Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças). Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”. Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior. Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades. Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.

O fracasso para a psicanálise

Fracasso

Aos vinte e oito anos, a moça era bonita, inteligente e adorava a profissão que tinha escolhido: economista. Seus conhecidos, no entanto, desconfiavam de algum feitiço maligno contra ela. Na economia da vida dela, as contas nunca batiam. A moça nadava, nadava, nadava, mas sempre morria na praia. Todas as vezes que estava prestes a conseguir alguma promoção na empresa, um tsunami acontecia na vida dela e não conseguia concretizar os planos. Um fracasso.

Durante seis meses, tinha participado de um processo seletivo interno da empresa onde trabalhava. Havia feito todos os cursos obrigatórios. Tinha aberto mão de todos os eventos sociais, do lazer etc. Passou em primeiro lugar em todas as provas. Eram 200 concorrentes no início do processo. Na última etapa, só tinham ficado quatro. No dia da última etapa, ela perdeu a hora e acordou duas horas depois do início da reunião. Logo ela, que nunca se atrasava. Como não tinha ouvido o despertador tocar?

No texto “Arruinados pelo êxito”, publicado em 1916, Freud se perguntou por que as pessoas não conseguiam sustentar a felicidade. Mostrou que existe uma relação entre o sucesso das pessoas e a doença psíquica. Para o psicanalista, era surpreendente e até mesmo atordoante, descobrir que muitos adoeciam no momento em que um desejo profundamente enraizado e, de há muito alimentado, estava prestes a se tornar realidade.

É como se as pessoas não fossem capazes de tolerar sua felicidade. É como se a pessoa encarnasse a expressão de senso comum “quem nasceu para dez contos de réis, não chega a um vintém”.

Por que isso acontece? Porque, segundo o psicanalista, o sentimento de culpa faz com que as pessoas não se autorizem ao sucesso. O patinar no fracasso alimenta esse sentimento de culpa, levando a pessoa a acreditar que ela não seria capaz ou não mereceria aquilo que ela deseja.

Como sair desse ciclo vicioso? Se, sozinha, a pessoa não consegue remar contra a maré, uma análise pode ajudá-la a sustentar o seu desejo e dar consequência a ele. Sabendo da preciosidade do tempo, o analista nunca é parceiro dos “delays” dos sintomas. Ele não é representante do superego, que puxa a pessoa para trás e faz esmorecer o desejo. O analista dirige uma análise de modo a fazer com que o sujeito se confronte com o desejo e se atenha a ele como um meio de vida.

O desejo está do lado do novo; da vida e não da morte.

Periquito de realejo

Realejo

Domingo frio e chuvoso. Muitos paulistanos pareciam ter tido a ideia de almoçar no mesmo restaurante. De repente, surgiu uma música repetitiva. Um senhor, aparentando mais de setenta anos, carregava um realejo todo remendado. Ele bradava: “venham todos, venham todos tirar a sorte do periquito; a sorte na sua vida, nos seus amores e nos seus negócios! O periquito não falha! ”

As conversas cessaram. As crianças, antes inquietas, observavam, encantadas, o simpático periquito. Adultos aderiram a sua curiosidade. A custo de dois reais, todos podiam ver o periquito tirar um papelzinho cuidadosamente dobrado de uma gavetinha e entregar na mão do seu senhor, que, por sua vez, passava para o cliente. Podiam, ainda, ler “a sua sorte”, com ar de muita curiosidade.

Essa cena faz pensar na relação das pessoas com o desejo. Recorrer ao realejo, para alguns, pode funcionar como o que, em psicanálise, chamamos de se pautar no Grande Outro. Trata-se de uma instância que, no imaginário das pessoas, pode controlar e predestinar suas vidas, afinal, o Outro é aquele que tudo sabe, tudo vê e tudo pode. Quanto poder! O Outro funciona como oráculo de Delphos, a quem se recorre para saber o destino.

Delegar a vida a um Outro é não se comprometer com nenhuma escolha, já que, se algo der errado, foi obra do destino. Trata-se de uma posição paralisante e descompromissada. Afinal, a pessoa não precisa pensar e arquitetar sua vida em prol de um desejo. Ela faz “o que seu mestre mandar”.

Na clínica, muitas vezes o paciente chega com essa demanda: “você me conhece o suficiente, o que eu devo fazer?” Frente a esse questionamento, o analista precisa ouvir as sutilezas da demanda de alguém que tenta se esquivar desse trabalhoso caminho do desejo. Caso se coloque como aquele que sabe o que é melhor para seu paciente, o analista pode se converter no “periquito do realejo”.

