É possível viver só de provérbios?

Lívia, 38 anos, jornalista, veio procurar análise por não conseguir se manter em um emprego. Fazia 10 anos que vivia “pulando de galho em galho”. Também tinha dificuldades de manter amizades, parceiros amorosos, estilo de roupa e cor de cabelo, etc.
Era exímia conhecedora da sabedoria popular. Sempre tinha um provérbio na pontinha da língua. Ela os usava como justificativa para suas mancadas. Por exemplo, quando chegava atrasada em uma reunião, já entrava afirmando que “os últimos serão os primeiros”. Em suma: de provérbio em provérbio, Lívia construía uma rede de significantes que a desresponsabilizava pela sua vida.

Quando indagada pela analista a respeitos dos motivos das sucessivas demissões, acabou lembrando-se de uma história familiar. Falou que toda vez que contava para a mãe que havia perdido o emprego, ela dizia: tal avô, tal neta. Segundo a paciente, a mãe sempre comentava que, por não suportar ouvir críticas, o avô mudava de emprego de tempos em tempos. Essa explicação dava a Lívia o lugar daquela que deveria cumprir um desígnio familiar, como se lhe fosse dado o fardo de carregar a herança do avô.

A analista decidiu ir a favor do sintoma. Um dia, quando a moça chegou contando do término de seu relacionamento amoroso, a analista perguntou: “Antes só do que mal acompanhada?” Assustada, Lívia discordou. Em outra ocasião, quando algo havia saído errado, a analista novamente interrogou: “Mas, Lívia, Deus não escreve certo por linhas tortas?”

Lívia acabou percebendo que ela não era obrigada a reproduzir as palavras ou destinos em que as pessoas lhe fixavam. Ao poder ter mobilidade, passou a pensar a respeito de quais lugares desejaria ocupar e no trabalho necessário para conquistá-los e mantê-los. Foi então que começou a construir uma vida autônoma e responsável.

Uma análise pode ajudar alguém a desvencilhar-se dos mantras que martelam sua vida, de modo a liberá-la para a conquista de um modo singular de usar a linguagem. Nesse ponto, as palavras contam como peças a favor do desejo e não como paredes de uma prisão.

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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