Qual é o sabor que a análise pode acrescentar a uma vida? Você já pensou sobre isso?

Já imaginou fazer sua refeição em um deserto cercado de beduínos ou, quem sabe, até de camelos? Foi este cenário que um presente ofertado por uma pessoa versada em culinária acionou: um pequeno ramo das folhas do pé da combava (Kaffir lime). Sua folha é dupla, com uma forma que imita um oito deitado. A árvore frutífera é nativa do sudeste asiático; dá frutos de casca grossa e rugosa.

Essa oferenda me foi dada em uma conversa na qual quem me presenteou me contou que a cozinha oriental é tida por muitos como uma das mais perfumadas. Além do tempero requintado de suas iguarias, a preparação dos pratos envolve os comensais numa atmosfera mágica tipo as “Mil e uma noites”. A combava ajuda no clima: perfuma as iguarias e lhes dá um sabor único. 

A árvore da combava tem “mil e uma utilidades mágicas”. As suas folhas são utilizadas para tratar picadas de insetos e sua casca ralada é considerada um tempero muito especial, principalmente na culinária tailandesa, para perfumar frutos do mar. 

Esse feliz encontro fez-me pensar acerca do quanto de tempero uma análise pode acrescentar a uma vida. Na vida, há cheiros e sabores que não se explicam. Só são sentidos quando tocam quem está sensível. É pena, mas há quem consiga passar batido, por exemplo, ao sentir o cheiro de mato molhado depois de uma chuva de verão, ou, ainda, de pão saindo do forno ou de bolo fresquinho. 

Uma análise, então, pode tornar a vida de alguém mais saborosa e mais perfumada na medida em que é um convite para que um sujeito se toque com esses cheiros e perfumes que o cercam e sempre estiveram ao seu redor. Depois de uma análise, esses cheiros, temperos e sabores afetam o corpo, roçam a pele, marcam alegremente a vida e a história de uma pessoa. 

Uma análise visa, pela via do desejo, a temperar a vida de um sujeito, equilibrando, na medida do possível, seus sabores e dissabores.

Lacan autoclavado

Lacan: Mais ainda, o corpo

Ao preparar as aulas do Curso 2021 – MAIS AINDA, O CORPO, acabei cotejando a versão original do texto de Lacan em francês com algumas traduções diferentes de um de seus Seminários. Uma era a versão mais conhecida de todos, do Jorge Zahar Editor, outra, de uma edição alternativa disponível na internet.

Supostamente, a tradutora da edição alternativa tinha desejado fazer um trabalho melhor do que o anterior, corrigindo o que julgava serem as falhas. A colega foi pela via do acréscimo. Começou explicando de onde veio a tradução. Prosseguiu fazendo uma lista obsessiva da origem do texto que serviu de base para a referida tradução. A cada decisão, ia explicando o porquê procedeu dessa ou daquela maneira. 

A consequência do acréscimo é que ele pode acarretar, para aqueles que leem pela primeira ou décima vez, um aprisionamento de sentido. O que se pôde depreender foi uma necessidade, por parte da tradutora, de querer captar exatamente todos os meandros dos enunciados de Lacan. Evidentemente, em alguns momentos é interessante dar esclarecimentos a respeito dos diferentes modos de apreensão de um termo em língua estrangeira, no entanto, é preciso cautela para que informações não sejam transformadas em uma bula do texto psicanalítico.  

Fico aqui pensando na especificidade da tradução do Seminário de Lacan. Nesse caso específico, é preciso que o tradutor se preocupe menos com a exatidão das palavras e mais em manter a frouxidão da ligação entre palavra e coisa. Ao traduzir, é preciso que o trágico do texto apareça; trágico no sentido daquilo que escapa a uma síntese reducionista. 

Cabe ao leitor suportar sua angústia ante ao sentido que sempre pode ser outro. Frente a tantas notas do tradutor, vale lembrar o incrível personagem Odorico Paraguaçu, elaborado pelo nosso escritor Dias Gomes: “não é possível que a alma esteja lavada e enxaguada”. 

