A psicanálise e a dureza do real  

Gloria Vianna Psicanalise - A Psicanálise e a dureza do real

Acompanhar alguém em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de um hospital pode ser devastador. Em geral, só vão para as UTIs as pessoas com um quadro clínico que inspira cuidados especiais. Não há quartos. São “boxes” enfileirados, pequenas repartições onde os sujeitos lutam pela vida. A correria não pára: noite e dia os profissionais de saúde estão em constante vigia, entrando e saindo. Se pudéssemos olhar de cima, talvez imaginássemos uma colmeia onde as abelhas seguem firme em seu propósito, sabendo seu papel.

Para quem fica do lado de fora, em alguns hospitais há uma espécie de sala de espera, onde os familiares e amigos dos doentes aguardam. Enquanto se aguarda a chegada de um médico com alguma notícia, o choro costuma ser acolhido pelos demais. Afinal, “todos estão no mesmo barco”. O que mais se escuta é: “tudo vai dar certo”, “não precisa se preocupar”, “só manter o pensamento positivo…” Há, também, aqueles que recorrem a afirmações referentes aos desígnios de Deus, aos quais é preciso se submeter sem vacilar. “Deus sabe, está no controle, o enfermo já está curado”.

Infelizmente, ninguém acredita muito no que está dizendo. É uma linguagem fática, que pode se esfarelar a qualquer momento, dependendo da evolução do quadro de doença do familiar ali internado. De repente, a conversa gira em torno de algo muito brusco, inesperado, que chegou e tumultuou tudo, virou a vida de ponta cabeça! Trata-se de uma resposta provisória para aplacar a dureza da situação. Afinal, como lidar com a angústia da possibilidade, a qualquer momento, de receber a notícia da partida de um ser amado?

Não há fórmulas ou palavras mágicas. A Psicanálise não opera na via das promessas de um happy end.  Ela lê as durezas da vida como de fato são. O processo passa por acolher um sofrimento e legitimá-lo, mostrando para cada familiar que há algo de impossível no reverso dessas situações, posto que frente ao real, não há negociação ou previsibilidade. Resta o saber lidar com muito esforço, muita dor e muita análise.

Segundo turno

Na clínica psicanalítica, ocorre o mesmo que em uma democracia. Nela, se trabalha para que as pessoas deixem um mutismo alienante.

Domingo, 02 de outubro de 2022. Apesar da dificuldade de locomoção, muitos idosos estão na fila para votar, ansiosos e animados na aposta em se fazer a diferença para que regimes totalitários e silenciadores não se repitam. Talvez se sintam assim porque, como eu, por algum tempo não puderam exercer esse direito já que sofríamos uma política em que a diferença era banida, solene e violentamente. 

O voto é um privilégio desfrutado à custa de muita luta. Poder votar é agir na contramão do silêncio aparador das ideologias. A eleição é uma ocasião em que se celebra o direito de não ter sua voz condenada a um mutismo alienante. O dia da eleição é um momento em que as pessoas fazem uma aposta em que uma diferença possa advir. O preço pago pelo exercício de cada escolha é a possiblidade do sujeito buscar sua singularidade. O mesmo ocorre na clínica psicanalítica, na qual se trabalha para que as pessoas deixem um mutismo alienante.

 Marina, uma menina miúda de dez anos, tinha o corpo ligeiramente curvado e sorria de canto de boca. Nas palavras da mãe, Sonia, “não conseguia falar direito”. A mãe me procurou na esperança de que corrigisse a fala da filha. Já havia sido feita uma verdadeira peregrinação por consultórios de psicopedagogos, fonoaudiólogos, neurologistas, psiquiatras e psicólogos, mas nenhum diagnóstico ou comprometimento físico havia sido localizado. A família se envergonhava pela “língua presa” da criança e a escondia dos demais. Perguntei: Onde está presa a língua de Marina? A mãe me olhou espantada frente à pergunta, mas passou a dar detalhes. 

Marina tinha demorado bastante tempo para sair do “Tatibitabi” (a fala infantilizada que alguns pais e familiares encontram para se aproximar da fala de seus bebês). Depois de um tempo, a mãe passou a culpabilizar a filha por falar assim. Agia como uma espécie de professora de língua estrangeira, fazendo a menina repetir as palavras com as pronúncias corretas após dela. 

