Elogio ao incompleto: Só a morte completa a vida

Gloria 4

Pedro Henrique, 42 anos, um advogado bem-sucedido, contou-me que não entendia os motivos pelos quais, apesar de seu sucesso pessoal e profissional, não conseguia se libertar de uma angústia que o aprisionava. Já tinha procurado ajuda de vários médicos e feito uma bateria de exames. Buscava uma resposta para o grande “x” da sua vida. Dizia que sempre faltava uma parte que, na visão dele, o completaria.
Não teve nenhum sucesso. Foi por essa razão que veio procurar a minha ajuda, indicada por um médico da família. Nas primeiras sessões, contou-me como se sentia infeliz porque, apesar de ter seguido o script traçado por seus pais, ter conseguido um bom emprego, um casamento feliz, achava que tinha saltado uma parte da vida. Era como se uma folha aquele script tivesse voado de suas mãos. Qualificava-se como uma pessoa blasé: nada o comovia.
Durante as sessões, eu tentava encontrar algo que escapasse à cadeia da fala tão rigorosamente construída por ele. Aliás, Pedro Henrique dominava a arte da retórica. Um dia, quando cortei a sessão, lhe disse: “Pedro, ficamos por aqui”. Imediata e abruptamente, o paciente me interrompeu e falou: “Pedro Henrique”! Ao ver essa reação, eu disse: “sim, Pedro. Eu me chamo Maria da Glória e ora as pessoas me chamam pelo nome composto, ora por Glória ou, ainda, apenas Maria. Isso é um problema para você?”
Foi nesse momento que o inconsciente se abriu. Contou-me que exigia que o chamassem de Pedro Henrique porque foi fruto de uma gravidez gemelar. Uma única placenta o unia ao seu irmão. Um se chamaria Pedro e outro Henrique. No entanto, um bebê morreu no parto. Teria sido o Pedro ou o Henrique? Os pais, diante dessa situação, deram-lhe o nome composto de “Pedro Henrique”. Passou a “lembrar-se” da sensação estranha que sentia quando as pessoas da família olhavam para ele. Pareciam sempre procurar outra pessoa.
Pedro Henrique havia sido incapaz de sustentar o enigma da morte. Carregava o nome do irmão morto na tentativa de se completar. Não valia mais ter entendido que não é impossível interpretar a morte? Teria se livrado de ter de viver uma vida dupla, composta por um ser humano vivo e outro morto.

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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