O terno do desejo

Homenagem a Luiz Alfredo Garcia-Roza

Morreu Luiz Alfredo, acabei de falar com sua esposa Lívia. Como, para alguém que teve uma perda maior do que a minha, explicar da minha saudade que não vai passar?  

O que nos resta fazer com a saudade é lembrar, já que não podemos fazer diferente.  É engraçado que, na hora da lembrança, o tempo se torna curto, tão curto que, podemos nos lembrar com exatidão do que queremos agarrar. 

Fim dos anos 1960, talvez 1970, Rio de Janeiro, colégio Andrews, na praia de Botafogo. Colégio referência em estudos. No “curso clássico”, as aulas começavam pontualmente às 7:30 e iam até às 12:30, com uma grade de estudos bem puxada. 

Numa manhã, apareceu um rapaz alto, magro e de terno. Tinha a pele bem branca e profundos olhos verdes. Estávamos sentados esperando o professor. Olhou para todos nós e disse: meu nome é Luiz Alfredo Garcia-Roza. Ótimo, mas onde estava o professor?

Aí, ele escreveu no quadro, logo após o nome: professor de filosofia! 

Enquanto falava, o jovem professor caminhava calmamente sobre o tablado. Agia com tanta tranquilidade, que parecia já ter transmitido aquelas informações milhares de vezes. Enquanto falava, suas mãos gesticulavam no ar, procurando a melhor forma de nos explicar do que se tratava a filosofia. As palavras saíam calmas, seguras, em um tom muito sério, respeitoso, porém muito compenetrado. 

Nesta época o professor fumava. Ele acendia o cigarro e, em cada tragada, parecia que as palavras voavam. Os conceitos da filosofia saiam como se fossem fumaça, voando, voando. 

Nós ali sentados, queimados de praia, com dezessete, dezoito anos, muitas ideias na cabeça. Para nós, tudo era novidade: Platão, Sócrates, mas, acima de tudo, um professor bonitão de terno que mantinha a sala ávida e respeitosamente silenciosa. 

 (Rio de Janeiro, 16 de setembro de 1936 — Rio de Janeiro, 16 de abril de 2020)

Quarentena: Dicas para uma faxina na alma

Baralho de cartas

E agora? Confinados, o que fazer com tanto tempo ocioso nesta quarentena? Nos sites destinados a nos dar dicas, se fala muito em faxina e organização de casa. 

Pode até ser uma boa ideia, sair pelos cômodos como quem estivesse visitando um museu: vire agora para lá, a direita você vai ver, em seu armário da cozinha, a seção de antiguidades: uma quantidade absurda de Tupperwares que você esqueceu de devolver e agora está com vergonha, outros sem tampa, alguns furados… 

Vai encontrar, também, as homenagens aos deuses da agricultura, um arroz negro, que você adora, com o prazo de validade vencido, escondido atrás do saco de açúcar, que, aliás, vale até abril; será que o Corona já vai ter acabado? ‘Nossa este, ainda vale até dezembro, e vc havia esquecido, lá no cantinho do armário, quase escondido sob o saco de açúcar… 

Não vai dar nem uma hora de arrumação e você só vai estar pensando no que venceu, perdeu o prazo. Houve até que contasse que, após arrumar todo o closet e ir dormir, de repente acordou com um grito. Era sua blusinha que tropeçou e caiu de moda! 

Pensar que, ao olhar nossas coisas, nos deparamos com os sacrifícios que nós fizemos para ter o que, na hora da faxina, olhamos meio desolados. As prestações para o conjunto de panelas não aderentes; aquela saia justa que ressaltaria os esforços na academia e mataria de inveja as amigas e, agora, parece só cafona. Às vezes, ao invés de dar prazer, o excesso dá angústia.

Neste ponto da quarentena, o da angústia, ganhamos uma nova bússola. Que objetos já não fazem mais sentido algum, gerando angústia? A que eventos ou pessoas estão associados? O que mais pode ser jogado fora junto com o potinho velho? Desbastar o peso do presente perpétuo vai tornar você mais leve, mais suave. Não se trata de desprender-se simplesmente porque as prateleiras estão cheias, mas porque angustiar-se sempre é um convite para transformações.

Sustentar as perguntas e as respostas, que é o outro nome de se fazer amigo da angústia, dá trabalho, é para poucos. Arrumar o armário da alma é para aqueles que tem coragem.

Quarentena: dicas para uma faxina na alma

Quem é você em tempos de Covid-19?