Como lidar com a angústia? Com o desejo e com a análise pessoal. Suportar a dureza da leitura e pensar a pluralidade do enunciados coloca os leitores da psicanálise frente ao não saber, ao equívoco constitutivo da linguagem. 

Penso ser deveras elegante manter a palavra traduzida em um lugar silencioso, instigador para que o leitor procure mais além da escrita, mais além de seu corpo, nas lacunas da sua lalangue, assim, o enigmático terá sentido.

Se você ficou curioso para entender imbricada relação entre corpo e linguagem e sua incidência na clínica, venha estudar psicanálise conosco, no grupo Enlaçamentos Clínicos.

Lacan Autoclavado

A dobradiça do desejo

Maria Lúcia veio procurar uma análise por indicação de seu ortopedista. Dizia que já não aguentava mais. Não conseguia andar direito, subir ou descer escadas. Após três cirurgias no joelho, ele “não obedecia, não dobrava mais”. 

O médico tinha feito um primeiro contato com a analista. Durante a terceira cirurgia, quando entraram com o artroscópio em seu joelho, viram que toda a articulação do joelho estava liberada. Na sala de cirurgia, a equipe tinha conseguido dobrar o joelho! Era um mistério: se o joelho estava livre fisiologicamente livre, por que não mexia? O que estaria aprisionando Maria Lúcia?

Na primeira sessão, Maria Lúcia contou ao analista que sempre foi “dura na queda”. Filha mais velha, sempre manteve uma relação de rivalidade com os dois irmãos mais novos. Disse que só ela gostava de esportes: tênis, equitação, corrida, saltos ornamentais. Nas suas palavras, “o que só eu e meu pai gostávamos… ele, sim, meu incentivador”. Para ela, seus irmãos eram “bons de plateia”. Dizia que ninguém era “páreo” para ela. Deixou claro que não havia assunto com relação ao qual não desse a última palavra. Orgulhava-se de levar o outro à “exaustão verbal”; perseguia o que queria e não tinha medo de tamanho ou de grito! Era inflexível. Foi assim que, segundo ela, era bem-sucedida na profissão: administradora de empresas. 

Tudo lhe parecia bem até que sofreu “uma dura queda”, a partir da qual a vida só foi “degringolando”. Um dia, durante mais uma discussão violenta com o filho mais velho, na presença de sua filha e do marido, Maria Lúcia escorregou na rampa da garagem e caiu. O tombo teve consequências nefastas: fratura exposta do joelho e parte da tíbia! Em suas palavras, foi castigada sem o merecer. Foi submetida a uma cirurgia e diversos tratamentos em sua cidade natal. Tudo em vão. Foi quando resolveu se mudar para São Paulo, para que fosse atendida “pelo melhor ortopedista”. E assim fez. No cálculo de Maria Lúcia, tudo se resolveria. A família tinha posses e era só tomar um avião, passar em uma consulta e logo voltaria à vida normal. 

Nada aconteceu conforme o planejado, para o desespero de Maria Lúcia. O tempo passou e nova cirurgia foi feita para, segundo o ortopedista paulista, corrigir alguns erros, má colocações e parafusos. A saga pela mobilidade reiniciou-se: internações, homecare, centro cirúrgico, fisioterapias… E com um discurso de indignação e injustiça da vida Maria Lúcia chegou à análise. Afinal, queria encontrar alguém a quem pudesse culpabilizar por seu sofrimento.  

Ao longo das sessões, a rigidez daquela senhora foi dando espaço a um sorriso amável e tímido. A paciente foi percebendo que, até então, ser dura, inflexível, era o que dava o tom de sua vida, a ponto de toda fixidez agora se transferia para uma parte de seu corpo: o joelho. Era preciso, então, que essa articulação, a dobradiça emperrada, conseguisse se mexer. 

