Amor próprio: Da prisão que se coloca na cabeça

Vera veio por indicação de seu clínico geral. Aos 60 anos, o atormentava com excessiva frequência para saber se poderia ou não se submeter aos novos tratamentos estéticos disponíveis. Bonita e elegante, parecia, não obstante, estar muito desconfortável na própria pele. Não tinha amor próprio.

Confrontada com o que poderia ser um excesso de tratamentos estéticos, Vera radicalizou: “Doutora, eu adoraria poder mudar a genética!”. Genética? Sim, ela era a única na família que tinha cabelos crespos. Em sua interpretação, na outra encarnação ela tinha feito uma mancada muito grande para receber esse castigo. Repetia: “Eu não tenho um cabelo, tenho um carma”! 

As tentativas de alteração corporal tinham começado por influência de sua mãe. Quando criança, adorava brincar de pular amarelinha com as amigas da rua. A lembrança dessas brincadeiras, para ela, era triste. Disse o quanto se sentia diferente das demais crianças. Com um tom de pesar, contou que via os cabelos de todas as meninas voarem enquanto elas pulavam. Já os dela não se mexiam, pois, sua mãe, na tentativa de domar suas madeixas, lavava-as e depois prendia-as com rolinhos pela cabeça. 

Seus pais quiseram que estudasse em um colégio qualificado por ela como “exclusivo de princesas”. Na época, parecia que um pré-requisito para a entrada nessa escola era ter cabelo liso. Como Vera não tinha, sempre se sentia como o “patinho feio” da sala. Em passeios, inventava muitas desculpas para não cair na piscina: uma cólica, uma indisposição, falta de vontade etc. 

Na adolescência, as coisas pioraram. Ela achava que para ser respeitada no ambiente em que vivia, precisava alisar os cabelos. Passou a assumir o alisamento. Já tinha feito tanta coisa para alisar os cabelos que “pela lei da natureza deveria ser careca!” “Já tentei de tudo, doutora, todas as pastas de alisar, até ferro já passei”. 

Na hora de escolher o penteado para seu casamento, optou por um “preso”. A analista pontuou a narrativa: “Preso assim como você”. Ela tinha passado a vida aprisionada a um ideal de mulher, sem amor próprio. Vera tinha acreditado que havia nascido com defeito de fábrica: estava até aquele momento consertando o seu “corpo errado”. Ao buscar a psicanálise, Vera abre um caminho de escolhas a partir das quais poderá abrir mão do que o outro acha ou dita para ela e ir em busca daquilo que acredita e quer sustentar.

Sobre gloriavianna@terra.com.br

Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
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