Quatro perfis de manqeuim no corna vírus

Como estamos recebendo as notícias acerca do corona vírus? Existem 4 tipos de pessoas nessa crise. Confira: 

1) Comecemos com o time Avestruzes. São aqueles que não percebem o que está acontecendo. Negam a pandemia, minimizando o perigo do corona. Negam o problema e todas as recomendações do ministério da saúde. Acreditam que não vai acontecer nada com eles, pois são invulneráveis.Toda precaução lhes parece exagerada. Ou, então, o desconhecimento faz com que “receitas” milagrosas surjam. Há sempre alguém que conhece um chá, que é um santo remédio, outro que recomenda um medicamento que comprou na farmácia e que o ajudou muito. Assim, cada qual à sua maneira vai tentando equilibrar os “pratinhos no ar”;

2) Demos sequência comos Pragmáticos de Plantão. Pais e mães que até então trabalhavam nas horas em que seus filhos estavam nas creches ou colégios repensam como deixá-los em casa enquanto a pandemia não para. Deixá-los com os avós não pode ser uma alternativa, afinal, é momento de proteger os mais vulneráveis. Quem ganha menos sai do trabalho? Tira licença? Pais e mães organizam-se numa tentativa de estabelecer novos horários caso estejam fazendo home-office; o dia passa a ser milimetricamente tabelado e, de noite, está todo mundo infeliz, mas com a sensação de dever cumprido. Por outro lado, há quem esteja vendo a situação de outra maneira. Uma criança, em sessão, contou que estava feliz por ficar mais tempo com o pai em casa, porque ele a tinha colocado para dormir contando uma história. A alegria vinha também do fato da mãe tê-la ajudado com uma tarefa antiga do colégio; 

3) Prossigamos com o time Amigos do superego. População em pânico, alarmistas de fake News de plantão, prontos a criar mais notícias que causem um alarme maior. Não há ocasião mais proveitosa para o sujeito culpado, o hipocondríaco ou para aqueles que apreciam uma boa intriga histérica! Os canais de televisão disputam o espaço de informações para os telespectadores; as farmácias avisam que os estoques de máscaras acabaram e o álcool gel sumiu das prateleiras! Mal conseguem agir de tanta ansiedade e medo dos “finais dos tempos” causado pelo corona. Há, ainda, a angústia de ficar em casa, isolado, sem saber como lidar com a situação;

4) Terminemos com o time dos Sujeitos responsáveis na sociedade. É o time daqueles que, frente a essa pandemia, estão tentando encontrar modos de transitar, assumindo um “risco calculado”, um cálculo necessário de suas ações para que a sua saúde, e a da população, sejam levadas em conta. Eles colocam o “jeitinho brasileiro” a serviço da invenção de formas criativas de lidar com a situação. Por exemplo, estão trabalhando de modos que nunca fizeram antes, cozinhando com e para a família ao invés de ir para restaurantes, investindo em novas leituras. 

É hora de saber que o melhor companheiro nesta hora que nos coloca à prova vai ser nossa capacidade de criar novos modelos de laço social, capazes de ultrapassar o isolamento, mesmo quando o corpo físico não pode estar tão presente. 

Pinterest: Quem é você na crise do Corona Vírus?

A sociedade secreta de Freud, o Senhor dos anéis

Você sabia que Freud tinha uma sociedade secreta? Em 30 de novembro de 2018, proferimos a conferência “Os laços da Psicanálise: a revelação do estranho íntimo”, por ocasião da IV Conversação da Liga de Psicanálise Lacaniana de Maceió. Vejam como Freud se transformou no “Senhor dos anéis”. 

A “Sociedade dos anéis” foi criada pelo escritor britânico Tolkien. “O senhor dos anéis”, obra escrita entre 1937 e 1949, mais tarde foi adaptada para o cinema. Nos três volumes, o “Anel” é o elemento central da saga. Quem o carrega é Frodo Bolseiro que herdou o anel de seu tio Bilbo. Esse anel tem uma longa história: foi roubado de uma criatura chamada Gollum e por longos anos foi guardado por Bilbo.

O Mago Gandalf, um velho amigo de Bilbo, percebe o poder do anel. Descobre que a peça foi forjada por Sauron, o Senhor do Escuro, e que fora perdida numa batalha muito tempo antes. Se recuperado, o Anel permitiria a Sauron o domínio definitivo sobre toda a Terra-média.

O anel tinha vontade própria e sempre buscava voltar ao seu dono. O poder quase absoluto do anel corrompia o carácter e deformava a personalidade daquele que se atrevia a colocá-lo, ainda que movido por boas intenções. Assim, aquele que quisesse derrotar Sauron utilizando o anel acabaria se tornando-se o próximo Senhor do Escuro.

Dada a impossibilidade de utilizar o anel como arma de guerra, é imposta a tarefa de levá-lo até a Montanha da Perdição, um vulcão localizado no centro de Mordor, a Terra Negra do Inimigo, onde o anel fora forjado e também o único lugar onde poderia ser destruído.

Para essa missão foi formada a Sociedade do Anel, composta por nove companheiros: quatro hobbits (criaturas criadas por Tolkien – Frodo, Sam, Merry e Pippin), dois humanos (Aragorn e Boromir), um elfo (Legolas), um anão (Gimli) e um mago (Gandalf). Frodo seria o “Portador do Anel”, aquele que deveria lançá-lo nos fogos de Orodruin. 

Se a Sociedade do anel tinha a missão de garantir a continuidade da existência da terra Média, evitando que ela caísse nas mãos do “Senhor do Escuro”, Freud criou uma sociedade com o objetivo de dar continuidade à psicanálise e de preservá-la.

Em 1912, Carl Gustav Jung, o discípulo mais próximo de Sigmund Freud, rompeu com as ideias do mestre, abalando muito Freud, que via em Jung seu sucessor e defensor da psicanálise. Preocupado com novas rupturas e buscando manter o seu legado, o pai da psicanálise, ajudado por Ernest Jones, criou o que, anos mais tarde, ficou conhecido como o Comitê Secreto, formado por membros que fizeram um laço de fidelidade e de comprometimento com o vienense. A respeito do Comitê Secreto que estavam criando, Freud chegou a dizer para Jones: “A existência e ação deste Comitê deve permanecer secreto.”

