Crianças: o que fazer com elas?

Crianças no parque

Com dúvidas a respeito do que fazer com o que lhe parecia ser o comportamento desviante de duas crianças, a dona de uma escola procura a psicanalista. Não sabia como se dirigir aos pais, nem como dar segmento à educação das crianças, em sua avaliação, muito estranhas.

Menina, dez anos de idade:

Pensando, talvez, em um treinamento precoce para o concurso vestibular, a escola preparou uma longa prova de conhecimentos gerais. Na parte de biologia, uma das questões era “por onde os coelhos se movimentam?” A expectativa era a de que as crianças pudessem responder a respeito do aparelho locomotor. Entretanto, a menina, que até então não havia demonstrado qualquer retardo mental, respondeu: “pelo focinho!”. Comunicada a respeito de seu erro, ela não conseguia compreender onde havia errado. Na casa de campo de sua família havia uma coelheira onde ela havia, inúmeras vezes, presenciado os “coelhos mexendo o focinho como quisessem dar beijinhos no ar!”. Como lidar com tamanha convicção de certeza? Como entender essa resposta da menina? Surdez? Retardo mental? Esquizofrenia infantil? Autismo?

Menino, oito anos de idade:

João Paulo, um menino sadio e risonho, bastante carinhoso com a família, também teve um aspecto de sua vida íntima descoberto pela escola justamente por ocasião das provas mensais. Um dos exercícios da prova versava acerca de femininos, masculinos e plural. Nele, uma das perguntas requisitava que as crianças respondessem qual era o feminino de coelho. Evidentemente, a resposta esperada era “coelho”. Entretanto, a esta questão, João Paulo prontamente respondeu: “Dona Rosinha”. Estaria ele fazendo pouco caso da avaliação? Pedindo que se explicasse, o menino pareceu perplexo. Para ele, sua resposta estava muito clara. Ocorre que o garoto gostava de passar seu tempo livre no apartamento de seus vizinhos: Marcos Coelho, casado com a simpática D. Rosa, mais precisamente, D. Rosinha.

Para além da coincidência do significante “coelho”, o que une as duas histórias? Elas ilustram a presença irredutível do infantil, do que escapa da lógica da linguagem. Menina e menino responderam a partir de suas singularidades, aquém do que a instituição, com sua prevalência da combinatória significante, estaria esperando.
O que têm as crianças? São doentes? Claro que não. Atire neles a primeira pedra quem nunca sentiu a presença do Real que, indomável, parasita qualquer tentativa de domesticar os sentidos por meio do simbólico. Eles assustaram a dona da escola na medida em que revelam para ela a loucura que é nossa, a de todos os adultos, pois se existe algo que a psicanálise nos ensina é que não há saída do infantil, apenas a possibilidade de fazer maior amizade com ele. Menos susto e mais educação.

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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Um Comentário

    • gloriavianna@terra.com.br

      Oi Saulo, agradeço o retorno e comentário. Que o texto te instigue a outras reflexões. Por falar nisso, seria importante receber um retorno seu com relação a outros textos já publicados aqui a respeito do tema. Já deu olhada? Abraço

  1. Fanny Carvalho Aranha

    Amei!
    Que não nos esqueçamos do infantil em nós 🙂

    • gloriavianna@terra.com.br

      Querida Fanny, muito obrigada pelo comentário e atenta leitura. Sim, que sempre o infantil possa nos animar e nos convocar para a invenção.

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