Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.

Criança insegura: de que medo falamos?

Franca 1

O que é uma criança insegura, como pode ser caracterizada?

Em julho de 2015, a Agência Brasil publicou a matéria “Crianças e adolescentes se sentem inseguros na capital paulista”. A reportagem divulgou uma pesquisa realizada pela Rede Nossa São Paulo, que entrevistou 805 crianças e adolescentes, entre 10 a 17 anos, em todas as áreas da cidade. O levantamento apontou que 67% dos entrevistados consideram a capital paulista insegura, sendo que o índice faz parte da pesquisa de Indicadores de Referência de Bem-Estar no Município. Os temores relatados referem-se às periculosidades comuns às metrópoles, como assaltos, balas perdidas, sequestros etc., que afetam a integridade física das pessoas. Mas, seria somente esse tipo de medo que afeta as crianças?
A experiência clínica mostra-nos que não. Vários motivos podem apontar para a insegurança infantil que, muitas vezes, em nada se relaciona com o sentimento de desamparo empírico. É muito comum pais e educadores procurarem a ajuda de um psicanalista para saber lidar com a “insegurança de uma criança”. Na vida real, o que é uma criança insegura, como pode ser caracterizada?
Vários comportamentos podem indiciar a insegurança infantil. Um menino que atrapalha a aula, querendo bancar “o valentão”, pode, na verdade, estar dando a ver o quanto se sente inseguro no ambiente escolar. Outro exemplo comum é a criança que faz bulling. Se, na superfície, ela parece estar se achando “o máximo”, a necessidade de desqualificar os demais mostra que não é bem assim.
Existem traços que denotam insegurança. Destacamos a precipitação, a incapacidade de esperar, a tentativa de completar a frase dos outros antes que esses terminem o que estão dizendo. Esses comportamentos indiciam para o adulto algo da insegurança da criança. O que ela não consegue falar, mostra por meio de ações que, muitas vezes, são rotuladas pelo adulto como incompreensíveis. “Insegurança”, portanto, é um predicativo que engloba um conjunto de reações que variam de criança para criança, mas que denotam que algo não vai bem.
É importante, ainda, fazermos outras perguntas: a criança nasce insegura? Há um gene que a torna insegura? É praga? Passa pela saliva ou o vírus está no ar? Depende do índice de periculosidade de uma metrópole? Não. Para a psicanálise, a insegurança é um sintoma de relações familiares que tornam a criança uma escrava do que ela pensa serem os ideais de sua família.
Nessa perspectiva, a criança fica tentando adivinhar o que os outros querem dela. Busca corresponder, exatamente, ao que pensa que deixaria papai e mamãe sempre felizes. Passa o dia todo a sondar o ambiente, na espreita. Quer captar o mood (o astral) de seu entorno. Vive como se fosse obrigada a ter uma bola de cristal para, antecipadamente, prever o que vai agradar ao outro. Por essa razão, tenta controlá-lo, fazendo com que ele apenas diga o que lhe seria agradável.
Se nós não observarmos bem, é difícil diferenciar a criança insegura da criança amorosa. A criança amorosa também tenta agradar ao outro, mas o faz de maneira equilibrada. Quer, espontaneamente, externar sua gratidão e seu amor.
A criança insegura, diferente, não age de modo espontâneo. Ela é refém do outro. Tenta moldar as suas expectativas para não ser repreendida. É uma espécie de ator, que adequa ao seu papel o que pensa ser o conveniente para o outro. Ao fazê-lo, se vê em uma armadilha, que ela mesma construiu. Teme ser desmascarada e perder o amor das pessoas que estão ao seu entorno. No fundo, a criança sabe que a pessoa que é amada é o personagem que ela representa. Está o tempo todo com medo de perder a afeição que recebe ao fazer o jogo das expectativas. Passa seus dias amedrontada. Mede seus passos. Angustia-se.
Se a insegurança não é genética e nem depende, unicamente, da realidade empírica, o ambiente familiar é essencial para que a criança consiga se libertar das expectativas do outro e, em si, construa um ponto de sustentação para dizer o que pensa e fazer o que gosta.