Assim nasceu o que podemos chamar de “Sociedade psicanalítica dos anéis” cujo “senhor dos anéis” era Sigmund Freud. O que era essa sociedade? Psicanalistas escolhidos a dedo com os quais Freud fez um laço singular. Eram pessoas com quem podia contar para assegurar a continuidade de seu pensamento. Esse grupo não deveria ter existência oficial, mas “trabalhar nas sombras”, tendo como missão a manutenção e proteção das teorias de Freud. 

Cada um dos cinco membros fundadores desta sociedade recebeu um anel, símbolo do amor de transferência com Freud. Durante os anos que se seguiram, o célebre psicanalista distribuiu 20 anéis deste tipo, para colegas e para pacientes com os quais fez laço.

“As pedras destes anéis provinham da vasta coleção de antiguidades de Freud, e a inscrição sobre cada anel, correspondia a um tema mitológico ligado a um dos elementos de seus ensinamentos psicanalíticos e também à relação com aquele que recebeu o anel” – escreve Morag Wilhelm, curadora, no museu de Jerusalém, da exposição “Freud, o senhor dos anéis”, assim batizada em referência à obra de Tolkien. 

A exposição foi organizada quando Morag se viu frente a um anel em ouro colocado numa pequena caixa com um cartão escrito com os seguintes nomes: “Freud Niké” – que vem a ser o nome da deusa grega da Vitória. Esse anel foi dado por Freud para uma das suas alunas, Eva Rosenfeld, que mais tarde o doou para o museu. Foi assim que o mundo passou a conhecer a história dos anéis. 

O museu de Jerusalém conseguiu reunir e expor cinco desses anéis, inclusive o anel pessoal que Freud usava, o qual era ornado de cornalina, com uma figura de Júpiter. Cada anel era único, talhado com uma pedra da coleção particular de Freud. É importante destacar que o psicanalista era um colecionador importantíssimo de arte egípcia. Ele tinha uma coleção rara de cerca de 3000 pedras ornadas com figuras mitológicas e egípcias. 

Freud escolhia pessoalmente uma pedra dessa coleção para fazer o anel. Essa escolha não era aleatória. Mas, baseada no traço que, para Freud, mais se destacava daquele que seria presenteado. Dessa característica podemos tirar uma lição a respeito do laço estabelecido entre analista e analisando ou entre as pessoas dentro de uma instituição de transmissão da Psicanálise: ele é singular. 

O anel simboliza algo. Ele é um sinal visível de um compromisso. Era o anel que simbolizava o amor daquele grupo a Freud e a todo trabalho incansável e comprometido que o psicanalista vinha desenvolvendo. 

Lembremos que Freud era um jovem médico que muito estudou e, ao formar-se em medicina, decidiu ser neurologista. Mas vocês podem se perguntar como é que uma pessoa bem-sucedida na carreira larga tudo em busca de algo que, até então, não existia enquanto ciência. Ele poderia ter se acomodado na neurologia, mas, ao ouvir falar das descobertas de Charcot a respeito da hipnose, não pensou duas vezes. Atrasou o casamento com Marta, de quem era noivo, e foi para Paris estudar e trabalhar com o médico francês. 

Bem… os desdobramentos desse tempo de trabalho com Charcot nós já sabemos… A descoberta do inconsciente e as elaborações a respeito da sexualidade humana abalaram a Viena conservadora do Século XIX e chegaram até nós.

E hoje, como fazer para marcar o laço entre as pessoas em um grupo de psicanálise? Será que vamos precisar distribuir anéis para simbolizar o comprometimento das pessoas com a causa da Psicanálise? 

Seja no Rio de Janeiro, em São Paulo ou em Maceió, algo precisa tocar as pessoas, levando-as a permanecer enlaçadas com o discurso da Psicanálise. Lembremos que a aliança é um sinal visível de algo que está no coração. Ela é um símbolo de algo íntimo que nasceu do encontro entre duas pessoas.

Assim, pensamos que hoje não precisamos de um anel que indique o comprometimento com a psicanálise. No entanto, em cada grupo que tem como missão a transmissão da psicanálise, é preciso que o laço seja mostrado por meio do trabalho que cada um se sente convocado a fazer dentro do grupo. 

Em um grupo em que o laço opera, cada um pode encontrar seu lugar para “por algo de si” – constituindo seu estilo. Nesse tipo de relação, as diferenças são respeitadas, porque são elas que permitem que se produza algo de novo. 

Lembremos que, na Psicanálise, o sujeito vai sempre se definir pelas suas diferenças, pelo que lhe inquieta. A uniformidade do trabalho conduz a disputas imaginárias, a intrigas, a rupturas. A transferência de trabalho, no entanto, conduz à implicação de cada um com a causa psicanalítica. Ela gera em nós um compromisso com o legado de Freud e de Lacan. 