O que uma análise levada a bom termo pode modificar na vida de alguém é algo da ordem de um milagre. Em 1961, Lacan o chamou de milagre do amor. Disse que ele ocorre na medida em que a pessoa se torna desejante. Quando ele ocorre, a pessoa passa a perceber que não há receitas prontas para alguém ter sorte na vida. Dá-se conta de que é necessário trabalhar para sustentar o seu desejo. Procurar um analista não é garantia de sucesso no amor, nos negócios etc. Analista não é periquito de realejo.

Existe amor nota 10?

Notas menino

Paulinho, oito anos, chegou da escola saltitando. Ao ver que o filho não cabia em si de tanta alegria, Marisa quis saber: “- Meu filho, o que aconteceu na escola, viu passarinho verde?”. Paulinho, abrindo a mochila, retirou dela uma folha de prova um pouco amassada e entregou-a à mãe. Com olhos brilhantes, disse: “– Veja, mamãe, não é só a Aninha que tira nota dez. Dessa vez, eu também consegui, pode ver, é a prova de matemática!”.
Marisa pegou a prova e ficou atônita, sem saber o que dizer. Sim, diante dos seus olhos estava escrito, de caneta vermelha, o tão esperado dez. No entanto, o que Paulinho não tinha levado em consideração é que quase toda a prova vinha marcada com o sinal de X. Eram nove indicações de erro e apenas um sinal de acerto.
Diante da alegria do filho, como refrescar a memória do garoto dizendo-lhe que, na verdade, ele estudava em um colégio em que as notas eram sobre cem? Naquele contexto, o seu “dez”, na verdade, equivaleria a “um”, em comparação com as outras escolas. Dentre elas, a da irmã, Aninha, com quem sempre se comparava.
A mãe ficou em silêncio. Não soube o que dizer para o filho. Trouxe sua dúvida à sessão de análise: “como responder ao Paulinho?”. Ela se sentia em uma saia justa. Embora quisesse lhe dizer que sua nota era um, a convicção com que ele falava contrastava com o banho de água fria que teria que lhe dar.
A dúvida de Marisa tinha bastante cabimento. Há bastante tempo Paulinho só vinha tirando “zero” em matemática. A irmã, por sua vez, tirava dez em todas as provas. Todo ano, a menina era condecorada como melhor aluna do colégio. Voltava para casa carregando no peito uma medalha grande, reluzente tal qual a de um general, como a própria mãe descrevia.
Diante dela, Marisa via o filho dizendo-lhe quase em tom de súplica, “veja, mamãe, eu também consigo tirar dez”. O mutismo de Marisa, conforme contou ao analista, era resultado também do que aquela situação lhe tinha feito ver. A mãe percebeu que Paulinho estava fazendo a seguinte equação: quem tira dez é amado, quem tira zero é tratado como débil.
A falta de palavras de Marisa não me surpreendeu. Afinal, seu filho lhe tinha colocado uma questão subjetiva crucial: “que nota eu tenho no seu desejo?, dez ou um?”. Não seria por ter dúvidas de seu valor no desejo da mãe que o menino não via a realidade que estava diante dos seus olhos?
Sabemos, desde 1920, com Freud, que “Os neuróticos afastam-se da realidade por achá-la insuportável – seja no todo ou em parte”. Naquela família, as notas do Paulinho eram sempre jogadas por debaixo do tapete, como se fosse um assunto que ninguém queria comentar. Afinal, olhar o problema seria admitir a castração do filho e dos pais.
O que Marisa percebeu ao longo da sessão, foi algo que não queria ver. Paulinho sofria, pois, de algum modo, criou a expectativa de que, para ser amado, deveria ir tão bem na escola quanto sua irmã mais velha.
O que Paulinho e Marisa precisariam entender? Que cada percurso escolar é singular e não deve ser comparado com outros. Se dentro da escola um ranqueamento por meio de notas é feito, o mesmo não vale para a relação mãe e filho. Marisa chegou à conclusão de que, por mais que doesse, valia mais mostrar a realidade ao filho do que mantê-lo na ignorância com relação ao seu desempenho escolar. Adiar o confronto com a realidade só postergaria o sintoma.
Na dialética do ser e ter, Marisa foi convidada a mostrar para o filho que ele não precisaria ser o seu falo para que fosse amado. Ao contrário, somente quando ela o liberasse dessa pesada carga, é que ele poderia trabalhar para conquistar o dele.

Prometeu desacorrentado

Prometeu

Joana, 35 anos, casada, mãe de dois filhos, chegou ao consultório um tanto assustada. Ao primeiro cumprimento, desatou um choro desenfreado. Aos prantos, contou-me como, há quinze anos, vinha sofrendo nas “mãos de seu marido”. Em suas palavras, “um cara bronco de sentimento, que só sabe me consumir, como se alimentasse todos os dias do meu sofrimento”. Depois de ouvi-la atentamente, a psicanalista perguntou: “mas, alguma vez você já quis deixá-lo com fome?”.