Publicado originariamente em 28 de agosto de 2015

Decálogo dos achados acidentais em uma análise

Tcheca 2

A formação do psicanalista implica ter se confrontado, na própria análise, com a surpresa dos achados acidentais:

  • Quem começa uma análise, pede ajuda. A pessoa espera que o analista possa tirá-la de seu sofrimento;
  • Portanto, o que a pessoa espera encontrar é uma SOLUÇÃO para seus problemas;
  • No curso de uma análise, ela descobre, em primeiro lugar, a sua implicação nos problemas dos quais se queixa. Normalmente, esse é primeiro achado acidental;
  • Mais tipicamente, a pessoa desenvolve intensos sentimentos de culpa. Passa a se martirizar pelo curso de sua vida;
  • Se persiste no exame desses desarranjos, acaba por encontrar uma força maior do que ela; força essa que, até aquele momento, vinha agindo como causa do sofrimento da pessoa. É o segundo achado acidental;
  • É provável que, nesse ponto, a pessoa fique curiosa pelos contornos do inconsciente, cuja existência concreta acabou de descobrir. Ao longo dessa exploração, a pessoa acaba percebendo o caráter de falácia do cenário inicial que a levou a procurar uma análise. É o terceiro achado acidental;
  • A pessoa percebe que a história por meio da qual narrava sua vida não dá conta de apreendê-la em sua singularidade. É o quarto achado acidental;
  • Então, movida por um entusiasmo (que é resultado de uma análise levada a bom termo), perceberá a necessidade de inventar formas de inserir no mundo sua singularidade. É o quinto achado acidental;
  • No momento de investir na inserção das formas visíveis de sua singularidade no mundo, perceberá que, quase sempre, a repercussão social desse advento é difícil de ser suportada, tomando a forma de: agressividade, inveja, retaliação, sabotagem etc. É o sexto achado acidental;
  • Caso a pessoa consiga sustentar sua opção na comunidade na qual está inserida, descobrirá a necessidade de criar modos de lidar (savoir-y-faire) consigo e com seus pares. É o sétimo achado acidental;
  • Na sequência normal de sua vida, a pessoa percebe que os ganhos obtidos ao longo de uma análise precisam ser renovados para se manter. Não há garantias vitalícias. Um dos modos de manter o frescor de suas conquistas é renovando-as, em uma clínica. É o oitavo achado acidental;
  • Nos embates clínicos, perceberá que, nas instâncias nas quais não avançou, não consegue guiar ninguém. Como analista, seus pontos cegos serão aqueles que se mantiveram cegos durante a análise pessoal. É o nono achado acidental;
  • Concluindo: O décimo achado acidental do psicanalista que se forma é relativo à própria formação. Como o título desta contribuição indica, essa implica ter se confrontado, na própria análise, com a surpresa dos achados acidentais.

Publicado originariamente em 19 de dezembro de 2014

Achados ‘acidentais’ na vida, na genética e na psicanálise – Trechos selecionados

