Copa de corpos

Portugal 1

Por um “corte de cetim”, um pequeno “regalo” ou qualquer coisa assim, alguém se coloca na mão do gringo. O que estão oferecendo?

Nesses tempos de copa, não foram raras as vezes em que, ao passear por um dos bairros mais famosos do mundo, Ipanema, no Rio de Janeiro, encontrei o mesmo cenário povoado de outros personagens além dos habituais. As ruas estavam cheias de gringos passeando, indo aos restaurantes, às compras etc. As línguas faladas (e inventadas) eram muitas. Quando ninguém se entendia, o recurso à velha mímica entrava em ação.
Nesse vaivém, foi impossível não notar a presença da “turma da viração”: moças, rapazes, adolescentes, pessoas de meia idade (tem para todos os gostos e tira-gostos), que expõem seus corpos em uma grande bandeja para que “os gringos” os escolham. Como tubarões em volta da presa, circulam ao redor dos vários hotéis do bairro.
Os turistas, enquanto andam, são seguidos por olhares ávidos. Quando decidem sentar, rapidamente encontram companhia. São moças ou rapazes que “chegaram junto”, como se não quisessem nada. Na busca de atrair a atenção do outro, vale até arriscar um “portunhol” e pedir uma “cueca-cuela” para o turista falante de espanhol. A sorte é lançada!
O que está em jogo nessa “loteria da vida”? Trata-se de um corpo atirado a esmo por alguém que quer se fazer olhar? É o caso da encenação da fantasia de “ser o escolhido”? É atração sexual pura e simples? Ou uma expectativa de abrir mão da responsabilidade de viver ao encontrar um gringo que lhe abra as portas para uma vida melhor?
Na prática, não é difícil de descobrir o que se passa depois desse contato inicial. Por um “corte de cetim”, um pequeno “regalo” ou qualquer coisa assim, alguém se coloca na mão do gringo. O que estão oferecendo? Provavelmente prazer sexual, acrescido do gozo de poder colocar alguém no lugar de objeto. A “turma da viração” deposita no outro a esperança de um futuro melhor, projetando nele as esperanças de ser retirado da realidade em que vive.
Essa situação é emblemática, não se localizando apenas na Copa do Mundo. Diariamente, pessoas abdicam-se do seu desejo em troca de fantasias. É como se, ao invés de escolherem o time para o qual vão torcer, se deixassem ser escolhidas por ele. É pena! Fixadas na ilusão de que existe um outro capaz de levá-las ao paraíso, ficam à mercê de uma bola perdida.

Publicado originalmente em 04 de julho de 2014

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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