Por que Maria Lúcia não conseguia dobrar a articulação de seu joelho? Ela confundia a dobra do desejo com tornar-se alienada ao gozo do Outro. Julgava ter de manter uma relação de servidão em relação ao Outro. Assim, para ela, concordar significava seu apagamento como sujeito, e não, ao contrário, seu advento como tal.  

A direção da análise consistia em viabilizar uma mudança de posição. Era necessário levá-la a entender que o Outro não é tão poderoso a ponto de poder esmagá-la. Abalar certezas, abrir negociações. Incluir o imprevisto, a surpresa, o acaso. Assim, Maria Lúcia não precisaria mais ficar condenada a atender à imagem de filha ideal perante o pai. 

Se desarrumar faz bem

Você não pode arrumar tudo em sua vida.

Teresa, 60, sentia-se incompreendida. E sofria. E, por sofrer, veio procurar uma análise. Ninguém valorizava seu modo de ser. Indignada, perguntava à analista: “será que vou ter de arrumar a cabeça dos outros para que eles entendam que eu sou normal?”. 

“Arrumar” era a palavra-chave da sua existência. Todas as vezes que saía de casa, tinha uma espécie de checklist: desligar a cafeteira, apagar a luz do hall, verificar todas as torneiras, janelas etc. Na Unidade Hospitalar onde trabalhava, arrumava cuidadosamente a fileira dos soros, que “ficavam em uma bisnaga de plástico amolecida”. Conseguia arrumá-los de forma que quem precisasse pegá-los não derrubava a pilha, nem bagunçava a sua arrumação. 

Esse é só um exemplo de tudo o que organizava: a pilha de ataduras, de esparadrapos, as tesouras para diversos fins enfileiradas tal qual tropa de soldados marchando e assim vai, ou melhor ia: a fileira de batons, blushes, escova de dentes arrumadinha com a pasta, rigorosamente apertada, todas as roupas separadas por tamanhos, cores, os panos de prato, chão, todos arrumadinhos e enfileiradinhos. Da vida, exigia que tudo estivesse “nos seus devidos lugares”. 

Vestia-se impecavelmente. Em suas palavras, “podia estar até com uma roupinha fuleira, mas sempre nos trinques”. E… haja controle, haja checklist, haja organização e a espera inalcançável de um prêmio dado pelo Outro, idealizado por ela.

Algo mudou em um almoço entre amigas. Logo após a sobremesa, foi retocar o batom e ouviu, no banheiro, uma conversa entre duas senhoras. Uma delas falou: “Nossa fulana, você sempre impecável! Nem parece que você estava sentada no almoço, porque seu vestido nem amassou!”. A outra, já saindo do toilette, respondeu: “eu sou assim, mas tento não exagerar, pois, como se diz popularmente, ‘o diabo enfeita tanto os olhos do filho que até fura’”.

Teresa contou que saiu do restaurante com as pernas balançando e uma estranha sensação no peito. Mais tarde, no divã, acabou se dando conta do quanto tinha medo do olhar ferino de sua mãe, sempre pronta a fazer uma crítica mordaz. Como tinha medo do olhar do Outro, tentava, inutilmente, fazer com que tudo fosse perfeito para completar o Outro materno.

Interrogando o ditado popular, deu-se conta de que arrumava a tudo, o tempo todo, para não furar a diabólica ligação estreita e sofrida que mantinha com sua mãe. Acabou rindo muito ao perceber a conclusão lógica de sua análise: tornar-se, em suas palavras, um pouco mais bagunceira. Depois, se conformou. A vida é mesmo muito bagunçada.

A paciência do analista: a repetição da escuta

A paciência do analista: a repetição da escuta

Na clínica psicanalítica, infelizmente, existem casos em que, por um tempo, a pessoa fala sempre as mesmas coisas, não conseguindo se comprometer com o que diz. Reproduz as mesmas histórias, dez, vinte vezes, indiferente às pontuações do analista, que, por sua vez, tem que ter paciência. Enquanto esta situação perdura, é uma perda de tempo e de dinheiro. Como entender isso?