Aeroporto 1

com Suelen Gregatti da Igreja

Você procura uma coisa, descobre outra. Seria razoável imputar aos geneticistas a responsabilidade de informar, para as pessoas que realizam um sequenciamento genético, achados acidentais que, como o nome indica, apontam para diagnósticos inesperados? Esta foi a questão guia de uma pesquisa que, em outubro, o Instituto da Psicanálise Lacaniana (IPLA) apresentou, no maior congresso de genética do mundo, realizado no San Diego Convention Center, em San Diego, Califórnia (EUA), no 64th Annual Meeting of the American Society of Human Genetics.
Nosso trabalho, “Next generation DNA Sequencing and Incidental Findings. Consultant’s opinion about the impact of being informed”, foi inserido no eixo “questões éticas, legais, sociais e políticas na genética”. Foi realizado no âmbito do projeto Desautorizando o Sofrimento Padronizado, em uma parceria entre o Instituto da Psicanálise Lacaniana e o Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo. Proposto por Jorge Forbes, diretor da Clínica de Psicanálise desse centro de estudos, com apoio de sua diretora, a geneticista Mayana Zatz, o trabalho foi executado com colaboração de Claudia Riolfi, Rita Pavanello, Teresa Genesini, Suelen Igreja e de Maria da Glória Vianna.
Na realização da pesquisa, elaboramos um questionário, no qual perguntamos a pessoas de diferentes idades e graus de escolaridade se elas gostariam de ser informadas caso, ao se submeterem a um sequenciamento genético, descobrissem, por exemplo, um alto risco de desenvolver doenças que não estavam sendo inicialmente investigadas, como câncer de mama ou de próstata. Dentre as 208 pessoas que responderam, 85% afirmaram a vontade de serem informadas acerca de eventuais achados acidentais.
Chamou atenção, inclusive, que, nesse caso, 80% das pessoas declararam desejar receber um acompanhamento psicanalítico para lidar com uma eventual angústia frente ao conhecimento inesperado.
“Lidar com o inesperado” foi o aspecto que uniu nosso trabalho com o dos outros pôsteres inseridos no mesmo eixo temático. Cabe ressaltar que, dentre os apresentados no evento, apenas 1,7% discutiram aspectos ligados a questões voltadas à conduta diante dos achados acidentais. Fomos os únicos a incluir a dimensão subjetiva de quem recebe um diagnóstico.
Para dar a ver a diferença da abordagem do nosso trabalho com os demais que foram apresentados no mesmo eixo temático, com relação aos modos de interpretar o que seja o “lidar com o inesperado”, destacamos, a partir da leitura dos resumos, quais os aspectos éticos mais discutidos.
Foi dado destaque ao caráter de normatização da ética, configurada de modo a garantir a privacidade daqueles que se submetem a um sequenciamento genético. A principal preocupação quanto a esse aspecto está nas consequências médicas e legais. Discutiu-se a necessidade de criação de leis que regulamentem a “personalized medicine” (medicina personalizada) e de se estabelecer leis e uma política uniforme, que preservem as possibilidades de escolha e de controle sobre o sequenciamento genético de cada pessoa que se submeter a ele. Pretende, assim, garantir a privacidade das informações geradas por esse tipo de sequenciamento.
A criação de bancos de dados para partilhamento genético, por exemplo, é um dos cernes da preocupação dos pesquisadores, que buscam um aparato jurídico para o exercício de seu trabalho. Nas palavras dos pesquisadores, a ética tem um caráter moralista, ligado ao campo do dever expresso em verbos tais como: necessitar, precisar, ter e poder.
Notamos que a configuração da ética, tal como apresentada no evento da ASGH, não é a mesma trabalhada por nós. Para eles, ela está ligada a uma lei que se coloca como um imperativo “para todos”, por um lado controlando as ações das pessoas e, por outro, trabalhando com a ordem de uma previsão quanto ao futuro.
Diferente é a nossa visão da ética, que, para nós, não é um “bom para todos”, mas a responsabilidade singular frente ao acaso e a surpresa. Estamos acostumados com achados acidentais. A clínica psicanalítica é a clínica do inesperado, da surpresa, do que chamamos, com Lacan, de Real; aquilo sobre o qual não se pode falar, nem representar.
A clínica psicanalítica, com essa experiência do Real, pode oferecer melhores caminhos aos geneticistas do que se verem engessados em moralismos disciplinares.
Foi o trabalho que apresentamos.

Publicado originalmente em 05 de dezembro de 2014

Copa de corpos

Portugal 1

Por um “corte de cetim”, um pequeno “regalo” ou qualquer coisa assim, alguém se coloca na mão do gringo. O que estão oferecendo?