A primeira pergunta que fiz a Marina foi: “Onde você acha que sua língua prendeu?”. Marina não demonstrou nenhum problema “no freio” ou dificuldade de falar. Não gostava de ter que ficar repetindo as palavras que sua mãe mandava, sempre posicionando a língua entre os dentes.

Marina precisou descobrir que sua língua havia sido presa na mão de sua mãe. Precisou entender que sua palavra tinha peso e valor. Não seria esse o sentimento necessário aos cidadãos brasileiros no momento do voto? 

A.N.A. – Do sem nome ao nome próprio

Aos 37 anos, casada, Elizabeth Aparecida me procurou por “um tal de não sei o quê”. De estatura mediana e pele clara, tinha longos cabelos que desciam, escorridos, ao longo de seu corpo. Como tirar alguém de um sofrimento sem nome? Era preciso muita, muita paciência para acreditar que, um dia, Beth pudesse se apropriar de seu sofrimento, tornando-o seu.

Trabalhava na empresa de sua família, em uma função na qual se sentia subaproveitada. Não buscava outras opções, pois sua mãe a havia educado não para o sucesso, mas para que ela pudesse “ter o suficiente para pagar os seus alfinetes”. Lidava com o público, sempre de modo muito cortês: falava pausadamente, respondendo com educação o que lhe perguntavam. 

Nas sessões, também adotava um tom modulado, contido, polido. Dizia que, às vezes, lhe chamavam de Beth, outras de Cida. Quando lhe indaguei a respeito de sua preferência, respondeu que tanto fazia. Não sou eu mesma? 

Seu nome duplo não havia sido muito pensado. Quando o escrivão perguntou ao pai pelo nome da criança, irrefletidamente ele respondera os dois nomes. O escrivão havia feito uma pergunta de confirmação: — Elizabeth ou Aparecida? E o pai respondera: — Tanto faz, o senhor pode colocar um ou outro.

Elizabeth Aparecida parecia, nos termos freudianos, estar sendo vítima de uma compulsão à repetição. Traumatizada por esse relato de seu pai, vivia a vida de maneira a recriar este “tanto faz” por meio do qual dava ao outro o poder de decisão sobre sua vida. Inclusive, não entendia por que a psicanalista nunca lhe dizia o que fazer e se queixava do fato de que as sessões lhe eram penosas.

Uma ruptura quase se deu quando, após uma conversa com uma colega de academia de ginástica, Beth descobriu a existência da “Associação dos Neuróticos Anônimos”. Julgava que seria leve ir para um lugar onde ninguém saberia quem ela é. Uma pontuação foi decisiva: dizer que A.N.A poderia ser lido como uma sigla, mas, também, como um novo nome, desta vez, escolhido por Ana, née Elizabeth Aparecida, para além das heranças e maldições de seu pai.

No Seminário 20 de Jacques Lacan, o psicanalista usa a expressão “novo amor” para designar este momento no qual o sujeito altera radicalmente seus modos de relação com os demais, fundando uma vida diferenciada. Neste momento em que nos preparamos para receber 2022, os melhores votos de novo amor para todos nós!

Qual é o sabor que a análise pode acrescentar a uma vida? Você já pensou sobre isso?

Já imaginou fazer sua refeição em um deserto cercado de beduínos ou, quem sabe, até de camelos? Foi este cenário que um presente ofertado por uma pessoa versada em culinária acionou: um pequeno ramo das folhas do pé da combava (Kaffir lime). Sua folha é dupla, com uma forma que imita um oito deitado. A árvore frutífera é nativa do sudeste asiático; dá frutos de casca grossa e rugosa.

Essa oferenda me foi dada em uma conversa na qual quem me presenteou me contou que a cozinha oriental é tida por muitos como uma das mais perfumadas. Além do tempero requintado de suas iguarias, a preparação dos pratos envolve os comensais numa atmosfera mágica tipo as “Mil e uma noites”. A combava ajuda no clima: perfuma as iguarias e lhes dá um sabor único. 

A árvore da combava tem “mil e uma utilidades mágicas”. As suas folhas são utilizadas para tratar picadas de insetos e sua casca ralada é considerada um tempero muito especial, principalmente na culinária tailandesa, para perfumar frutos do mar. 

