Será que um mapeamento genético traduziria o que cada ser humano é? Há quem diga que sim. Em forma de uma moldura de espelho antigo, feito de papel laminado, um folder de propaganda do laboratório de genética Affymetrix, dos Estados Unidos, chama atenção. A pessoa pode ver a sua imagem refletida no espelho junto com um desenho da dupla hélice do DNA. Pode também ler: “hoje você é Você, que é a mais verdadeira da verdade. Não existe ninguém que seja mais Você do que Você” (Today you are You, that is truer than true. There is no one alive Who is Youer than You – Dr. Seuss). No verso do folder, se lê o seguinte convite: “investigue a individualidade”. Na parte inferior, o laboratório divulga a possibilidade de concorrer a uma “arte impressa com o DNA” do “sortudo”.
Sabemos que cada um de nós tem uma combinação genética única feita a partir das bases nitrogenadas adenina (A), guanina (G), citosina (C) e timina (T) da molécula de DNA. Essa combinação de letras dá o código genético de cada um de nós, o qual pode ser lido por máquinas que decifram o sequenciamento, como prometido pelo folder do laboratório Affymetrix. Nessa leitura, pode-se prever um futuro, por exemplo, a pré-disposição a certas doenças.
Sabemos que, biologicamente, cada um tem a combinação genética que herdou de seus ancestrais. Não se pode, por exemplo, escolher a cor dos seus olhos, sua altura, ou mesmo, sua disposição genética para certos tipos de doenças. Em certa medida, portanto, há uma espécie de “destino” que transcende o sujeito.
A psicanálise concorda com isso?
Não. A individualidade a que o laboratório se propõe a mapear não é da mesma ordem que a singularidade que pode ser construída a partir de um trabalho de análise. Para a psicanálise, a singularidade é uma construção feita com aquilo que o sujeito desconhece de si. É uma conquista cuja matéria-prima são os “cacos” da vida de cada um. Uma análise justamente operará sobre aquilo que o sujeito não entendeu de sua existência.
Não se trata de ir contra um determinismo genético, mas, de ler a sua letra. Trata-se de suspender a letra que se inscreveu no corpo no momento em que o ser humano deixou de ser só corpo biológico e passou a sofrer os efeitos da inscrição da linguagem em seu corpo. Recuperar a instância da letra no inconsciente (LACAN, 1967) é fazer um trabalho que abre a cada paciente a possibilidade de inscrever-se em outro lugar de sua existência. Em um trabalho de análise, o psicanalista lê aquilo que diferencia o paciente e o encoraja a construir um “si próprio” a partir daquilo que ele mesmo desconhece.
Assim, para a psicanálise, “o mais de você”, referido na propaganda do laboratório, está naquilo que nenhum espelho pode revelar nem refletir. Você só será você à medida que abandonar aquilo que os outros, e até mesmo seu DNA, disseram de você.
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