Se tomarmos como nossa a missão de continuidade e de atualização desse legado, podemos dizer que fazemos parte dessa sociedade do anel. Não temos um anel dado pelo próprio Freud, ou seja, um sinal visível desse compromisso, mas a transferência de trabalho é a força interna que nos liga, que gera em cada um de nós o desejo e a responsabilidade pela transmissão da Psicanálise.

Amor próprio: Da prisão que se coloca na cabeça

Vera veio por indicação de seu clínico geral. Aos 60 anos, o atormentava com excessiva frequência para saber se poderia ou não se submeter aos novos tratamentos estéticos disponíveis. Bonita e elegante, parecia, não obstante, estar muito desconfortável na própria pele. Não tinha amor próprio.

Confrontada com o que poderia ser um excesso de tratamentos estéticos, Vera radicalizou: “Doutora, eu adoraria poder mudar a genética!”. Genética? Sim, ela era a única na família que tinha cabelos crespos. Em sua interpretação, na outra encarnação ela tinha feito uma mancada muito grande para receber esse castigo. Repetia: “Eu não tenho um cabelo, tenho um carma”! 

As tentativas de alteração corporal tinham começado por influência de sua mãe. Quando criança, adorava brincar de pular amarelinha com as amigas da rua. A lembrança dessas brincadeiras, para ela, era triste. Disse o quanto se sentia diferente das demais crianças. Com um tom de pesar, contou que via os cabelos de todas as meninas voarem enquanto elas pulavam. Já os dela não se mexiam, pois, sua mãe, na tentativa de domar suas madeixas, lavava-as e depois prendia-as com rolinhos pela cabeça. 

Seus pais quiseram que estudasse em um colégio qualificado por ela como “exclusivo de princesas”. Na época, parecia que um pré-requisito para a entrada nessa escola era ter cabelo liso. Como Vera não tinha, sempre se sentia como o “patinho feio” da sala. Em passeios, inventava muitas desculpas para não cair na piscina: uma cólica, uma indisposição, falta de vontade etc. 

Na adolescência, as coisas pioraram. Ela achava que para ser respeitada no ambiente em que vivia, precisava alisar os cabelos. Passou a assumir o alisamento. Já tinha feito tanta coisa para alisar os cabelos que “pela lei da natureza deveria ser careca!” “Já tentei de tudo, doutora, todas as pastas de alisar, até ferro já passei”. 

Na hora de escolher o penteado para seu casamento, optou por um “preso”. A analista pontuou a narrativa: “Preso assim como você”. Ela tinha passado a vida aprisionada a um ideal de mulher, sem amor próprio. Vera tinha acreditado que havia nascido com defeito de fábrica: estava até aquele momento consertando o seu “corpo errado”. Ao buscar a psicanálise, Vera abre um caminho de escolhas a partir das quais poderá abrir mão do que o outro acha ou dita para ela e ir em busca daquilo que acredita e quer sustentar.

“Modo Assunção”: Com que máscara você vai no baile da vida?

Carnaval, época de grande festa nas ruas. A cada ano, máscaras de novos personagens enfeitam os foliões e trazem o inusitado nos salões e nos bloquinhos. Este ano, uma das novidades polêmicas é a criação do disfarce com o rosto do ator Fábio Assunção. Como ler o sucesso desse adereço com a psicanálise?

Existe uma dupla função no uso da máscara “Fábio Assunção”. Primeiramente, tem a ver com a função primária de toda e qualquer máscara: proporcionar o anonimato, escondendo o sujeito no grupo. Ao usar a máscara, o sujeito tem a ilusão de proteção. Apaga-se no meio da multidão, de forma a não se comprometer, passando despercebido no bloco da vida. Vale lembrar da letra do clássico Noite Dos Mascarados, de Chico Buarque (1966), em que a decisão de se deixar levar está descrita: “Deixa o dia raiar/ que hoje eu sou/Da maneira que você me quer./O que você pedir eu lhe dou,/Seja você quem for,/Seja o que Deus quiser!”. Ao se mascarar, o sujeito dissolve-se no grupo e torce, desesperado, para não ser reconhecido em sua subjetividade. Paga o anonimato com seu corpo, tentando se convencer de que não viveu a história da própria vida.

A segunda função da máscara é nomear o gozo, circunscrevendo-o de algum modo, em algum grupo ou lugar. Por exemplo, a pessoa que usa a máscara com o rosto do ator “Fábio Assunção” já explicita o gozo de “viver a vida adoidado”, sem limites. Isso porque a máscara é um caso particular de disfarce cuja função pode ser a de dizer o que se quer esconder. Aliás, na língua, fala-se frequentemente que “para bom entendedor, meia palavra basta”. Mostra-me tua máscara que te direi a camisa que vestes. Nesse sentido, colocar a máscara do Assunção pode ser lido como um modo de lidar com aquilo de que o sujeito não consegue se desvencilhar.

Assim, nomear a ação de beber e de curtir sem moderação como “Modo Assunção” já é um modo de moderar a curtição. Por um lado, relembra, tornando presente, a maneira como o ator lida, luta e sofre com a dependência química. Por outro, pela nomeação, dá uma borda ao gozo desenfreado e disforme.