Esse feliz encontro fez-me pensar acerca do quanto de tempero uma análise pode acrescentar a uma vida. Na vida, há cheiros e sabores que não se explicam. Só são sentidos quando tocam quem está sensível. É pena, mas há quem consiga passar batido, por exemplo, ao sentir o cheiro de mato molhado depois de uma chuva de verão, ou, ainda, de pão saindo do forno ou de bolo fresquinho. 

Uma análise, então, pode tornar a vida de alguém mais saborosa e mais perfumada na medida em que é um convite para que um sujeito se toque com esses cheiros e perfumes que o cercam e sempre estiveram ao seu redor. Depois de uma análise, esses cheiros, temperos e sabores afetam o corpo, roçam a pele, marcam alegremente a vida e a história de uma pessoa. 

Uma análise visa, pela via do desejo, a temperar a vida de um sujeito, equilibrando, na medida do possível, seus sabores e dissabores.

O estilo do ensinar: as aulas de Luiz Alfredo Garcia-Roza

Bustos de filósofos da Grécia antiga, os mesmos sobre quem Luiz Alfredo Garcia-Roza ensinava em suas aulas.

Esse é o segundo texto da série em homenagem a Luiz Alfredo Garcia-Roza. Confira aqui o primeiro texto.

Inicialmente, as aulas com o professor Luiz Alfredo eram silenciosas. Os 30 adolescentes a quem ele falava da tal filosofia, no início dos anos 1970, começaram o ano letivo esperando passivamente pelo “maná” do céu. Durante aqueles anos, em que tudo deveria ser recebido e deglutido obedientemente, seguiam o modus operandi vivendi no Rio de Janeiro. 

O professor tentou inverter o dogma: convidou os alunos a exercitarem a “pensabilidade”, ou seja, refletirem, questionarem e ousarem a fazer perguntas. Ao trabalhar na direção de um ensino, dava as condições de “pensabilidade” para que cada um, com seu estilo, escapasse da circularidade da repetição do mesmo.

Luiz Alfredo sempre lutou contra o que chamava de “sapiência bovina”, ou seja, o ato de balançar a cabeça afirmativamente em qualquer ocasião, sem refletir a respeito. Ao longo de suas aulas, sua ética ia na contramão da repetição irrefletida e buscava muitos meios para que tivéssemos a coragem de pensar. 

Quando chegou a primeira prova, entretanto, ainda pensávamos que viria uma avaliação como todas as outras, compostas de muitas perguntas. Na época, usávamos o famoso papel almaço; folha de papel pautado, que deveríamos dobrar na margem esquerda, e caso precisássemos escrever mais ou não coubesse tudo no papel, teríamos de pedir outra para o professor. Para surpresa geral, ela continha apenas uma questão. 

─ “Oba! Vou terminar rapidinho e ainda vai dar para jogar frescoball na praia!”. Só que a excitação inicial acabou rapidinho. O professor não pediu que repetíssemos o pensamento isolado de cada filósofo, mas que soubéssemos colocá-los para conversar, articulando-os. Foram duas horas nas quais nos entreolhávamos, com um misto de desespero e impotência. Provavelmente, muitos saberiam escrever a respeito da biografia de Sócrates e Platão, citar trechos de cada um, elencar o que era o “ser” para os filósofos etc., tal qual a matéria dada. No entanto, como responder ao que foi pedido: comparar Platão e Sócrates tendo como base a discussão a respeito do “ser”? 

As notas baixas evidenciaram que, até então, só sabíamos estudar de uma forma: decorar conteúdos isolados, sem fazer a articulação necessária. Para tanto, o professor teve de lutar contra um pragmatismo dos alunos. O que fazer com a filosofia, para além das aulas? Para que serviria estudar Platão e Sócrates naqueles anos? Por exemplo, quando nos falou dos empiristas, era importante saber sua opinião: quem era mais especial? Hume? Berkeley? De quem ele gostava mais? Luiz Alfredo, tal qual um analista, nunca deu a resposta. Fazia com que cada aluno, com muita coragem e baseado na teoria, construísse a sua resposta, ainda que formada por certezas provisórias. 

 A Luiz Alfredo Garcia-Roza, meus sinceros e carinhosos agradecimentos.

