Se desarrumar faz bem

Você não pode arrumar tudo em sua vida.

Teresa, 60, sentia-se incompreendida. E sofria. E, por sofrer, veio procurar uma análise. Ninguém valorizava seu modo de ser. Indignada, perguntava à analista: “será que vou ter de arrumar a cabeça dos outros para que eles entendam que eu sou normal?”. 

“Arrumar” era a palavra-chave da sua existência. Todas as vezes que saía de casa, tinha uma espécie de checklist: desligar a cafeteira, apagar a luz do hall, verificar todas as torneiras, janelas etc. Na Unidade Hospitalar onde trabalhava, arrumava cuidadosamente a fileira dos soros, que “ficavam em uma bisnaga de plástico amolecida”. Conseguia arrumá-los de forma que quem precisasse pegá-los não derrubava a pilha, nem bagunçava a sua arrumação. 

Esse é só um exemplo de tudo o que organizava: a pilha de ataduras, de esparadrapos, as tesouras para diversos fins enfileiradas tal qual tropa de soldados marchando e assim vai, ou melhor ia: a fileira de batons, blushes, escova de dentes arrumadinha com a pasta, rigorosamente apertada, todas as roupas separadas por tamanhos, cores, os panos de prato, chão, todos arrumadinhos e enfileiradinhos. Da vida, exigia que tudo estivesse “nos seus devidos lugares”. 

Vestia-se impecavelmente. Em suas palavras, “podia estar até com uma roupinha fuleira, mas sempre nos trinques”. E… haja controle, haja checklist, haja organização e a espera inalcançável de um prêmio dado pelo Outro, idealizado por ela.

Algo mudou em um almoço entre amigas. Logo após a sobremesa, foi retocar o batom e ouviu, no banheiro, uma conversa entre duas senhoras. Uma delas falou: “Nossa fulana, você sempre impecável! Nem parece que você estava sentada no almoço, porque seu vestido nem amassou!”. A outra, já saindo do toilette, respondeu: “eu sou assim, mas tento não exagerar, pois, como se diz popularmente, ‘o diabo enfeita tanto os olhos do filho que até fura’”.

Teresa contou que saiu do restaurante com as pernas balançando e uma estranha sensação no peito. Mais tarde, no divã, acabou se dando conta do quanto tinha medo do olhar ferino de sua mãe, sempre pronta a fazer uma crítica mordaz. Como tinha medo do olhar do Outro, tentava, inutilmente, fazer com que tudo fosse perfeito para completar o Outro materno.

Interrogando o ditado popular, deu-se conta de que arrumava a tudo, o tempo todo, para não furar a diabólica ligação estreita e sofrida que mantinha com sua mãe. Acabou rindo muito ao perceber a conclusão lógica de sua análise: tornar-se, em suas palavras, um pouco mais bagunceira. Depois, se conformou. A vida é mesmo muito bagunçada.

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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