Nesses tempos de copa, não foram raras as vezes em que, ao passear por um dos bairros mais famosos do mundo, Ipanema, no Rio de Janeiro, encontrei o mesmo cenário povoado de outros personagens além dos habituais. As ruas estavam cheias de gringos passeando, indo aos restaurantes, às compras etc. As línguas faladas (e inventadas) eram muitas. Quando ninguém se entendia, o recurso à velha mímica entrava em ação.
Nesse vaivém, foi impossível não notar a presença da “turma da viração”: moças, rapazes, adolescentes, pessoas de meia idade (tem para todos os gostos e tira-gostos), que expõem seus corpos em uma grande bandeja para que “os gringos” os escolham. Como tubarões em volta da presa, circulam ao redor dos vários hotéis do bairro.
Os turistas, enquanto andam, são seguidos por olhares ávidos. Quando decidem sentar, rapidamente encontram companhia. São moças ou rapazes que “chegaram junto”, como se não quisessem nada. Na busca de atrair a atenção do outro, vale até arriscar um “portunhol” e pedir uma “cueca-cuela” para o turista falante de espanhol. A sorte é lançada!
O que está em jogo nessa “loteria da vida”? Trata-se de um corpo atirado a esmo por alguém que quer se fazer olhar? É o caso da encenação da fantasia de “ser o escolhido”? É atração sexual pura e simples? Ou uma expectativa de abrir mão da responsabilidade de viver ao encontrar um gringo que lhe abra as portas para uma vida melhor?
Na prática, não é difícil de descobrir o que se passa depois desse contato inicial. Por um “corte de cetim”, um pequeno “regalo” ou qualquer coisa assim, alguém se coloca na mão do gringo. O que estão oferecendo? Provavelmente prazer sexual, acrescido do gozo de poder colocar alguém no lugar de objeto. A “turma da viração” deposita no outro a esperança de um futuro melhor, projetando nele as esperanças de ser retirado da realidade em que vive.
Essa situação é emblemática, não se localizando apenas na Copa do Mundo. Diariamente, pessoas abdicam-se do seu desejo em troca de fantasias. É como se, ao invés de escolherem o time para o qual vão torcer, se deixassem ser escolhidas por ele. É pena! Fixadas na ilusão de que existe um outro capaz de levá-las ao paraíso, ficam à mercê de uma bola perdida.

Publicado originalmente em 04 de julho de 2014

Pelo que a gente paga numa análise

Londres 1

Com o fim do casamento, tinha, também, perdido a convivência com os filhos. Como uma pessoa que tinha ganhado tudo dela não a queria?

Ao longo de uma análise, o pagamento de uma sessão é um dispositivo analítico. É o caso de uma paciente que chamarei de Aline, quarenta anos, empresária muito bem-sucedida, com excelente situação financeira.
Recebi o telefonema de uma senhora que se identificou como sua secretária. Ligou para marcar, para sua patroa, uma hora em meu consultório. Justificou seu telefonema dizendo que Aline chegaria de uma viagem ao exterior em dois dias. Com voz antipática, exigiu um horário. Aline tinha a encarregado de deixar a análise agendada. Não estava acostumada a ver seus pedidos não acatados.
No dia marcado, a empresária entrou em meu consultório exalando um forte perfume. Vestia grife da cabeça aos pés. Sapatos e bolsas de couro de cobra coroavam o conjunto. Não era propriamente bonita. Chamava atenção para si por meio da quantidade exagerada de adereços.
Não posso mais com tanto sofrimento, afirmou. Aline havia investido muito no casamento. Por exemplo, acordava antes do marido, maquiava-se e fingia estar dormindo, para que ele não tivesse uma surpresa desagradável com sua aparência ao despertar. Entretanto, havia sido trocada por uma mulher mais nova.
Para piorar, com o fim do casamento, tinha, também, perdido a convivência com os filhos. Não tinha a menor ideia do que tinha dado errado em sua vida. Nunca deixei faltar nada para os meus filhos, disse, perplexa, pelo abandono deles. Como uma pessoa que tinha ganhado tudo dela não a queria?
Pediu-me, chorando que eu a ajudasse. Como deve ter percebido, em mim, um semblante de hesitação, imediatamente disse que podia pagar o que fosse preciso. Afirmou que dinheiro não era, e nem nunca seria, um problema em sua vida. Ela detalhou: Além de ser uma grande empresária, tenho dinheiro de família. Se eu quiser ficar em casa, contando as flores do papel pintado do meu quarto, eu posso, mas decidi trabalhar.
Para fazer face ao meu silêncio, perguntou-me o preço da sessão. Respondi um preço absurdamente mais barato do que a média do mercado. Digamos, por exemplo, dez reais. Era, evidentemente, uma quantia irrisória para ela. Assustada, perguntou-me, gaguejando: Só isso?
Visando a informá-la que não é possível evitar o trabalho para ter uma vida qualificada pagando apenas em dinheiro, disse-lhe prontamente: Isso é exatamente o que você vai ter que ver!