Quarentena: Dicas para uma faxina na alma

Baralho de cartas

E agora? Confinados, o que fazer com tanto tempo ocioso nesta quarentena? Nos sites destinados a nos dar dicas, se fala muito em faxina e organização de casa. 

Pode até ser uma boa ideia, sair pelos cômodos como quem estivesse visitando um museu: vire agora para lá, a direita você vai ver, em seu armário da cozinha, a seção de antiguidades: uma quantidade absurda de Tupperwares que você esqueceu de devolver e agora está com vergonha, outros sem tampa, alguns furados… 

Vai encontrar, também, as homenagens aos deuses da agricultura, um arroz negro, que você adora, com o prazo de validade vencido, escondido atrás do saco de açúcar, que, aliás, vale até abril; será que o Corona já vai ter acabado? ‘Nossa este, ainda vale até dezembro, e vc havia esquecido, lá no cantinho do armário, quase escondido sob o saco de açúcar… 

Não vai dar nem uma hora de arrumação e você só vai estar pensando no que venceu, perdeu o prazo. Houve até que contasse que, após arrumar todo o closet e ir dormir, de repente acordou com um grito. Era sua blusinha que tropeçou e caiu de moda! 

Pensar que, ao olhar nossas coisas, nos deparamos com os sacrifícios que nós fizemos para ter o que, na hora da faxina, olhamos meio desolados. As prestações para o conjunto de panelas não aderentes; aquela saia justa que ressaltaria os esforços na academia e mataria de inveja as amigas e, agora, parece só cafona. Às vezes, ao invés de dar prazer, o excesso dá angústia.

Neste ponto da quarentena, o da angústia, ganhamos uma nova bússola. Que objetos já não fazem mais sentido algum, gerando angústia? A que eventos ou pessoas estão associados? O que mais pode ser jogado fora junto com o potinho velho? Desbastar o peso do presente perpétuo vai tornar você mais leve, mais suave. Não se trata de desprender-se simplesmente porque as prateleiras estão cheias, mas porque angustiar-se sempre é um convite para transformações.

Sustentar as perguntas e as respostas, que é o outro nome de se fazer amigo da angústia, dá trabalho, é para poucos. Arrumar o armário da alma é para aqueles que tem coragem.

Quarentena: dicas para uma faxina na alma

Quem é você em tempos de Covid-19?

Quatro perfis de manqeuim no corna vírus

Como estamos recebendo as notícias acerca do corona vírus? Existem 4 tipos de pessoas nessa crise. Confira: 

1) Comecemos com o time Avestruzes. São aqueles que não percebem o que está acontecendo. Negam a pandemia, minimizando o perigo do corona. Negam o problema e todas as recomendações do ministério da saúde. Acreditam que não vai acontecer nada com eles, pois são invulneráveis.Toda precaução lhes parece exagerada. Ou, então, o desconhecimento faz com que “receitas” milagrosas surjam. Há sempre alguém que conhece um chá, que é um santo remédio, outro que recomenda um medicamento que comprou na farmácia e que o ajudou muito. Assim, cada qual à sua maneira vai tentando equilibrar os “pratinhos no ar”;

2) Demos sequência comos Pragmáticos de Plantão. Pais e mães que até então trabalhavam nas horas em que seus filhos estavam nas creches ou colégios repensam como deixá-los em casa enquanto a pandemia não para. Deixá-los com os avós não pode ser uma alternativa, afinal, é momento de proteger os mais vulneráveis. Quem ganha menos sai do trabalho? Tira licença? Pais e mães organizam-se numa tentativa de estabelecer novos horários caso estejam fazendo home-office; o dia passa a ser milimetricamente tabelado e, de noite, está todo mundo infeliz, mas com a sensação de dever cumprido. Por outro lado, há quem esteja vendo a situação de outra maneira. Uma criança, em sessão, contou que estava feliz por ficar mais tempo com o pai em casa, porque ele a tinha colocado para dormir contando uma história. A alegria vinha também do fato da mãe tê-la ajudado com uma tarefa antiga do colégio; 