É um primeiro passo para quem pretende lidar com o sofrimento psíquico. Um segundo, oferecido pela psicanálise, seria abrir mão das máscaras pré-fabricadas em favor da reinvenção de uma fantasia única, feita sob medida para o seu desejo singular. É o que de melhor podemos esperar para o ator cuja situação se tornou pública por conta dos gifs, memes e assemelhados com o mote “Ativar o modo Fábio Assunção”, bem como a todos cuja vida levou a aceitar esse convite.

Meta de ano Novo: Qual é o filme da sua vida?

Proponho pensar sua meta de ano novo como se você fosse personagem de um filme, o filme da sua vida. Comece essa reflexão com uma decisão: que tipo de personagem seremos: o protagonista ou um figurante?
Um figurante vai se colocar menos desafios, pois estará em segundo plano em relação à história do outro. Talvez chegará em 2020 menos cansado, mas pode perder o frescor do desejo, do tempo, dos sonhos. Toda aquela alegria da festa de um ano fresquinho chegando essa época pode virar engodo, frustação, repetição do mesmo. Quando a pessoa se der conta, o ano acaba e ela não faz nada de novo.
Já o protagonista tem o frescor do desejo guiando suas escolhas. Enfrenta com responsabilidade as situações inusitadas da vida. Cansa, se frustra e chora, mas, com sorte e esforço, alegra-se com suas escolhas e realizações. O protagonista é aquele que transcendeu o que Freud (1920) costumava referir como sendo a repetição “diabólica” do sintoma que atrai o ser humano para a repetição do mesmo. Ele abriu mão dos velhos mapas de navegações, deixou de dar tanto peso para a opinião alheia e passou a se orientar pelo seu desejo.
Uma análise ajuda as pessoas assumirem o protagonismo de suas vidas. Sem alterar o passado de ninguém, leva-o a traçar seu plano de voo para um ano realmente novo, diferente, corajoso, em que, a cada dia, o sujeito se faz responsável seu advir.
Leva, ainda, as pessoas a conseguirem se organizar com outros protagonistas em laços de parceria (de trabalho, de amizade, de romance) que sejam produtivos e amorosos. Afinal, ninguém está aqui para ser figurante na história de ninguém. Aproveito este texto para agradecer aos leitores pela companhia neste site e para desejar a todos um feliz ano novo!

TDAH: A quem falta atenção?

Véspera de feriado. Avião muito lotado. As aeromoças se desdobravam para dar atenção aos passageiros. As pessoas entravam, olhavam o número do assento no pequeno papel e iniciavam então a caminhada… 5B, 1D. Pais afobados cuidavam de sua prole. No meio dessa agitação, pai, mãe e um menino, aparentando cinco anos, começaram uma discussão. Primeiro, o menino não queria sentar. Depois, não queria colocar o cinto de segurança. Diria-se que estava hiperativo.

Após a decolagem, novo impasse. Gritando, o menino queria trocar de lugar com a mãe, sentando-se no meio do casal. Ela disse que estava lendo a revista do avião; não queria ser incomodada. O pai não respondia nada, com fone de ouvido e jogando no celular, parecia já ter levantado voo para outro mundo. Quando intimado pela esposa para que ficasse ao lado do filho, respondeu: “pra mim qualquer coisa vai, desde que não me interrompam…”! A mãe continuou a ler a revista, a criança, sem saber o que fazer, começou a abrir e fechar bruscamente a bandeja da poltrona. Irritado, o pai falou: “Para quieto!”.

A mãe, com ar de enfado, disse para o filho sentar-se onde quisesse. Escolheu o lado da mãe, mas ela continuou lendo a revista. O menino iniciou uma série de batuques na mesa de refeição da poltrona. Passou a subir e descer repetitivamente a persiana da janela. Prosseguiu fazendo uma narrativa imaginária da viagem, em que dava ordens para que o piloto do avião fizesse tal ou tal manobra, inclusive, referindo-se a comandos com a torre de controle. Mostrava bastante intimidade com o mundo dos aviões. Os pais lhe ignoravam. Quando ele chutou a poltrona do vizinho da frente e este reclamou, o pai perguntou para a mãe: “estou jogando dinheiro fora? Para que serve a Ritalina que nosso filho toma?”

Sem entrar aqui no mérito de que a criança do avião precisaria ou não de um medicamento, e avaliando o caso só a partir dessa única cena, é difícil sustentar estarmos frente exclusivamente a um caso de Transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), comumente tratado com Ritalina.

A psicanálise ensina-nos que muitas das dificuldades dos filhos são sintomas dos pais. Não se trata de culpabilizar os responsáveis, mas é preciso chamar a atenção para o desconforto que havia naquela família. No caso, o pai referiu-se ao gasto com o medicamento, esperando um retorno que, para ele, seria o comportamento robotizado do filho. O sintoma daquela família seria delegar à Dona Ritalina a responsabilidade pela educação e acolhida amorosa daquela criança?

Assim é o sintoma, expressão de um desconforto que não sabe dizer de si. Ele ocorre como um fora de tom quando não se sabe a hora de cantar, um incômodo, muitas vezes, silencioso. Talvez, então, a esses pais, faltasse atenção às próprias questões. Daí a necessidade de tanto ruído por parte de seu filho.

