A paciência do analista: a repetição da escuta

A paciência do analista: a repetição da escuta

Na clínica psicanalítica, infelizmente, existem casos em que, por um tempo, a pessoa fala sempre as mesmas coisas, não conseguindo se comprometer com o que diz. Reproduz as mesmas histórias, dez, vinte vezes, indiferente às pontuações do analista, que, por sua vez, tem que ter paciência. Enquanto esta situação perdura, é uma perda de tempo e de dinheiro. Como entender isso?

Nos seminários e textos de Lacan, as menções ao reino animal são bastante frequentes. No Seminário dos anos 1969-1970 (Livro 17. O avesso da psicanálise) existe uma metáfora que parte da diferenciação entre os animais necrófagos, que se alimentam de carniça e aqueles que participam da caça. Mais especificamente, na página 159, encontramos o seguinte excerto “…a palavra pode fazer o papel de carniça. De qualquer maneira, ela não é mais apetitosa que isso”.

Na época, Lacan estava criticando estudantes que, de maneira acéfala, se limitavam a repetir palavras de ordem, sem se preocupar em procurar saber o significado do que estavam falando. Ele disse que os estudantes estavam se comportando como cães que latem. Assim, suas palavras eram como latido, não tinham vida. Não eram carne, eram carniça. 

Na análise de Lacan, ao protestar, os estudantes falavam como quem latia, reproduziam qualquer coisa, eram atraídos por “palavras – carniças”, palavras mortas, podres. O problema de aderir a palavras-carniça é que as reproduzir produz um saber sem o menor compromisso com a verdade, apenas puras reproduções das podridões. 

Então, voltando à situação clínica, quando existem situações petrificadas, às vezes podemos pensar no fascínio que as palavras-carniça exercem em quem tem preguiça de viver. Falar para além da carniça exige se engajar em um processo de repetição diferencial. Revisitar a mesma história, mas de jeito diferente.

 O trabalho do analista para ajudar a pessoa a fazer esta passagem é muito delicado. Às vezes, inclusive, consiste na paciência de esperar o tempo do outro cansar de se espojar na carniça. Ele não cansa de ouvir a mesma coisa. Por esse motivo, ao mesmo tempo que o analista tenta implicar o paciente em suas palavras, ele exercita a impassibilidade até que restem apenas ossos.

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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