3) Prossigamos com o time Amigos do superego. População em pânico, alarmistas de fake News de plantão, prontos a criar mais notícias que causem um alarme maior. Não há ocasião mais proveitosa para o sujeito culpado, o hipocondríaco ou para aqueles que apreciam uma boa intriga histérica! Os canais de televisão disputam o espaço de informações para os telespectadores; as farmácias avisam que os estoques de máscaras acabaram e o álcool gel sumiu das prateleiras! Mal conseguem agir de tanta ansiedade e medo dos “finais dos tempos” causado pelo corona. Há, ainda, a angústia de ficar em casa, isolado, sem saber como lidar com a situação;

4) Terminemos com o time dos Sujeitos responsáveis na sociedade. É o time daqueles que, frente a essa pandemia, estão tentando encontrar modos de transitar, assumindo um “risco calculado”, um cálculo necessário de suas ações para que a sua saúde, e a da população, sejam levadas em conta. Eles colocam o “jeitinho brasileiro” a serviço da invenção de formas criativas de lidar com a situação. Por exemplo, estão trabalhando de modos que nunca fizeram antes, cozinhando com e para a família ao invés de ir para restaurantes, investindo em novas leituras. 

É hora de saber que o melhor companheiro nesta hora que nos coloca à prova vai ser nossa capacidade de criar novos modelos de laço social, capazes de ultrapassar o isolamento, mesmo quando o corpo físico não pode estar tão presente. 

Pinterest: Quem é você na crise do Corona Vírus?

Amor próprio: Da prisão que se coloca na cabeça

Vera veio por indicação de seu clínico geral. Aos 60 anos, o atormentava com excessiva frequência para saber se poderia ou não se submeter aos novos tratamentos estéticos disponíveis. Bonita e elegante, parecia, não obstante, estar muito desconfortável na própria pele. Não tinha amor próprio.

Confrontada com o que poderia ser um excesso de tratamentos estéticos, Vera radicalizou: “Doutora, eu adoraria poder mudar a genética!”. Genética? Sim, ela era a única na família que tinha cabelos crespos. Em sua interpretação, na outra encarnação ela tinha feito uma mancada muito grande para receber esse castigo. Repetia: “Eu não tenho um cabelo, tenho um carma”! 

As tentativas de alteração corporal tinham começado por influência de sua mãe. Quando criança, adorava brincar de pular amarelinha com as amigas da rua. A lembrança dessas brincadeiras, para ela, era triste. Disse o quanto se sentia diferente das demais crianças. Com um tom de pesar, contou que via os cabelos de todas as meninas voarem enquanto elas pulavam. Já os dela não se mexiam, pois, sua mãe, na tentativa de domar suas madeixas, lavava-as e depois prendia-as com rolinhos pela cabeça. 

Seus pais quiseram que estudasse em um colégio qualificado por ela como “exclusivo de princesas”. Na época, parecia que um pré-requisito para a entrada nessa escola era ter cabelo liso. Como Vera não tinha, sempre se sentia como o “patinho feio” da sala. Em passeios, inventava muitas desculpas para não cair na piscina: uma cólica, uma indisposição, falta de vontade etc. 

Na adolescência, as coisas pioraram. Ela achava que para ser respeitada no ambiente em que vivia, precisava alisar os cabelos. Passou a assumir o alisamento. Já tinha feito tanta coisa para alisar os cabelos que “pela lei da natureza deveria ser careca!” “Já tentei de tudo, doutora, todas as pastas de alisar, até ferro já passei”. 

Na hora de escolher o penteado para seu casamento, optou por um “preso”. A analista pontuou a narrativa: “Preso assim como você”. Ela tinha passado a vida aprisionada a um ideal de mulher, sem amor próprio. Vera tinha acreditado que havia nascido com defeito de fábrica: estava até aquele momento consertando o seu “corpo errado”. Ao buscar a psicanálise, Vera abre um caminho de escolhas a partir das quais poderá abrir mão do que o outro acha ou dita para ela e ir em busca daquilo que acredita e quer sustentar.

Nossa, que texto foi esse! A angústia de entender

Na sala de embarque, a psicanalista folheava os Escritos, de Jacques Lacan. Uma moça olhava o livro fixamente. Estaria intrigada pela quantidade de papeizinhos coloridos nele colados? Apresentou-se. Chamava-se Rose e era estudante do terceiro ano de psicologia. Seu interesse pela psicanálise aumentava a cada aula da disciplina, mas a angústia cada vez mais tomava conta de si.

