Existe amor nota 10?

Notas menino

Paulinho, oito anos, chegou da escola saltitando. Ao ver que o filho não cabia em si de tanta alegria, Marisa quis saber: “- Meu filho, o que aconteceu na escola, viu passarinho verde?”. Paulinho, abrindo a mochila, retirou dela uma folha de prova um pouco amassada e entregou-a à mãe. Com olhos brilhantes, disse: “– Veja, mamãe, não é só a Aninha que tira nota dez. Dessa vez, eu também consegui, pode ver, é a prova de matemática!”.
Marisa pegou a prova e ficou atônita, sem saber o que dizer. Sim, diante dos seus olhos estava escrito, de caneta vermelha, o tão esperado dez. No entanto, o que Paulinho não tinha levado em consideração é que quase toda a prova vinha marcada com o sinal de X. Eram nove indicações de erro e apenas um sinal de acerto.
Diante da alegria do filho, como refrescar a memória do garoto dizendo-lhe que, na verdade, ele estudava em um colégio em que as notas eram sobre cem? Naquele contexto, o seu “dez”, na verdade, equivaleria a “um”, em comparação com as outras escolas. Dentre elas, a da irmã, Aninha, com quem sempre se comparava.
A mãe ficou em silêncio. Não soube o que dizer para o filho. Trouxe sua dúvida à sessão de análise: “como responder ao Paulinho?”. Ela se sentia em uma saia justa. Embora quisesse lhe dizer que sua nota era um, a convicção com que ele falava contrastava com o banho de água fria que teria que lhe dar.
A dúvida de Marisa tinha bastante cabimento. Há bastante tempo Paulinho só vinha tirando “zero” em matemática. A irmã, por sua vez, tirava dez em todas as provas. Todo ano, a menina era condecorada como melhor aluna do colégio. Voltava para casa carregando no peito uma medalha grande, reluzente tal qual a de um general, como a própria mãe descrevia.
Diante dela, Marisa via o filho dizendo-lhe quase em tom de súplica, “veja, mamãe, eu também consigo tirar dez”. O mutismo de Marisa, conforme contou ao analista, era resultado também do que aquela situação lhe tinha feito ver. A mãe percebeu que Paulinho estava fazendo a seguinte equação: quem tira dez é amado, quem tira zero é tratado como débil.
A falta de palavras de Marisa não me surpreendeu. Afinal, seu filho lhe tinha colocado uma questão subjetiva crucial: “que nota eu tenho no seu desejo?, dez ou um?”. Não seria por ter dúvidas de seu valor no desejo da mãe que o menino não via a realidade que estava diante dos seus olhos?
Sabemos, desde 1920, com Freud, que “Os neuróticos afastam-se da realidade por achá-la insuportável – seja no todo ou em parte”. Naquela família, as notas do Paulinho eram sempre jogadas por debaixo do tapete, como se fosse um assunto que ninguém queria comentar. Afinal, olhar o problema seria admitir a castração do filho e dos pais.
O que Marisa percebeu ao longo da sessão, foi algo que não queria ver. Paulinho sofria, pois, de algum modo, criou a expectativa de que, para ser amado, deveria ir tão bem na escola quanto sua irmã mais velha.
O que Paulinho e Marisa precisariam entender? Que cada percurso escolar é singular e não deve ser comparado com outros. Se dentro da escola um ranqueamento por meio de notas é feito, o mesmo não vale para a relação mãe e filho. Marisa chegou à conclusão de que, por mais que doesse, valia mais mostrar a realidade ao filho do que mantê-lo na ignorância com relação ao seu desempenho escolar. Adiar o confronto com a realidade só postergaria o sintoma.
Na dialética do ser e ter, Marisa foi convidada a mostrar para o filho que ele não precisaria ser o seu falo para que fosse amado. Ao contrário, somente quando ela o liberasse dessa pesada carga, é que ele poderia trabalhar para conquistar o dele.

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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Um Comentário

  1. sensacional!!

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