A.N.A. – Do sem nome ao nome próprio

Aos 37 anos, casada, Elizabeth Aparecida me procurou por “um tal de não sei o quê”. De estatura mediana e pele clara, tinha longos cabelos que desciam, escorridos, ao longo de seu corpo. Como tirar alguém de um sofrimento sem nome? Era preciso muita, muita paciência para acreditar que, um dia, Beth pudesse se apropriar de seu sofrimento, tornando-o seu.

Trabalhava na empresa de sua família, em uma função na qual se sentia subaproveitada. Não buscava outras opções, pois sua mãe a havia educado não para o sucesso, mas para que ela pudesse “ter o suficiente para pagar os seus alfinetes”. Lidava com o público, sempre de modo muito cortês: falava pausadamente, respondendo com educação o que lhe perguntavam. 

Nas sessões, também adotava um tom modulado, contido, polido. Dizia que, às vezes, lhe chamavam de Beth, outras de Cida. Quando lhe indaguei a respeito de sua preferência, respondeu que tanto fazia. Não sou eu mesma? 

Seu nome duplo não havia sido muito pensado. Quando o escrivão perguntou ao pai pelo nome da criança, irrefletidamente ele respondera os dois nomes. O escrivão havia feito uma pergunta de confirmação: — Elizabeth ou Aparecida? E o pai respondera: — Tanto faz, o senhor pode colocar um ou outro.

Elizabeth Aparecida parecia, nos termos freudianos, estar sendo vítima de uma compulsão à repetição. Traumatizada por esse relato de seu pai, vivia a vida de maneira a recriar este “tanto faz” por meio do qual dava ao outro o poder de decisão sobre sua vida. Inclusive, não entendia por que a psicanalista nunca lhe dizia o que fazer e se queixava do fato de que as sessões lhe eram penosas.

Uma ruptura quase se deu quando, após uma conversa com uma colega de academia de ginástica, Beth descobriu a existência da “Associação dos Neuróticos Anônimos”. Julgava que seria leve ir para um lugar onde ninguém saberia quem ela é. Uma pontuação foi decisiva: dizer que A.N.A poderia ser lido como uma sigla, mas, também, como um novo nome, desta vez, escolhido por Ana, née Elizabeth Aparecida, para além das heranças e maldições de seu pai.

No Seminário 20 de Jacques Lacan, o psicanalista usa a expressão “novo amor” para designar este momento no qual o sujeito altera radicalmente seus modos de relação com os demais, fundando uma vida diferenciada. Neste momento em que nos preparamos para receber 2022, os melhores votos de novo amor para todos nós!

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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