O difícil percurso do estudante na Universidade

Em 19 de novembro de 2018, a psicanalista Maria da Glória Vianna integrou a mesa “Saúde Mental no Ensino Superior” na II Semana de Arquitetura e Urbanismo no Instituto Federal de São Paulo. Compuseram a mesa também Fernanda Maurer Balthazar, Edmundo Fernandes Souza Filho e Allan Saffiotti. Segue a fala de Glória Vianna “O difícil percurso na Universidade”.

Esta fala, a partir do ponto de vista da psicanálise de orientação lacaniana, propôs, em primeiro lugar, discutir os impactos emocionais que a entrada na universidade pode acarretar na vida do estudante e sua saúde, se possível, mostrar que a melhor saída frente à angústia da escolha e a depressão é sustentar as opções – sejam lá quais forem – e se responsabilizar pelas consequências das próprias escolhas.

Isso implica, inclusive, a possibilidade de mudança de curso, reprovação deliberada em disciplinas e, porque não, um esforço ainda maior para bancar um percurso de excelência. Muitas opções são possíveis na vida. Na amizade, no amor, no grupo de trabalho, são necessárias escolhas mais ou menos compatíveis com o desejo de quem as faz. Podemos manter um namoro, casamento ou não; prosseguir em uma sociedade ou não; terminar uma graduação ou não. Em qualquer dessas escolhas haverá perda. Para fazer alguma coisa, estaremos deixando de fazer outra. Nunca conseguiremos ganhar tudo. Daí a necessidade de estar confortável com a opção que fez, mesmo que desagrade aos outros.

Sigmund Freud, conhecido como o pai da psicanálise, explicou que para todo ser humano existem coisas que são difíceis de serem elaboradas e viram conteúdos que ficam recalcados, escondidos no inconsciente. Utilizando o vocabulário da construção civil, poderíamos dizer que quem sofre de uma doença psíquica passou por um processo de fundação que não foi bem feito. É como se, durante o processo de construção de sua subjetividade, a massa de concreto não tivesse sido bem trabalhada, levando o concreto a “dar bolha”.

Esse concreto poroso pode ficar assim por anos na vida da pessoa, sobretudo quando as circunstâncias ou exigências da vida não o confrontaram com grandes adversidades ou conflitos. A pessoa parece confortável na própria pele, mas é uma aparência externa, de quem não olha mais de perto a qualidade estrutural da construção. Assim, um incidente que para outra pessoa pareceria pequeno, para essa pessoa poderá desencadear um quadro mais grave, como, por exemplo, forte angústia ou a famosa depressão.

Freud usou a palavra construção ao referir-se às construções que uma pessoa faz em análise. Ao longo do seu tratamento, o sujeito vai  alicerçando, colocando um pilar, uma viga de cada vez, separando quais seriam os materiais básicos; aqueles que quer usar e os que não… Se o trabalho analítica dá certo, justamente por ficar melhor alicerçada, a pessoa se torna mais tolerante às frustações, aos revezes e às surpresas da vida.

Enquanto isso não acontece, a fragilidade da construção psíquica nos dá sinais. Na psicanálise os chamamos de sintomas. Os sintomas são como o mofo que aparece em uma parede. A presença do mofo indica que algo não está bem. No entanto, ficar olhando para o mofo sem atuar sobre ele não resolve problema algum. Para resolvê-lo é preciso um trabalho muito maior de abertura da parede para que se saiba onde está o vazamento.

Por isso é sempre muito delicado apontar dedos para uma suposta causa da depressão. Podemos até encontrar fatores externos que são desencadeadores do sofrimento psíquico, mas um quadro depressivo não se instala sem que haja, por parte do sujeito, algum tipo de predisposição, por exemplo, alguma fundação em que o concreto ficou poroso. Lembro aqui o triste episódio das inúmeras trincas que ocasionaram o abandono do edifício, no Rio de Janeiro, em cuja construção foram encontradas conchas do mar no meio do concreto.

O que eu estou fazendo aqui? Valeu a pena tanto esforço? Venci depois de ter enfrentado quase 300 competidores. Por que não estou gostando tanto? É um processo saudável de avaliar e ressignificar suas escolhas. Em si, esse processo, cujo nome é angústia, não causa problema algum. A problemática se agrava quando a pessoa não consegue encontrar um rumo para sua angústia, fazendo dela a mola para a criatividade. Aí nasce a depressão.

Para Freud (1930), o sofrimento é condição existencial do sujeito, pois o acompanha desde seu nascimento perdurando por toda sua história, apresentando diferenças substanciais em cada fase do desenvolvimento. Uma pessoa saudável, portanto, é aquela que consegue tolerar a parcela de sofrimento necessária para ter prazer na vida. Para ter prazer em fazer manobras radicais no skate, por exemplo, o jovem tem que suportar o sofrimento do iniciante que, cai, tem dores musculares, escuta zombaria dos colegas etc.

O problema é que, quando a estrutura é mais frágil, a pessoa tende a se pautar pelo princípio do prazer, ou seja, ela se afasta de tudo que causa esse “bom sofrimento”. Então, ao invés de treinar skate, ela torce contra. Vai até a pista e fica trolando e rogando praga contra quem teve coragem de fazer o que ela não consegue.