Nos seminários e textos de Lacan, as menções ao reino animal são bastante frequentes. No Seminário dos anos 1969-1970 (Livro 17. O avesso da psicanálise) existe uma metáfora que parte da diferenciação entre os animais necrófagos, que se alimentam de carniça e aqueles que participam da caça. Mais especificamente, na página 159, encontramos o seguinte excerto “…a palavra pode fazer o papel de carniça. De qualquer maneira, ela não é mais apetitosa que isso”.

Na época, Lacan estava criticando estudantes que, de maneira acéfala, se limitavam a repetir palavras de ordem, sem se preocupar em procurar saber o significado do que estavam falando. Ele disse que os estudantes estavam se comportando como cães que latem. Assim, suas palavras eram como latido, não tinham vida. Não eram carne, eram carniça. 

Na análise de Lacan, ao protestar, os estudantes falavam como quem latia, reproduziam qualquer coisa, eram atraídos por “palavras – carniças”, palavras mortas, podres. O problema de aderir a palavras-carniça é que as reproduzir produz um saber sem o menor compromisso com a verdade, apenas puras reproduções das podridões. 

Então, voltando à situação clínica, quando existem situações petrificadas, às vezes podemos pensar no fascínio que as palavras-carniça exercem em quem tem preguiça de viver. Falar para além da carniça exige se engajar em um processo de repetição diferencial. Revisitar a mesma história, mas de jeito diferente.

 O trabalho do analista para ajudar a pessoa a fazer esta passagem é muito delicado. Às vezes, inclusive, consiste na paciência de esperar o tempo do outro cansar de se espojar na carniça. Ele não cansa de ouvir a mesma coisa. Por esse motivo, ao mesmo tempo que o analista tenta implicar o paciente em suas palavras, ele exercita a impassibilidade até que restem apenas ossos.

A Poker Face do analista: a curiosidade do paciente

A poker face do analista: como responder as dúvidas dos seus pacientes.

Como responder à curiosidade de um paciente frente ao seu analista e à própria psicanálise? As indagações são as mais variadas: Você é casado? Tem filhos? Irmãos? Cachorro? Papagaio? Como é esse negócio de ser psicanalista? 

Na década de 1970, era muito comum se dizer que o paciente que muito perguntava acerca do seu analista estava quebrando a moldura do setting e assim até mesmo impedindo e atrapalhando as sessões. Assim, ensinava-se ao analista responder ao paciente com outra pergunta qualquer ou, ainda, a ignorá-lo.  

Entendia-se que o analista não pode dar respostas: para uma pergunta, outra pergunta. Ainda hoje, há quem compartilhe dessa visão, segundo a qual a curiosidade do paciente é algo a ser evitado. O analista deveria manter-se na posição do poker face, eximindo-se de uma resposta, para não ceder às tentativas sedutoras do paciente. Era como se pudesse chegar à seguinte conclusão lógica: toda pergunta do paciente acerca do analista teria valor de sedução, logo, entraria no hall das interpretações prontas, das respostas grosseiras-protetivas. 

Na tentativa de se manter certa aura em torno do analista, o que se produzia, para alguns sujeitos, era um tremendo mal-estar. Havia, ainda, o risco de um desserviço à psicanálise, com a criação de um imaginário social do psicanalista grosseiro que só abre a boca para dizer: – hum, hum. Terminamos por aqui

E na clínica de orientação lacaniana? O analista responde ou não responde às perguntas que lhe são feitas? Vale recordar um diálogo travado entre Lacan e sua audiência, na lição de 13 de maio de 1970. Alguém lhe disse: “O que o senhor diz está sempre descentrado em relação ao sentido, o senhor escapa do sentido”. Lacan então responde: “Vai ver que é nisso justamente que meu discurso é um discurso analítico. A estrutura do discurso analítico é assim”. (Seminário XVII, p. 138) 

