Prometeu desacorrentado

Prometeu

Joana, 35 anos, casada, mãe de dois filhos, chegou ao consultório um tanto assustada. Ao primeiro cumprimento, desatou um choro desenfreado. Aos prantos, contou-me como, há quinze anos, vinha sofrendo nas “mãos de seu marido”. Em suas palavras, “um cara bronco de sentimento, que só sabe me consumir, como se alimentasse todos os dias do meu sofrimento”. Depois de ouvi-la atentamente, a psicanalista perguntou: “mas, alguma vez você já quis deixá-lo com fome?”.

À essa intervenção arriscada, de duas uma: Joana sairia do consultório e nunca mais voltaria ou, de algum modo, as palavras da psicanalista tocariam seu corpo, fazendo-a, ao menos, desconfiar de sua posição de submissão frente ao marido. O objetivo da intervenção era deslocá-la de uma posição mortífera que a fazia deixar-se devorar por muitos e muitos anos, como se tivesse cumprindo um castigo imposto pelos deuses.

Esse fragmento de caso fez-nos lembrar do “Mito de Prometeu”, um titã que, segundo a mitologia grega, tinha o dom da profecia. Filho mais jovem de Jápeto e Climene, desde pequeno era criativo e inteligente. Usava seu dom para comunicar-se com os deuses e compreendia a essência de todas as coisas do universo. Prometeu foi um defensor da humanidade, ficando conhecido por sua astúcia ao roubar o fogo de Héstia e dá-lo aos mortais.

Por causa disso, Zeus ficou muito irado com essa “façanha”, decidindo puni-lo. Decretou ao ferreiro Hefesto que prendesse Prometeu, por 30 mil anos, em correntes junto ao alto do monte Cáucaso. Além de permanecer acorrentado, o titã era bicado diariamente por uma águia, que lhe consumia o fígado. Como Prometeu era imortal, seu órgão se regenerava, fazendo com que o ciclo destrutivo se reiniciasse a cada dia.

Retomando o caso Joana, podemos pensar que, tal qual Prometeu acorrentado, a jovem senhora, inconscientemente, tinha feito um acordo com “Hefesto”. Presa ao sintoma que a colocava em posição de vítima, conformava-se com o fato de ter “seu fígado devorado”. Assim, por 15 anos, perpetuava um gozo do qual não se achava em condições de se desacorrentar.

Podemos dizer que, hoje, as correntes de “Hefesto”, para cada pessoa, podem ter um nome: droga, bebida, comida, inércia, doença psicossomática. Trata-se de diferentes facetas de um mesmo nome: a repetição da pulsão de morte.

Na mitologia grega, Prometeu não sofreu eternamente. Contou com o herói Hércules que, com sua força, libertou o titã das correntes, substituindo-o no cativeiro pelo centauro Quíron.
E hoje? Existiria um salvador que pudesse, sem ser chamado, libertar a pessoa do ciclo destrutivo do sintoma? Como sair da posição de condenação de Prometeu?

Joana veio, depois de 15 anos, procurar ajuda. Mas, ledo engano achar que o analista pode fazer o papel de Hércules. Longe da mitologia, o que a psicanálise pode fazer para desacorrentar Joana e tantos outros “Prometeus”?

A partir da escuta, dar a ver ao sujeito sua parcela no sofrimento do qual se queixa. Se existe alguém que, nas palavras de Joana, a “consome”, é porque, de algum modo, ela se deixou ser consumida pelo outro. Na verdade, é ela mesma quem precisa decidir se quer abrir mão desse sugar doloroso do qual também se alimenta.

Uma análise, portanto, ao trabalhar na direção de uma cura, pode ajudar a quem dela se beneficia a libertar-se das amarras do sofrimento, abrindo-lhe novas formas de viver. Se, por um lado, a via do gozo aprisiona, por outro, a via do desejo desacorrenta o sujeito de um pesado fardo.

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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Um Comentário

  1. E que a psicanálise continue nos ajudando a quebrar velhas correntes! Muito bom, lindo texto!!!

    • gloriavianna@terra.com.br

      Daniela, muito obrigada pelo retorno e pelo comentário. Sim, continuemos o trabalho incessante para a quebra das correntes que aprisionam o sujeito. Até o próximo

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