Uma pesquisa realizada, em 2016, na Universidade de Indiana, apontou que o curso de arquitetura é o que mais demanda tempo de estudo: 2,5 horas por semana a mais do que qualquer outro curso. Outra matéria, agora em solo brasileiro, perguntou o porquê de a universidade “estar deixando os estudantes doentes”. Dentre os motivos elencados pelas pesquisas, destacam-se a falta de estrutura dos cursos, a pressão dos professores etc. Seriam essas pesquisas uma verdade absoluta? O que ganhamos ao acreditar nelas?

A psicanálise não trabalha com raciocínio causalista. O que é verdade para uma pessoa agora, não é para seu vizinho. Então, se alguém fica muito estressado em um emprego que exige muito horário, prazos e concentração, outro pode ter uma crise de angústia com a proximidade das férias. E agora, o que vou fazer com todo esse tempo livre, ele pensa. Estava tudo tão arrumadinho….

Resta saber por que tantos acreditam tão fácil no raciocínio causalista. Para a psicanálise, quando a gente toma como verdade um significante qualquer, por exemplo, “a Universidade é a causa de uma doença mental”, paradoxalmente você se tranquiliza. Não precisa mais pensar porque está se sentindo tão insatisfeito. Continuará deprimido, mas, pelo menos, ficará menos angustiado, iludido que entendeu qual é a causa. O problema é que a pessoa paga caro por isso. Paga com seu corpo. O significante “estou deprimido por causa da Universidade” pode vir a parasitar a vida do estudante, como se fosse um chiclete difícil de ser desgrudado.

A psicanálise vai na contramão disso. Para nós, psicanalistas, nenhuma palavra sela um destino. Por exemplo, existe uma diferença entre alguém chamar você de irresponsável e você assinar embaixo ou não. São as escolhas e atitudes que a pessoa faz que mostrará se ela quis ocupar ou não esse lugar de responsável, irresponsável, criativo etc.

Após a saída do ensino médio, a felicidade e a euforia da entrada na universidade, no curso escolhido, são marcadas por um evento conhecido como “trote”. A cada ano, os “veteranos” se especializam mais nas formas de recebimento, de dar boas-vindas, muitas vezes de formas inusitadas, aos calouros. O trote marca um rito de passagem: de uma formação genérica e obrigatória, oferecida no nível médio para a formação universitária, específica, escolhida pela pessoa.

A solidão da sua escolha vai acompanhar o estudante o tempo todo. Está nos pequenos detalhes, como por exemplo: Quase nenhum professor faz chamada em voz alta; muitos nem sabem o nome dos alunos; as disciplinas podem não manter os mesmos colegas, não conseguindo manter uma constância nos grupos de trabalho; os temas para os trabalhos finais podem ser livres, jogando o aluno de novo na angústia da escolha.

Na universidade, o aluno é convocado a estudar sozinho, aprender a visitar a biblioteca, aprofundar-se nas leituras que tiver interesse e avaliar como importantes para sua carreira. O “estudar para a prova” lentamente perde consistência, até porque a avaliação passa a ser feita de diferentes formas, muitas vezes exigindo do aluno a criação de projetos, a discussão de textos teóricos.

Essas mudanças convocam a singularidade e, consequentemente, fazem com que as fundações para a construção as respeito das quais já falamos sejam exigidas ao máximo.

Caso a pessoa tenha entrado na Universidade de maneira não burocrática, logo vai perceber que esse ingresso custará a construção de uma outra relação com o saber, mais participativa e ativa. Na linguagem da psicanálise, podemos dizer que a entrada na Universidade exige uma entrada em outro tipo de laço social, uma estrutura de significação diferente, na qual o saber passa a ser o centro. Por natureza, essa transformação do laço será traumática.

O caráter de traumático desse laço relaciona-se com o fato de que, para produzir conhecimento de modo ativo, o sujeito precisa se expor, falhar, ser criticado e, consequentemente, sempre se frustrar nas suas expectativas de reconhecimento. Um aluno gasta horas para fazer um trabalho que, para ele ficou maravilhoso e, para o professor, ficou aquém. Vai demorar bastante tempo, inclusive, para o aluno entender porque estava aquém. Vai demorar mais tempo, ainda, para entender que para ele pode continuar estando muito bom, independente da avaliação do outro.

Por esse motivo, aqueles alunos cuja estruturação inicial já era mais frágil, ao serem confrontados com esse instante traumático, retrocederão para a margem desse enlaçamento. Diante de tantas mudanças e desafios, isolam-se. Oscilam entre irem à luta para buscar os seus objetivos e recuarem frente às “topadas” que dão no meio do percurso. É como se a pessoa fosse um apaixonado em dúvida entre duas sedutoras: a depressão e o esforço para sustentar suas escolhas.

Os impactos emocionais que a entrada na universidade acarreta são grandes, mas fazem parte do crescimento de um jovem que opta por uma carreira. É preciso que possam se defrontar com as inúmeras e variadas insatisfações que vão aparecer. É preciso, ainda, que tenham que enfrentar perguntas tais como “será que é isso mesmo que quero fazer?”; “se eu parar, será que meus pais vão ficar tristes?” “Antes, era tudo que queria, o que, agora, me faz pensar que não quero continuar?”.

