aquilo que não se entende) é, na verdade, um arraso, mote para a diversão e alegria de estar vivo.