À essa intervenção arriscada, de duas uma: Joana sairia do consultório e nunca mais voltaria ou, de algum modo, as palavras da psicanalista tocariam seu corpo, fazendo-a, ao menos, desconfiar de sua posição de submissão frente ao marido. O objetivo da intervenção era deslocá-la de uma posição mortífera que a fazia deixar-se devorar por muitos e muitos anos, como se tivesse cumprindo um castigo imposto pelos deuses.

Esse fragmento de caso fez-nos lembrar do “Mito de Prometeu”, um titã que, segundo a mitologia grega, tinha o dom da profecia. Filho mais jovem de Jápeto e Climene, desde pequeno era criativo e inteligente. Usava seu dom para comunicar-se com os deuses e compreendia a essência de todas as coisas do universo. Prometeu foi um defensor da humanidade, ficando conhecido por sua astúcia ao roubar o fogo de Héstia e dá-lo aos mortais.

Por causa disso, Zeus ficou muito irado com essa “façanha”, decidindo puni-lo. Decretou ao ferreiro Hefesto que prendesse Prometeu, por 30 mil anos, em correntes junto ao alto do monte Cáucaso. Além de permanecer acorrentado, o titã era bicado diariamente por uma águia, que lhe consumia o fígado. Como Prometeu era imortal, seu órgão se regenerava, fazendo com que o ciclo destrutivo se reiniciasse a cada dia.

Retomando o caso Joana, podemos pensar que, tal qual Prometeu acorrentado, a jovem senhora, inconscientemente, tinha feito um acordo com “Hefesto”. Presa ao sintoma que a colocava em posição de vítima, conformava-se com o fato de ter “seu fígado devorado”. Assim, por 15 anos, perpetuava um gozo do qual não se achava em condições de se desacorrentar.

Podemos dizer que, hoje, as correntes de “Hefesto”, para cada pessoa, podem ter um nome: droga, bebida, comida, inércia, doença psicossomática. Trata-se de diferentes facetas de um mesmo nome: a repetição da pulsão de morte.

Na mitologia grega, Prometeu não sofreu eternamente. Contou com o herói Hércules que, com sua força, libertou o titã das correntes, substituindo-o no cativeiro pelo centauro Quíron.
E hoje? Existiria um salvador que pudesse, sem ser chamado, libertar a pessoa do ciclo destrutivo do sintoma? Como sair da posição de condenação de Prometeu?

Joana veio, depois de 15 anos, procurar ajuda. Mas, ledo engano achar que o analista pode fazer o papel de Hércules. Longe da mitologia, o que a psicanálise pode fazer para desacorrentar Joana e tantos outros “Prometeus”?

A partir da escuta, dar a ver ao sujeito sua parcela no sofrimento do qual se queixa. Se existe alguém que, nas palavras de Joana, a “consome”, é porque, de algum modo, ela se deixou ser consumida pelo outro. Na verdade, é ela mesma quem precisa decidir se quer abrir mão desse sugar doloroso do qual também se alimenta.

Uma análise, portanto, ao trabalhar na direção de uma cura, pode ajudar a quem dela se beneficia a libertar-se das amarras do sofrimento, abrindo-lhe novas formas de viver. Se, por um lado, a via do gozo aprisiona, por outro, a via do desejo desacorrenta o sujeito de um pesado fardo.

Crianças: o que fazer com elas?

Crianças no parque

Com dúvidas a respeito do que fazer com o que lhe parecia ser o comportamento desviante de duas crianças, a dona de uma escola procura a psicanalista. Não sabia como se dirigir aos pais, nem como dar segmento à educação das crianças, em sua avaliação, muito estranhas.

Menina, dez anos de idade:

Pensando, talvez, em um treinamento precoce para o concurso vestibular, a escola preparou uma longa prova de conhecimentos gerais. Na parte de biologia, uma das questões era “por onde os coelhos se movimentam?” A expectativa era a de que as crianças pudessem responder a respeito do aparelho locomotor. Entretanto, a menina, que até então não havia demonstrado qualquer retardo mental, respondeu: “pelo focinho!”. Comunicada a respeito de seu erro, ela não conseguia compreender onde havia errado. Na casa de campo de sua família havia uma coelheira onde ela havia, inúmeras vezes, presenciado os “coelhos mexendo o focinho como quisessem dar beijinhos no ar!”. Como lidar com tamanha convicção de certeza? Como entender essa resposta da menina? Surdez? Retardo mental? Esquizofrenia infantil? Autismo?