Não existe o paraíso terrestre. Segundo Freud (1930), o ser humano está condenado à cultura, consequentemente deverá, todos os dias, equacionar as suas vontades e as exigências da sociedade. Essa conta nunca fecha muito bem. Se eu não faço meus trabalhos e vou para a praia, vou ter problemas financeiros. Se não vou para a praia e só trabalho, posso acabar com uma úlcera. Não existe impunidade. Logo, o segredo da vida é achar a economia que, para cada um de nós, nos deixa menos infelizes.

Nesses momentos, muitas vezes fraquejamos. Abrimos mão do que queremos em favor das supostas exigências da cultura. Para que isso não aconteça, é necessário um desejo persistente, decidido. A despeito de eu não conseguir nomear o meu conflito, eu encontrarei uma saída para ele, na medida em que puder insistir em uma via que se relacione com a marca da minha singularidade. Isso implica poder ser esquisito, bizarro ou sem noção aos olhos dos outros.

Para quem não gosta de estudar, a pessoa que passa doze horas estudando é muito bizarra. Para quem valoriza muito uma universidade federal, quem abandona o curso de arquitetura por ter detestado essa escolha é completamente sem noção. Mas ambos os caminhos são válidos caso forem a vacina contra a depressão. A pessoa precisa estar consciente que em ambos haverá perda.

A vida é aguentar e peitar a insatisfação. A psicanálise vai focalizar que é justamente a insatisfação que pode levar o homem à criação. Isso ocorre na medida em que nos tira da zona de conforto e nos leva a produzir, mudar, construir. Logo, as frustrações precisam ser encaradas com naturalidade. Não existe ninguém premiado pela vida. Só na fantasia da pessoa que a vida do outro é melhor que a dele. Ninguém diz: nossa, minha infância foi maravilhosa. E, se disser, é mentira. Quero defender uma subversão frente à acomodação, à resignação. Só explicar os sintomas não basta.

A psicanálise nos ajuda a nos assenhorar de nossa vida. Ela nos coloca uma pergunta incômoda, porém capital: Qual a sua parte no sofrimento de que se queixa? Para o estudante que está sofrendo, é fundamental que ele encontre um espaço de interlocução onde possa falar na tentativa de construir uma resposta para essa pergunta.

Se ele não conversar com ninguém, sua queixa se torna repetitiva e acarreta vários prejuízos em todos os setores de sua vida. O isolamento tende a se agravar e os sintomas físicos só pioram. Se a pessoa não se implica nas suas questões, vai entrar em um circuito de repetição infernal.

Vai de médico em médico. De gastrite em gastrite. Só que, a “gastrite” quer dizer “acho que eu não gostei desse curso e não tenho coragem de pensar a respeito desse assunto”. Não vale a pena ficar amarelando no sofrimento, sozinho. Por um lado, a pessoa tem que buscar ajuda, por outro, a instituição precisa encontrar mecanismos para escutar esse sujeito que sofre.

Nossa, que texto foi esse! A angústia de entender

Na sala de embarque, a psicanalista folheava os Escritos, de Jacques Lacan. Uma moça olhava o livro fixamente. Estaria intrigada pela quantidade de papeizinhos coloridos nele colados? Apresentou-se. Chamava-se Rose e era estudante do terceiro ano de psicologia. Seu interesse pela psicanálise aumentava a cada aula da disciplina, mas a angústia cada vez mais tomava conta de si.

Naquela semana tinha levado um susto: o texto “Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano”, publicado justamente nos Escritos. Ela até entendia o significado das palavras; no entanto, não conseguia entender o que significava o conjunto do texto. Comentou: “Nossa, que texto foi esse!”.

Seu comentário fazia alusão a um funk carioca. Com isso, apontava a dimensão da tríade inibição, sintoma e angústia que a leitura do texto lacaniano pode gerar. A angústia aparece porque diante de certos textos o leitor se defronta com um não saber que, por sua vez, é intrínseco de sua constituição como sujeito. Deparando-se com ela, o leitor tem toda a liberdade de fechar o livro ou enfrentar a angústia utilizando-a como combustível para sua curiosidade.

Entretanto, se fazer amigo desse “não sei, não estou entendendo, mas vou persistir” é condição necessária para aqueles que desejam estudar psicanálise. É preciso disposição para “abrir o texto”, indo às fontes dos autores que ele cita, retomando os conceitos mobilizados no texto e, acima de tudo, prosseguir na análise pessoal, para ter maior intimidade com aquilo que não se pode saber.

É preciso que o leitor se proponha a decifrar o enigma do texto, contrapondo sua leitura a uma teoria subjacente, que o remete a um não sei isso. Cada texto é singular e surpreendente, assim como o é cada sessão de análise. O analista lacaniano usa as palavras de cada dia para sair do lugar comum. O arranjo que faz delas toca o sujeito, buscando alterar a relação que ele até então tinha com as palavras.

Coragem, quebra narcísica e curiosidade são ingredientes fundamentais para se estudar psicanálise e para levar a cabo uma análise. Assim, ao brincar com a letra do funk, a carioca Rose talvez tenha acertado mais do que imaginava. Assim como na canção, uma coisa aparentemente inesperada (o tiro, o texto difícil, aquilo que não se entende) é, na verdade, um arraso, mote para a diversão e alegria de estar vivo.