O inconsciente é um balaio de gatinhos

Três gatos

Para Lacan, a carta roubada sempre chega ao seu destino. É um modo de dizer que a mensagem do inconsciente sempre chega ao interlocutor, mesmo quando a pessoa não sabe disso. O caso de Paulo, um executivo de uma Multinacional Americana, ilustra esse ponto com perfeição.
Ele telefonou-me com voz aflita. Pedia uma sessão para aquele mesmo dia. Decidi acatar o pedido, embora isso custasse alguns acertos na agenda. Paulo foi pontual. Tão logo se instalou, deu um suspiro e disse que tinha sido um “custo” tomar a decisão de me ligar. Estava muito triste, porque tinha se separado recentemente e vivia muito sozinho.
Depois de alguns meses de tratamento, arrumou uma namorada, Diana. Segundo ele, era bonita, jovem, de boa família e parecia gostar de suas três filhas. O relacionamento parecia ter tudo para dar certo, mas Paulo mantinha uma posição ambígua: reclamava de solidão, mas colocava muitos empecilhos para Diana dormir em sua casa. Solicitado a falar sobre isso, deu-se conta de que as moças lhe metiam medo, eram independentes demais para o seu gosto. Foi levando a relação sem muito entusiasmo no campo sexual.
Algum tempo depois, sua namorada lhe presenteou com um gato. Inicialmente, adorou o presente. Enquanto filhote, o animal lhe dava imensa alegria. O quadro mudou com o seu crescimento. Um dia, tentou pegar o gato para colocá-lo no chão, pois o bicho queria subir em sua mesa de jantar. O gato olhou profundamente para ele com “uns olhos de arrepiar: eram amarelos como os de um tigre”. Começou a relatar momentos em que chegava à casa e era surpreendido pelo gato de forma “silenciosa e sorrateira”. Isso o deixava bastante assustado. Na verdade, um gato adulto o assustava tanto quanto uma moça.
Logo depois, Diana terminou a relação. Ela ficou muito aborrecida com um lapso ocorrido durante uma discussão a respeito do gato. Diana havia lhe perguntado, se, por acaso, ele teria gostado mais de ganhar uma gata. Tentando lhe explicar seu desconforto, Paulo tinha tentado dizer: “Não gosto de gatonas, só queria poder dormir com um gatinho”! Entretanto, um lapso se produziu e ele disse: “Não gosto de moçonas, só queria poder dormir com um gatinho”! A namorada tinha feito a sua interpretação. Segundo ela, o que ele queria era poder dormir com um homem.
Paulo queria saber o que eu pensava a esse respeito. Será que ele deveria experimentar? Não respondi e cortei a sessão. Ao deparar-se com o questionamento com relação à sua sexualidade, Paulo precisaria entender que, independente da escolha amorosa que elegesse a partir dali, valia a máxima Lacaniana: “Pela nossa posição de sujeito, somos sempre responsáveis.” (LACAN, 1966/1998, p.873).

Ou três gatas?

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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Um Comentário

  1. Parafraseando o pequeno príncipe..” Tu te torna inteiramente responsável pelo que cativas… ” o texto é muito oportuno pois nessa época existem muitos equívocos com as palavras… feliz ano novo Glória… bjs..

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