Naquela semana tinha levado um susto: o texto “Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano”, publicado justamente nos Escritos. Ela até entendia o significado das palavras; no entanto, não conseguia entender o que significava o conjunto do texto. Comentou: “Nossa, que texto foi esse!”.

Seu comentário fazia alusão a um funk carioca. Com isso, apontava a dimensão da tríade inibição, sintoma e angústia que a leitura do texto lacaniano pode gerar. A angústia aparece porque diante de certos textos o leitor se defronta com um não saber que, por sua vez, é intrínseco de sua constituição como sujeito. Deparando-se com ela, o leitor tem toda a liberdade de fechar o livro ou enfrentar a angústia utilizando-a como combustível para sua curiosidade.

Entretanto, se fazer amigo desse “não sei, não estou entendendo, mas vou persistir” é condição necessária para aqueles que desejam estudar psicanálise. É preciso disposição para “abrir o texto”, indo às fontes dos autores que ele cita, retomando os conceitos mobilizados no texto e, acima de tudo, prosseguir na análise pessoal, para ter maior intimidade com aquilo que não se pode saber.

É preciso que o leitor se proponha a decifrar o enigma do texto, contrapondo sua leitura a uma teoria subjacente, que o remete a um não sei isso. Cada texto é singular e surpreendente, assim como o é cada sessão de análise. O analista lacaniano usa as palavras de cada dia para sair do lugar comum. O arranjo que faz delas toca o sujeito, buscando alterar a relação que ele até então tinha com as palavras.

Coragem, quebra narcísica e curiosidade são ingredientes fundamentais para se estudar psicanálise e para levar a cabo uma análise. Assim, ao brincar com a letra do funk, a carioca Rose talvez tenha acertado mais do que imaginava. Assim como na canção, uma coisa aparentemente inesperada (o tiro, o texto difícil, aquilo que não se entende) é, na verdade, um arraso, mote para a diversão e alegria de estar vivo.

O filho: Quero tudo mastigado!

Mãe e filho chegam ao consultório da analista. O menino, de três anos, tinha sido encaminhado por um fonoaudiólogo que, por sua vez, havia sido indicado por um pediatra. Fisiologicamente, o menino não tinha nenhum problema que o impedisse de mastigar, mas, desde sempre, ele havia se recusado a fazê-lo.

Até a época das sopinhas e papinhas, Juninho nunca tinha dado trabalho. Na hora da introdução dos alimentos sólidos, o pesadelo tinha começado: ele não mastigava nem chocolate.

Ela e o marido, Roberto, tinham cedido aos seus caprichos. Consequentemente, Isaura tinha se tornado uma especialista em “papinhas”. Todas as vezes que viajavam, por exemplo, era o mesmo calvário: eles levavam um arsenal de potinhos em bolsas térmicas.

Como o sintoma da criança responde ao que existe de sintomático na estrutura familiar, a analista pontuou que, para aquela família, havia algo que estava “difícil de engolir”. Isaura passou a falar de sua relação com o marido.

Antes do filho nascer, ela conseguia “dar conta de tudo”: de manter a casa impecável, de manter a excelente aparência e de colaborar profissionalmente no escritório de advocacia da família. No escritório, antes mesmo dele lhe pedir, entregava-lhe os processos com os pontos principais anotados. Era do tipo de pessoa que antecipava as necessidades do marido.

Havia se afastado dessas funções com a licença maternidade. A analista perguntou se Isaura sentia falta dessas atividades. Mais ou menos. Ela cansava. Descreveu: “− Doutora, eu lhe entregava o processo todo mastigadinho”.

Coincidência? Difícil. Ao que tudo indicava, ao não mastigar, Juninho tinha respondido à perda da posição de gozo de sua mãe: fornecer ao outro tudo pré-digerido. Era desde esse lugar que ela se reconhecia. Caso ele mastigasse, Isaura ficaria sem função.

É curioso para que serve um analista. Sozinho, o paciente consegue relatar seu sofrimento, mas não tem ideia de sua implicação na sua manutenção. Isaura não suspeitava que os “tiranos”, como a própria Isaura se referia, haviam sido constituídos e mantidos por ela. Ela era a imperatriz desse reino. Para ajudar seu filho a crescer, precisaria encontrar outras modalidades de gozo, liberando o menino.