A sociedade secreta de Freud, o Senhor dos anéis

Você sabia que Freud tinha uma sociedade secreta? Em 30 de novembro de 2018, proferimos a conferência “Os laços da Psicanálise: a revelação do estranho íntimo”, por ocasião da IV Conversação da Liga de Psicanálise Lacaniana de Maceió. Vejam como Freud se transformou no “Senhor dos anéis”. 

A “Sociedade dos anéis” foi criada pelo escritor britânico Tolkien. “O senhor dos anéis”, obra escrita entre 1937 e 1949, mais tarde foi adaptada para o cinema. Nos três volumes, o “Anel” é o elemento central da saga. Quem o carrega é Frodo Bolseiro que herdou o anel de seu tio Bilbo. Esse anel tem uma longa história: foi roubado de uma criatura chamada Gollum e por longos anos foi guardado por Bilbo.

O Mago Gandalf, um velho amigo de Bilbo, percebe o poder do anel. Descobre que a peça foi forjada por Sauron, o Senhor do Escuro, e que fora perdida numa batalha muito tempo antes. Se recuperado, o Anel permitiria a Sauron o domínio definitivo sobre toda a Terra-média.

O anel tinha vontade própria e sempre buscava voltar ao seu dono. O poder quase absoluto do anel corrompia o carácter e deformava a personalidade daquele que se atrevia a colocá-lo, ainda que movido por boas intenções. Assim, aquele que quisesse derrotar Sauron utilizando o anel acabaria se tornando-se o próximo Senhor do Escuro.

Dada a impossibilidade de utilizar o anel como arma de guerra, é imposta a tarefa de levá-lo até a Montanha da Perdição, um vulcão localizado no centro de Mordor, a Terra Negra do Inimigo, onde o anel fora forjado e também o único lugar onde poderia ser destruído.

Para essa missão foi formada a Sociedade do Anel, composta por nove companheiros: quatro hobbits (criaturas criadas por Tolkien – Frodo, Sam, Merry e Pippin), dois humanos (Aragorn e Boromir), um elfo (Legolas), um anão (Gimli) e um mago (Gandalf). Frodo seria o “Portador do Anel”, aquele que deveria lançá-lo nos fogos de Orodruin. 

Se a Sociedade do anel tinha a missão de garantir a continuidade da existência da terra Média, evitando que ela caísse nas mãos do “Senhor do Escuro”, Freud criou uma sociedade com o objetivo de dar continuidade à psicanálise e de preservá-la.

Em 1912, Carl Gustav Jung, o discípulo mais próximo de Sigmund Freud, rompeu com as ideias do mestre, abalando muito Freud, que via em Jung seu sucessor e defensor da psicanálise. Preocupado com novas rupturas e buscando manter o seu legado, o pai da psicanálise, ajudado por Ernest Jones, criou o que, anos mais tarde, ficou conhecido como o Comitê Secreto, formado por membros que fizeram um laço de fidelidade e de comprometimento com o vienense. A respeito do Comitê Secreto que estavam criando, Freud chegou a dizer para Jones: “A existência e ação deste Comitê deve permanecer secreto.”

Assim nasceu o que podemos chamar de “Sociedade psicanalítica dos anéis” cujo “senhor dos anéis” era Sigmund Freud. O que era essa sociedade? Psicanalistas escolhidos a dedo com os quais Freud fez um laço singular. Eram pessoas com quem podia contar para assegurar a continuidade de seu pensamento. Esse grupo não deveria ter existência oficial, mas “trabalhar nas sombras”, tendo como missão a manutenção e proteção das teorias de Freud. 

Cada um dos cinco membros fundadores desta sociedade recebeu um anel, símbolo do amor de transferência com Freud. Durante os anos que se seguiram, o célebre psicanalista distribuiu 20 anéis deste tipo, para colegas e para pacientes com os quais fez laço.

“As pedras destes anéis provinham da vasta coleção de antiguidades de Freud, e a inscrição sobre cada anel, correspondia a um tema mitológico ligado a um dos elementos de seus ensinamentos psicanalíticos e também à relação com aquele que recebeu o anel” – escreve Morag Wilhelm, curadora, no museu de Jerusalém, da exposição “Freud, o senhor dos anéis”, assim batizada em referência à obra de Tolkien. 

