Nossa, que texto foi esse! A angústia de entender

Na sala de embarque, a psicanalista folheava os Escritos, de Jacques Lacan. Uma moça olhava o livro fixamente. Estaria intrigada pela quantidade de papeizinhos coloridos nele colados? Apresentou-se. Chamava-se Rose e era estudante do terceiro ano de psicologia. Seu interesse pela psicanálise aumentava a cada aula da disciplina, mas a angústia cada vez mais tomava conta de si.

Naquela semana tinha levado um susto: o texto “Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano”, publicado justamente nos Escritos. Ela até entendia o significado das palavras; no entanto, não conseguia entender o que significava o conjunto do texto. Comentou: “Nossa, que texto foi esse!”.

Seu comentário fazia alusão a um funk carioca. Com isso, apontava a dimensão da tríade inibição, sintoma e angústia que a leitura do texto lacaniano pode gerar. A angústia aparece porque diante de certos textos o leitor se defronta com um não saber que, por sua vez, é intrínseco de sua constituição como sujeito. Deparando-se com ela, o leitor tem toda a liberdade de fechar o livro ou enfrentar a angústia utilizando-a como combustível para sua curiosidade.

Entretanto, se fazer amigo desse “não sei, não estou entendendo, mas vou persistir” é condição necessária para aqueles que desejam estudar psicanálise. É preciso disposição para “abrir o texto”, indo às fontes dos autores que ele cita, retomando os conceitos mobilizados no texto e, acima de tudo, prosseguir na análise pessoal, para ter maior intimidade com aquilo que não se pode saber.

É preciso que o leitor se proponha a decifrar o enigma do texto, contrapondo sua leitura a uma teoria subjacente, que o remete a um não sei isso. Cada texto é singular e surpreendente, assim como o é cada sessão de análise. O analista lacaniano usa as palavras de cada dia para sair do lugar comum. O arranjo que faz delas toca o sujeito, buscando alterar a relação que ele até então tinha com as palavras.

Coragem, quebra narcísica e curiosidade são ingredientes fundamentais para se estudar psicanálise e para levar a cabo uma análise. Assim, ao brincar com a letra do funk, a carioca Rose talvez tenha acertado mais do que imaginava. Assim como na canção, uma coisa aparentemente inesperada (o tiro, o texto difícil, aquilo que não se entende) é, na verdade, um arraso, mote para a diversão e alegria de estar vivo.

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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Um Comentário

  1. Gloria, seus textos são inspiradores!!!

  2. Pingback:A Poker Face do analista: a curiosidade do paciente ⋆ Glória Vianna

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