Então, seguindo esta orientação, o analista responde e não responde. Para haver progresso no tratamento, trata-se de descentrar o sujeito em relação ao que ele pensa estar falando no momento da interlocução com seu analista. Às vezes, se achar por bem o fazer, pode redarguir tranquilamente às curiosidades que lhe são dirigidas, desde que, a partir delas, possa introduzir novas ambiguidades. Então, se alguém me pergunta: – “Você tem um gato?” Eu posso responder “Não, eu prefiro os cachorros”, desde que, na sequência, diga algo como: “Mas o que levou você a pensar, logo hoje, nas escolhas que nós fazemos?”.

A poker face do analista: como responder as dúvidas dos seus pacientes.

Da herança melancólica ao luto singular

Escrevo este texto em um momento em que, no Brasil, 117.665 famílias perderam membros queridos por COVID-19 e, forçosamente, tiveram de lidar com questões de herança.

O que é que uma pessoa herda? Uma criança quando nasce herda uma família, um nome, uma cor azul ou rosa, uma profissão, mas, sobretudo, um sobrenome. Um sobrenome está para além do nome. É o que dá a esse sujeito uma localização dentro de uma família. Vai marcar o sujeito e lhe dar o lugar do patronímico. Se, por um lado, o sujeito precisa dele para ter um lugar, por outro, paradoxalmente, só o conseguirá na medida em que o ultrapassar criando e constituindo o seu nome próprio. 

“Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”, citação de Goethe que Freud toma para a articulação final em Totem e Tabu (1912-1913). “Conquista-o” é no sentido de apropriar-se de um legado que, no entanto, tem de ser ressignificado. Depreende-se, então, que dependendo de como a pessoa receber essa herança, ela pode ser algo maldito: se ela achar que pode, que sabe qual é o desejo do Outro para assim cumprir à risca a execução e continuação do mesmo. Ora, sabemos que essa exigência é da ordem de um narcisismo e de uma onipotência daqueles que se julgam capazes de abrir mão da construção de seu destino em prol da manutenção de um ideal. 

Nos textos de psicanálise, encontramos várias menções a respeito das formas de uma herança. Talvez, a mais antiga seja quando Freud, em Luto e melancolia (texto de 1917), refere-se a uma herança que se contrai, ou que se recebe, em face à morte de alguém. Nesse texto, Freud pontua que, às vezes, o sujeito não consegue fazer o luto e fica condenado a um suplício de ter de cotidianamente lustrar seu objeto ou tentar carregá-lo em seu coração.

Então, muitas vezes, a herança pode se tornar “herança melancólica”, uma vez que aquele que recebeu a herança vai, como se diz na língua, “fazer por merecer”. A pessoa vai ser condenada e se condenar a repetir um destino, uma sentença que inconscientemente imagina que seja uma resposta à expectativa do Outro. Ledo engano, pois nunca é possível calcular o que o outro quer. Quanto sofrimento! 

Acreditar-se capaz de ocupar um lugar deixado vazio é acreditar na vã esperança de que há relação sexual, é crer numa completude referida a um imaginário enganador, é acreditar que existe um lugar que deve ser ocupado, posto que um dia existiu. Honrar a morte de alguém é diferente de se fazer refém de um desejo corporificado em uma pessoa. 

Neste momento, em que tantos de nós precisamos lidar com o luto, saibamos honrar nossas heranças, assumindo o lugar vazio daqueles que perdemos. Não há vergonha em chorar a perda de quem se ama, em sentir a dor de um incompleto que não se deve fechar.

Mitema

– E assim nasce o mito:
o mito dos treze
o mito dos sete
o mito dos nove
noves fora, zero.