A exposição foi organizada quando Morag se viu frente a um anel em ouro colocado numa pequena caixa com um cartão escrito com os seguintes nomes: “Freud Niké” – que vem a ser o nome da deusa grega da Vitória. Esse anel foi dado por Freud para uma das suas alunas, Eva Rosenfeld, que mais tarde o doou para o museu. Foi assim que o mundo passou a conhecer a história dos anéis. 

O museu de Jerusalém conseguiu reunir e expor cinco desses anéis, inclusive o anel pessoal que Freud usava, o qual era ornado de cornalina, com uma figura de Júpiter. Cada anel era único, talhado com uma pedra da coleção particular de Freud. É importante destacar que o psicanalista era um colecionador importantíssimo de arte egípcia. Ele tinha uma coleção rara de cerca de 3000 pedras ornadas com figuras mitológicas e egípcias. 

Freud escolhia pessoalmente uma pedra dessa coleção para fazer o anel. Essa escolha não era aleatória. Mas, baseada no traço que, para Freud, mais se destacava daquele que seria presenteado. Dessa característica podemos tirar uma lição a respeito do laço estabelecido entre analista e analisando ou entre as pessoas dentro de uma instituição de transmissão da Psicanálise: ele é singular. 

O anel simboliza algo. Ele é um sinal visível de um compromisso. Era o anel que simbolizava o amor daquele grupo a Freud e a todo trabalho incansável e comprometido que o psicanalista vinha desenvolvendo. 

Lembremos que Freud era um jovem médico que muito estudou e, ao formar-se em medicina, decidiu ser neurologista. Mas vocês podem se perguntar como é que uma pessoa bem-sucedida na carreira larga tudo em busca de algo que, até então, não existia enquanto ciência. Ele poderia ter se acomodado na neurologia, mas, ao ouvir falar das descobertas de Charcot a respeito da hipnose, não pensou duas vezes. Atrasou o casamento com Marta, de quem era noivo, e foi para Paris estudar e trabalhar com o médico francês. 

Bem… os desdobramentos desse tempo de trabalho com Charcot nós já sabemos… A descoberta do inconsciente e as elaborações a respeito da sexualidade humana abalaram a Viena conservadora do Século XIX e chegaram até nós.

E hoje, como fazer para marcar o laço entre as pessoas em um grupo de psicanálise? Será que vamos precisar distribuir anéis para simbolizar o comprometimento das pessoas com a causa da Psicanálise? 

Seja no Rio de Janeiro, em São Paulo ou em Maceió, algo precisa tocar as pessoas, levando-as a permanecer enlaçadas com o discurso da Psicanálise. Lembremos que a aliança é um sinal visível de algo que está no coração. Ela é um símbolo de algo íntimo que nasceu do encontro entre duas pessoas.

Assim, pensamos que hoje não precisamos de um anel que indique o comprometimento com a psicanálise. No entanto, em cada grupo que tem como missão a transmissão da psicanálise, é preciso que o laço seja mostrado por meio do trabalho que cada um se sente convocado a fazer dentro do grupo. 

Em um grupo em que o laço opera, cada um pode encontrar seu lugar para “por algo de si” – constituindo seu estilo. Nesse tipo de relação, as diferenças são respeitadas, porque são elas que permitem que se produza algo de novo. 

Lembremos que, na Psicanálise, o sujeito vai sempre se definir pelas suas diferenças, pelo que lhe inquieta. A uniformidade do trabalho conduz a disputas imaginárias, a intrigas, a rupturas. A transferência de trabalho, no entanto, conduz à implicação de cada um com a causa psicanalítica. Ela gera em nós um compromisso com o legado de Freud e de Lacan. 

Se tomarmos como nossa a missão de continuidade e de atualização desse legado, podemos dizer que fazemos parte dessa sociedade do anel. Não temos um anel dado pelo próprio Freud, ou seja, um sinal visível desse compromisso, mas a transferência de trabalho é a força interna que nos liga, que gera em cada um de nós o desejo e a responsabilidade pela transmissão da Psicanálise.

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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