Publicado originalmente em 04 de abril de 2014

Cachaça não é água, não!

Brasil 1

Para curar as ressacas da vida, não basta apelar para o Engov

Está chegando o fim do ano. Muita correria, a começar pelas donas de casa, para quem Natal e Ano-Novo não podem passar sem uma grande ceia. No caso do ano que vai chegar, a comemoração é acompanhada sempre de muita bebida: brinda-se por qualquer coisa, a qualquer hora.
Brinda-se, sobretudo, pelo que já se foi, pois não há como saber o que vem pela frente. Depois, reclama-se da ressaca. Ressaca… é assim o nome que se dá aos excessos, de bebida , de saudade, de amor, de tudo! Olhos de ressaca… Como nos arrependemos dos efeitos da “água que o passarinho não bebe”…
Dia seguinte: gosto de cabo de guarda-chuva na boca, corpo doído, dor de cabeça e a pergunta: como foi mesmo tudo ontem? Para a ressaca das festas de fim de ano, dizem que não há melhor medicação que o famoso “Engov”, cujo nome, aliás, parece ter se originado da pronúncia dada pela neta do dono do laboratório, ao ouvir a palavra em inglês “hangover”, ressaca. Resta saber se a ressaca que chega com o fim do ano é exclusivamente causada pela bebida.
Com certeza, a cachaça é marvada, porém, ainda mais marvada é a quebra das nossas expectativas. Muitas promessas são feitas, sobretudo, quando se começa a primeira semana do ano novo. Por exemplo: vou deixar de fumar, de tomar tanta cerveja, de comer tanto…
Lendo essas promessas com o jargão da psicanálise, podemos dizer que a pessoa promete a si própria domesticar o seu gozo, torná-lo menos associado ao sofrimento. As promessas de Ano-Novo, quase sempre, se referem à possibilidade de associar gozo e prazer. Por esse motivo mesmo, quando fazemos, desconfiamos: Mas será que não foi assim também no ano passado, e no retrasado também?
Há excessos que parecem ser incuráveis. Quanto a eles, nada adiantam as promessas, mas, sim, a consequência das ações. Quando não conseguimos fazer valer nossas próprias promessas, haja ressaca do coração e da vida! Só que, aí, o remédio talvez não seja “Engov”, mas uma boa sessão de análise, ou, quem sabe, uma boa dose de cachaça!

Publicado originalmente em 28 de dezembro de 2013

Então é Natal, ou, quando Dezembro chegar

Polonia 1

É Natal, e daí? Lá se vai mais um ano!