– E assim nasce o mito:
Com ele, a expiação/purgação,
culpa/reparação.

– É preciso expiar,
É preciso reviver,
É preciso pagar.

– Os anos passam…
Os dias correm…

– Vem Electra,
que veio por Clitemnestra,
e esta só pôde vir por Agamenão e ela.

– Vem Orestes, que se junta a Electra,
que vingam na mãe,
o ódio do pai.

– Está formado o triângulo:
Edipiano/Orestiano/Matrícídio.
Triângulo suicídio.

– Como estes existem tantos!
Tanto quanto forem os mitos,
emoções
parricídio/paixões.

– Nasce a tragédia
por causa triângulo,
outra ponta do triângulo,
“Então é retângulo”! dirão vocês!

É o retângulo grego:
Morte/vingança/culpa/reparação!

– Com isso a roda vai…
vai passando,
vai levando,
vai trazendo,
analisando!
– Vem Narciso, vem Electra,
que traz Teseu,
que puxa Édipo.

Está pronta a equação:
a figura está formada:
são quatro lados
são quatro ângulos
só falta a solução!

– Solução purgação
solução mágico-trágica
solução superstição!

– Quantos mitos há por aí?
espantalho na horta,
espelho quebrado,
sapato virado,
figa na porta,
cuidado: é mau olhado!

– A tentativa,
ainda que furtiva,
pode ser vã…

– Não contém solução…
nem superstição…
mas está no divã!
Noves fora, menos um.


Só tive tempo pra escrever isto!

O tempo para no Vale dos Templos, na Itália.

Hoje em dia, as coisas não duram, elas escapam. Têm a sua durée muito menor. Tudo “cai de moda”, fica ultrapassado em dias, horas, minutos. Basta olhar, por exemplo, o Facebook: em segundos, algo já ficou ultrapassado. Com as invenções acontece o mesmo: quanto mais se inventa, mais é necessário inventar para que aquela invenção agora dita passada seja imediatamente substituída por outra, novinha em folha, pronta pra durar, ce que durent les roses: une saison, apenas uma estação, ou melhor, antes da estação terminar, porque ela deve ser ultrapassada, vencida pelo tempo implacável que corre mais que o do relógio; que não é o lógico, mas é o tempo do que se antecipa ao próprio tempo, o que vem antes dele pra mostrar que ele já foi ultrapassado…

O tempo ficou menor, o trabalho mais rápido. O tempo do relógio agora corre atrás dos sujeitos, assombrando-os com uma pressa que também não pode esperar, porque não tem tempo. Mas, não há tempo para quê? Ninguém sabe. Não dá tempo para perguntar, nem para saber, porque aqueles que poderiam responder também não têm tempo para falar… O tempo ficou menor, muito menor: encurtou as novidades, as surpresas, até mesmos os sustos estão ficando mais breves! 

Não há tempo para a saúde ou para se cuidar dela. O médico, por sua vez, também tem pouco tempo para escutar o sofrimento do paciente! Há inúmeros antibióticos que, se por um lado, encurtam o sofrimento humano, por outro, deixam os vírus e bactérias mais resistentes. Ops! Não se tem tempo para pensar, pesquisar, porque se tem de inventar algo mais potente ainda do que o mais potente que já era!

Quando era criança, era comum ouvir um trava-línguas que dizia mais ou menos assim: o doce perguntou pro doce qual era o doce mais doce que o doce; o doce respondeu pro doce que o doce mais doce que o doce é o doce de batata doce! Bom, mas pelo menos, na brincadeira de criança, paramos em um doce: o de batata doce! Mas hoje não se cessa, porque não se tem tempo para parar! 

É certo que a tecnologia contribui para essa aceleração do tempo: a cada momento alguém inventa algo para ajudar aqueles que não têm tempo terem mais tempo! E assim o tempo vai correndo, cada vez mais rápido ou cada vez atordoando mais os sujeitos que não conseguem alcançá-lo. 

