O estilo do analista

O estilo do analista é a caligrafia única por meio da qual ele constrói sua clínica e escreve sua vida. Em francês, as palavras “style” (estilo) e “stylo” (caneta à tinta) tem a mesma raiz. Pensar a respeito dessa proximidade me levou a ver que é como se o analista, com seu estilo, fosse escrevendo a respeito da própria existência.

Lacan queria que as pessoas fossem reconhecidas pelo estilo. Na aula do dia 21 de fevereiro de 1968, do Seminário XV (O Ato Analítico – 1967-1968), Lacan anunciou a publicação do primeiro volume da revista Scilicet e comentou o efeito causado no público da época por conta do formato da publicação: ela foi composta de artigos não assinados, cujos autores são relacionados apenas no final do volume.

Scilicet vem do latim e significa “vale dizer”, “isto é”. Lacan escolheu esse nome para explorar outro sentido, visto que em francês essa palavra é homófona à frase: “s’il le sait”, se ele o sabe. Porém, o mais comum em português é fazer uma tradução mais livre dessa expressão: “tu podes saber”, em um indicativo da aposta do analista frente ao analisante, no sentido de que esse pode saber o que lhe causa (sofrimento).

Lacan afirmou ficar surpreso com o barulho que essa proposta causou. Ele foi assertivo ao afirmar que o importante não estava em esconder os autores que participaram da revista, como alguns, na época, entenderam. Havia uma lista para apresentá-los. Falar de uma revista de psicanalistas com artigos não assinados foi a proposta de Lacan frente à formação e ao que entendia ser as consequências de uma análise terminada no tocante à relação de cada um com o nome próprio. 

Para Lacan, o ato psicanalítico do fim da análise produziria um psicanalista destituído de tal modo que ao se posicionar como analista (seja na clínica, seja como autor) dispensaria o uso do nome próprio, o seu ser. A existência do psicanalista se dá enquanto função. Ele funciona como objeto a. Assim, por um lado, há o nome do analista enquanto pessoa física, por outro, é a função que esse nome exerce. Isso porque dentro do setting analítico, o psicanalista abre mão de uma identidade prévia, podendo, na transferência, assumir várias funções, sempre visando a se manter como causa de desejo. 

Para Lacan, “o analista se autoriza de si mesmo”. A partir dessa afirmação, entendemos que o analista se autoriza da parte desconhecida de si, do estilo singular que, ao longo de sua vida, ele constrói. O estilo do analista, portanto, é tão único, tão indivisível, tão singular que vai funcionar como se fosse uma letra, uma caligrafia que, por não admitir imitação, funciona como a impressão digital do analista. 

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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