É Natal, e daí? Mais uma vez, as pessoas repetem a mesma ladainha: preciso fazer uma lista dos presentes para os mais chegados. Preciso, também, arrolar aqueles para quem compro apenas uma lembrancinha, assim baratinha, simplesinha, só um carinho… E, puxa: lá se vai mais um ano!
Fim de ano, todos cansados, esperando o 13º salário. Esperando. Esperando que Papai Noel nos faça emagrecer, deixar de fumar, entrar na prestação para comprar um carro, trocar a moto… Temos, então, três listas: a de presentes, a de lembrancinhas e a de desejos cuja realização nos assusta.
No saber popular, dizem que sempre desejamos o que já sabemos que não vamos cumprir. Isso explicaria os adiamentos do emagrecimento, da troca de carro etc. É como se o sujeito, de uma forma tosca, sempre ficasse devendo para ele mesmo. Assim, quem sabe, ele pode, ao mesmo tempo, não ter de enfrentar o seu desejo cumprido sem ter o título desejante protestado no Serasa. Pode pedir outra sessão para o analista.
No consultório, ao chegar o mês de Dezembro: já na primeira semana do mês, é muito comum que os pacientes cheguem falando de um Natal de muita euforia. Passado um tempinho, reclama-se do ano precedente. Sempre houve um pai que não apareceu para a ceia, um dinheiro que se esperava e que não pintou etc.
O Natal fica, assim, associado a momentos em que a pessoa, de uma maneira ou de outra, “ficou pendurado na broxa sem escada”! Passa-se da euforia ao pegar fila, à loja cheia, ao estacionamento do shopping lotado. Experimenta-se uma depressão que nenhum Panetone alivia, quem diria o Prozac!
Enquanto a pessoa acredita em Papai Noel, uma das figurações do Outro, vai continuar falando do rasgar correndo o embrulho de presente e da decepção quando não encontrou o que queria. Nesses relatos, escutamos muitos soluços, frases entrecortadas, muitas vezes de certa ironia em relação a um tempo que passou e que, certamente, nunca existiu.
Continuaremos pensando que “tudo que é bom dura pouco?” Ou, este ano, cada um de nós vai dar um jeito de ser o próprio Papai Noel? Boa decisão! Cheers!

Publicado originalmente em 20 de dezembro de 2013

Existe igualdade no gozo?

Brasil 2

Maria José se questionava a respeito do que ela era, homem ou mulher, sujeito ou objeto.

Maria José, 35 anos, era uma profissional bem-sucedida. Não no amor: veio procurar uma análise por ser sempre traída e abandonada. Divorciada, mãe de uma filha adolescente, era bonita e vistosa. Não compreendia como os homens não a amavam com a intensidade que ela os amava.
No início de sua análise, foi possível perceber que, em grande parte, o motivo dos sucessivos fracassos amorosos da moça poderia ser atribuído à ambiguidade de sua posição que, em relação aos seus namorados, ora se colocava em posição masculina, ora se colocava em posição feminina. Essa ambiguidade, aliás, já estava anunciada em seu nome próprio, composto por meio da justaposição de um nome feminino (Maria) e de um masculino (José). Maria José se questionava a respeito do que ela era, homem ou mulher, sujeito ou objeto.
Tudo nela era um exagero. O uso de bijuterias, o falar alto, a compulsão sexual, o gesticular escandaloso apontava para um gozo excessivo. Seu linguajar era, predominantemente, de “baixo calão”. Não se constrangia ao falar vários palavrões e, ao referir-se aos seus parceiros, dizia que eles, comparados a ela, “eram sempre meia-bomba!”.
Era obscena nas narrativas com a qual contava as inúmeras aventuras amorosas. Descia a detalhes anatômicos que expunham particularidades escatológicas de seus parceiros, como se, de outra forma, não pudesse dar conta de seu espanto por não ter pênis.
Dizia ter nojo do ex-marido. Recriminava, com asco, seus hábitos pouco higiênicos. Reativamente, ela limpava a casa também exageradamente. “Um belo dia, não aguentei mais tanto encerar e arrumar e pedi, junto com o desquite, a minha transferência para o Rio de Janeiro”, narrou Maria José.
Nas sessões, por sua teatralidade, Maria José reproduzia as estratégias usadas para a sedução. Na posição face a face, fazia de tudo para que se confirmasse sua posição de ser objeto do olhar do outro. Para deslocá-la dessa posição, convidei-a a passar ao divã. Essa passagem permitiu-lhe colocar, na palavra, sua dependência do gozo obtido pela sedução de sua imagem estampada no olhar do outro e, consequentemente, abrir espaço para uma posterior conquista do corpo próprio.
Maria José mantinha competição ferrenha com os homens. Indignada, reclamava não entender os motivos de não poder, como eles, em uma mesma semana, transar com três pessoas diferentes. Achava uma injustiça o fato de que um homem com esse comportamento ficasse conhecido como o “pinto doce” e ela como “piranha”, e não como “a gostosa”.
Paradoxalmente, ela era capaz de esperar horas até que um parceiro lhe telefonasse. Esperava passivamente para poder namorar um pouco. Quando contava os momentos de “abandono”, recheava seu relato de choro, parecendo frágil e meiga. Havia um contraste entre sua linguagem “cafajeste” e a delicada utilizada ao falar da sua solidão.

