Como deixar de se amarrar?

Nesta época de final de ano, é comum a pergunta “onde você vai passar a virada?”. Proponho outra: No ano que se inicia, onde você vai se amarrar?

Ana Paula, 40 anos, engenheira civil, ao ouvir o endereço do consultório da analista disse: “Ah, conheço essa rua”. Entretanto, no dia e hora marcada, telefonou para dizer: “Não tô achando!, não to achando o endereço! Já estou rodando há meia hora e não acho”. Acabou decidindo remarcar a sessão. Nessa nova oportunidade, minutos antes do horário, novo telefonema: “doutora, não estou achando… a minha carteira… Quando fui pegar o táxi para ir aí, notei que minha carteira não estava na bolsa: ou fui assaltada ou esqueci a carteira em casa e só vou saber se for até lá…”. Foi só na terceira semana que Ana Paula chegou ao consultório. Sua queixa era: “não aguento mais, ando exausta e não sei o porquê de tanto cansaço”. Dada a repetição, era necessário interrogar: O que Ana Paula não achava? Como fazer ela se amarrar?

Inicialmente, a paciente só conseguia falar vagamente que não aguentava mais o trabalho, o marido, os filhos, a família. Eram queixas generalizadas, como quem reclama do “trânsito”. Para que a análise se instalasse, seria necessário que o analista se concentrasse no trabalho de localizar e delimitar a queixa para que Ana Paula pudesse se interrogar com relação “à sua parte naquilo de que se queixava”.

A vagueza do dizer de Ana Paula, somada ao choro constante fez com que analista mudasse de estratégia. Decidiu querer saber quais eram as coisas que a moça gostava, filmes, livros etc. Foi então que o significante “amarrar” foi aparecendo nas sessões. “Eu me amarro em ficções científicas”; “Eu me amarro nessa história de amor” ou ainda “não me amarrei no lance do trabalho…”.

Uma das acepções do verbo amarrar, de acordo com o dicionário, é: unir fortemente, prender, cingir, atar, ligar. Era uma boa metáfora para a continuidade da análise de Ana Paula. Se ela estava exausta de não saber “onde amarrar seu burro”, era preciso fazer um resgate e amarração da sua história.

A cada sessão falava de retalhos da infância, da juventude, do trabalho atual. No entanto, demorou para distinguir de que modo cada qual estava ligado à sua vida. Tinha sido separada dos pais biológicos aos 7 anos. Tinha vivido outros quatro com outra família. Tinha passado a adolescência com outros parentes. Aos 40, falava de cacos perdidos. As perdas eram frequentes. Perdia endereços, horários, documentos, reuniões. Não se ligava afetivamente a pessoas.

Como prosseguir com a análise? Jacques Lacan, no seminário XXIII (1975-1976), ajuda-nos a responder. Na página 71, lê-se: “é de suturas e emendas que se trata na análise”. A lição que Lacan nos ensina é que um trabalho analítico pode possibilitar a alguém que está à deriva em seu gozo construir um contorno, uma amarração que lhe dê um norte.

No caso de Ana Paula, tratou-se de não mais se fixar nos retalhos soltos de sua história, costurando-os, ressignificados, com a linha do desejo. O passado não se altera. É possível, entretanto, se reconciliar com ele. Para tanto, é necessário fazer com que ele não seja mais impeditivo para novas tessituras de sua história.

Feliz ano novo!

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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