Domingo frio e chuvoso. Muitos paulistanos pareciam ter tido a ideia de almoçar no mesmo restaurante. De repente, surgiu uma música repetitiva. Um senhor, aparentando mais de setenta anos, carregava um realejo todo remendado. Ele bradava: “venham todos, venham todos tirar a sorte do periquito; a sorte na sua vida, nos seus amores e nos seus negócios! O periquito não falha! ”
As conversas cessaram. As crianças, antes inquietas, observavam, encantadas, o simpático periquito. Adultos aderiram a sua curiosidade. A custo de dois reais, todos podiam ver o periquito tirar um papelzinho cuidadosamente dobrado de uma gavetinha e entregar na mão do seu senhor, que, por sua vez, passava para o cliente. Podiam, ainda, ler “a sua sorte”, com ar de muita curiosidade.
Essa cena faz pensar na relação das pessoas com o desejo. Recorrer ao realejo, para alguns, pode funcionar como o que, em psicanálise, chamamos de se pautar no Grande Outro. Trata-se de uma instância que, no imaginário das pessoas, pode controlar e predestinar suas vidas, afinal, o Outro é aquele que tudo sabe, tudo vê e tudo pode. Quanto poder! O Outro funciona como oráculo de Delphos, a quem se recorre para saber o destino.
Delegar a vida a um Outro é não se comprometer com nenhuma escolha, já que, se algo der errado, foi obra do destino. Trata-se de uma posição paralisante e descompromissada. Afinal, a pessoa não precisa pensar e arquitetar sua vida em prol de um desejo. Ela faz “o que seu mestre mandar”.
Na clínica, muitas vezes o paciente chega com essa demanda: “você me conhece o suficiente, o que eu devo fazer?” Frente a esse questionamento, o analista precisa ouvir as sutilezas da demanda de alguém que tenta se esquivar desse trabalhoso caminho do desejo. Caso se coloque como aquele que sabe o que é melhor para seu paciente, o analista pode se converter no “periquito do realejo”.
O que uma análise levada a bom termo pode modificar na vida de alguém é algo da ordem de um milagre. Em 1961, Lacan o chamou de milagre do amor. Disse que ele ocorre na medida em que a pessoa se torna desejante. Quando ele ocorre, a pessoa passa a perceber que não há receitas prontas para alguém ter sorte na vida. Dá-se conta de que é necessário trabalhar para sustentar o seu desejo. Procurar um analista não é garantia de sucesso no amor, nos negócios etc. Analista não é periquito de realejo.
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