Durante algum tempo, nem o trabalho analítico progredia, nem a situação de frustração amorosa cedia. Nos momentos nos quais ficava claro em que não haveria possibilidade de manejar a sessão para que fosse algo além de uma enumeração de amantes, eu a interrompia. Era uma tentativa de dar um basta ao seu gozo fálico, o de mera descrição das performances amorosas, como se ela fosse um Don Juan de saias.
O tratamento foi girando em falso, pois não havia muita variação em pornografia… O que fazer para deslocar Maria José? Optei por um duplo manejo: aumentar a frequência das sessões, visando a empanturrá-la com os seus próprios relatos monótonos, e diminuir a sua duração.
A oportunidade de deslocá-la de sua posição surgiu quando, ao narrar uma conversa com suas amigas, Maria José afirmou ter dito o seguinte: “pois é Isabel, porque nós não arranjamos homens como nós…!”.
Aparentemente, ela não percebeu a ambiguidade que sua frase continha: 1) Ênfase no “como nós, Maria José e Isabel, que somos legais, bonitas, simpáticas”; 2) Ênfase no “homens”, “como nós, Maria José e Isabel, que também somos homens”.
Ao ouvir esse enunciado, decidi equivocar. Sem entrar em detalhes, imediatamente suspendi a sessão dizendo: “Tchau, José!”. Seu susto foi tão grande que ela não conseguia achar onde havia deixado a bolsa…
Isso fez efeito! Suas narrativas deixaram de ser feitas ora do lugar de “machão” ora do de “princesinha”. Saímos do campo dos lugares genéricos. Fundou-se, então, espaço para uma mulher madura, sofrida, solitária, com muita vontade de examinar sua vida em busca de matéria-prima para inventar sua singularidade.

Publicado originalmente em 22 de novembro de 2013

Não tem cura

Brasil 3

Retroceder para a sociedade de controle pode oferecer conforto, mas não felicidade.