A corrida do tempo é inversamente proporcional à angústia dos sujeitos por verem o tempo passar e dizerem, de forma profundamente infeliz, que não puderam fazer melhor, porque não tiveram tempo! Esquecem-se de que escolher uma opção não exige tempo algum. Tristes tempos, na medida em que o sujeito não se dá conta de que quanto mais corre, porque não tem tempo pra perder, mais perde, porque perdeu tempo com o tempo, achando que não o teria… E, assim, sucumbe ao próprio tempo, pois se deixou devorar por ele. Pergunto: terá sido por falta de tempo?

O estilo do ensinar: as aulas de Luiz Alfredo Garcia-Roza

Bustos de filósofos da Grécia antiga, os mesmos sobre quem Luiz Alfredo Garcia-Roza ensinava em suas aulas.

Esse é o segundo texto da série em homenagem a Luiz Alfredo Garcia-Roza. Confira aqui o primeiro texto.

Inicialmente, as aulas com o professor Luiz Alfredo eram silenciosas. Os 30 adolescentes a quem ele falava da tal filosofia, no início dos anos 1970, começaram o ano letivo esperando passivamente pelo “maná” do céu. Durante aqueles anos, em que tudo deveria ser recebido e deglutido obedientemente, seguiam o modus operandi vivendi no Rio de Janeiro. 

O professor tentou inverter o dogma: convidou os alunos a exercitarem a “pensabilidade”, ou seja, refletirem, questionarem e ousarem a fazer perguntas. Ao trabalhar na direção de um ensino, dava as condições de “pensabilidade” para que cada um, com seu estilo, escapasse da circularidade da repetição do mesmo.

Luiz Alfredo sempre lutou contra o que chamava de “sapiência bovina”, ou seja, o ato de balançar a cabeça afirmativamente em qualquer ocasião, sem refletir a respeito. Ao longo de suas aulas, sua ética ia na contramão da repetição irrefletida e buscava muitos meios para que tivéssemos a coragem de pensar. 

Quando chegou a primeira prova, entretanto, ainda pensávamos que viria uma avaliação como todas as outras, compostas de muitas perguntas. Na época, usávamos o famoso papel almaço; folha de papel pautado, que deveríamos dobrar na margem esquerda, e caso precisássemos escrever mais ou não coubesse tudo no papel, teríamos de pedir outra para o professor. Para surpresa geral, ela continha apenas uma questão. 

─ “Oba! Vou terminar rapidinho e ainda vai dar para jogar frescoball na praia!”. Só que a excitação inicial acabou rapidinho. O professor não pediu que repetíssemos o pensamento isolado de cada filósofo, mas que soubéssemos colocá-los para conversar, articulando-os. Foram duas horas nas quais nos entreolhávamos, com um misto de desespero e impotência. Provavelmente, muitos saberiam escrever a respeito da biografia de Sócrates e Platão, citar trechos de cada um, elencar o que era o “ser” para os filósofos etc., tal qual a matéria dada. No entanto, como responder ao que foi pedido: comparar Platão e Sócrates tendo como base a discussão a respeito do “ser”? 

As notas baixas evidenciaram que, até então, só sabíamos estudar de uma forma: decorar conteúdos isolados, sem fazer a articulação necessária. Para tanto, o professor teve de lutar contra um pragmatismo dos alunos. O que fazer com a filosofia, para além das aulas? Para que serviria estudar Platão e Sócrates naqueles anos? Por exemplo, quando nos falou dos empiristas, era importante saber sua opinião: quem era mais especial? Hume? Berkeley? De quem ele gostava mais? Luiz Alfredo, tal qual um analista, nunca deu a resposta. Fazia com que cada aluno, com muita coragem e baseado na teoria, construísse a sua resposta, ainda que formada por certezas provisórias. 

 A Luiz Alfredo Garcia-Roza, meus sinceros e carinhosos agradecimentos.