O que a psicanálise tem a dizer a respeito do reacionarismo que, em pleno século XXI, se fez presente na Comissão de Direitos Humanos da Câmara? Tem causado comoção que tenha sido aprovado um projeto apelidado como a lei da “Cura gay”. Por que as pessoas têm protestado?
O texto aprovado (a passar ainda por outras duas comissões da Casa: Seguridade Social e Constituição e Justiça antes de seguir para o plenário da Câmara), permite que psicólogos proponham tratamento da homossexualidade, derrubando, assim, normas do Conselho Federal de Psicologia, para quem ser gay não é doença.
E para os psicanalistas, trata-se de doença? Retomemos a lição de Freud. Tendo sido procurado por uma senhora, preocupada com a orientação sexual de seu filho, redigiu uma carta, em 19 de abril de 1935, na qual deixava claro que esta condição em nada desabonava nem seu caráter nem sua saúde mental. Deixando bem claro que não concordava com a apreensão – moralista – da mãe preocupada, ele afirmou: “Não tenho dúvidas que a homossexualidade não representa uma vantagem, no entanto, também não existem motivos para se envergonhar dela, já que isso não supõe vício nem degradação alguma. Não pode ser qualificada como uma doença e nós a consideramos como uma variante da função sexual”.
Dirigindo-se a esta mãe, Freud foi claro ao dizer que, mesmo quando alguém quer, raramente uma análise se presta a “corrigir” a orientação sexual. Esclareceu, ainda, para que serviria o tratamento de um homossexual caso ele viesse à análise: “A análise pode fazer outra coisa pelo seu filho. Se ele estiver experimentando descontentamento por causa de milhares de conflitos e inibição em relação à sua vida social a análise poderá lhe proporcionar tranquilidade, paz psíquica e plena eficiência, independentemente de continuar sendo homossexual ou de mudar sua condição”.
Transcorridos quase 80 anos de sua publicação, porque a lição de Freud ainda não foi aprendida? Cito dois motivos. O primeiro é que as pessoas se enganam pensando que retroceder para velhos modelos vai proporcionar sossego para sua angústia. O segundo é que, para que a confusão amorosa se instale para o ser humano, não se trata desta ou daquela orientação sexual. Basta que o erotismo surja. Afinal, para o desejo sexual, como já cantou Luiz Gonzaga, em “O Xote das meninas”, “não tem um só remédio em toda medicina”.

Publicado originalmente em 21 de junho de 2013.

Os filhos do carnaval

Brasil 4

“Gravidez inesperada” não precisa ser sinônimo de “filho indesejado”. Toda gravidez é uma surpresa, mesmo dentro do mais detalhado planejamento.

“… São três dias de folia e brincadeira. Você pra lá e eu pra cá. Até quarta feira… lá, lá lá…”. Como na letra da marchinha, nesses dias de regime de exceção, as regras que formam um casal podem passar a não valer. Formam-se pares de ocasião e, às vezes, não se medem as consequências. Todos os anos se repete a mesma história, podia até ser enredo de escola de samba!
Minha prática em hospital permite acompanhar a novela. Passados alguns meses, eles começam a receber moças que se queixam de muito enjoo, tonturas e sono: “Dra, sinto muito sono, parece que preciso dormir um ano…”. São pedidos os exames. Muitas vezes, o médico até já sabe o que vai dar, mas não se pode comunicar nada sem provas objetivas. Após 10 dias, a mãe, digo, a moça, volta com cara de espanto e, mal ouve o resultado do exame, já tem que marcar um pré-natal!
Desconcertada, ela comenta aos amigos: “Já que eu não estava tomando remédio, peguei barriga no Carnaval!”. “Se pega” uma gravidez, como se pega uma gripe, um ônibus… Simples assim. Depois de quarenta semanas, recolhem os frutos dos encontros desencontrados como crianças marcadas pelo anonimato, pelo desconhecimento.
Crianças de novembro, alguns filhos do Carnaval, podem ser considerados “filhos de ninguém”. Sentem-se excluídos, colocados à margem do comercial de margarina. Reclamam por serem estigmatizados: filhos de “pai desconhecido” e de mãe avoada, cabeça de vento. Precisa ser assim? Será que toda criança que é fruto de um “acidente” é, de fato, indesejada? Como a psicanálise poderia agir nesses casos?
Na Clínica do Real, poderíamos, por exemplo, mostrar que toda mulher pode adotar simbolicamente o filho que gerou, tenha sido a gestação planejada ou não. Poderíamos levá-la a ver que, mesmo dentro do planejamento mais detalhado, uma gravidez é sempre uma surpresa.
Para os filhos do carnaval, a ajuda seria ainda mais simples: uma pergunta. Se é mesmo verdade que sua mãe nunca lhe desejou e que você não passou de um acidente em sua vida, por que você não foi abortado? Que caia a fantasia: quando se trata dos humanos, ou nos damos conta que somos todos adotados ou nos condenamos a uma maldita bastardia.

Publicado originalmente em 22 de março de 2013.