Menino, oito anos de idade:

João Paulo, um menino sadio e risonho, bastante carinhoso com a família, também teve um aspecto de sua vida íntima descoberto pela escola justamente por ocasião das provas mensais. Um dos exercícios da prova versava acerca de femininos, masculinos e plural. Nele, uma das perguntas requisitava que as crianças respondessem qual era o feminino de coelho. Evidentemente, a resposta esperada era “coelho”. Entretanto, a esta questão, João Paulo prontamente respondeu: “Dona Rosinha”. Estaria ele fazendo pouco caso da avaliação? Pedindo que se explicasse, o menino pareceu perplexo. Para ele, sua resposta estava muito clara. Ocorre que o garoto gostava de passar seu tempo livre no apartamento de seus vizinhos: Marcos Coelho, casado com a simpática D. Rosa, mais precisamente, D. Rosinha.

Para além da coincidência do significante “coelho”, o que une as duas histórias? Elas ilustram a presença irredutível do infantil, do que escapa da lógica da linguagem. Menina e menino responderam a partir de suas singularidades, aquém do que a instituição, com sua prevalência da combinatória significante, estaria esperando.
O que têm as crianças? São doentes? Claro que não. Atire neles a primeira pedra quem nunca sentiu a presença do Real que, indomável, parasita qualquer tentativa de domesticar os sentidos por meio do simbólico. Eles assustaram a dona da escola na medida em que revelam para ela a loucura que é nossa, a de todos os adultos, pois se existe algo que a psicanálise nos ensina é que não há saída do infantil, apenas a possibilidade de fazer maior amizade com ele. Menos susto e mais educação.

Pai e filho: amor para dar e vender

Pai, compra algo?

Enquanto o pai se espremia para atingir o balcão da lanchonete do aeroporto cheio, uma menina pediu uma bonequinha que via na vitrine da loja ao lado. O pai disse não. Ela insistiu. Ele falou mais alto. Diante da negativa mais veemente, ela pediu um saco de batatinha frita. Outra negativa. Os resmungos continuaram. Outro pedido, outra negativa. Então, como se fosse o último recurso, a menina disse:

– Pai, por favor, compra qualquer coisa, mas compra alguma coisa pra mim!

O pai pareceu atônito. Assustou-se com o que acabara de ouvir. Não conseguia falar nada, não teve nenhuma reação.

O que teria acontecido caso o pai tivesse comprado a loja inteira de bonequinhas e de batatas? A menina teria ficado satisfeita? Ou, o pai teria ouvido, no fim da conversa: – Pai, me compra ainda outra coisa?

Para responder a essa questão, precisamos pensar o que está implicado, inconscientemente, em todos os pedidos. Lacan, na lição de 21 de maio 1958, nos fala que toda demanda é demanda de amor. Logo, ao insistir na compra de objetos de consumo, o que essa criança pedia era um afeto que não estava à exposição em nenhuma vitrine: no caso, o amor de seu pai. Lacan não deixa dúvida quanto a isso. Para ele, o que é visado no amor é que o Outro dê seu próprio ser.

Assim, é quase indiferente se o pai comprasse ou não a boneca, pois, para a criança, o que importa é a manutenção da possibilidade de pedir, de manter o vínculo amoroso.

Quem procura compensar sua ausência com um brinquedinho aqui, outro acolá, na sede de “não deixar faltar nada”, está se iludindo, mas não necessariamente ajudando na constituição do laço amoroso.

Nesse ponto, é sempre bom lembrar uma lição valiosa da psicanálise: o que de melhor um pai pode transmitir ao seu filho é a sua própria castração. Esse é um jeito de falar que, nas lanchonetes da vida, há que se sustentar a impossibilidade de oferecer ao filho o que, supostamente, poderia satisfazê-lo, na esperança de, quem sabe, aplacar as exigências do próprio narcisismo desenfreado.

O bom humor da psicanálise

Pavão com bom humor

No Rio de Janeiro, havia um psicanalista extremamente carrancudo. Durante as sessões, desde a sua Bergère (tipo de poltrona com encostos laterais para cabeça), praticamente limitava-se a pronunciar “Bom dia” ou “Boa tarde”; “nos vemos na próxima sessão”.
Os pacientes já estavam tão acostumados que nem estranharam quando ele parou de falar as frases habituais. Nem desconfiaram quando parou de se levantar para receber ou levar os pacientes até a porta.
Estranhando por que o analista nunca mais a chamava, a secretária foi averiguar. Ao se aproximar, pensou que ele estava dormindo. Na tentativa de acordá-lo, cutucou-o. Surpresa! O analista tombou sob seus braços. Tinha tido um ataque cardíaco fulminante. Os pacientes queriam saber na sessão de quem ele tinha morrido.  Como iriam pagar para um morto?
Essa anedota ilustra certo imaginário de psicanalista: alguém com cenho franzido e fala pausada, contida. Em certa medida, chega a ilustrar o que, antigamente, aprendíamos nos cursos de formação de psicanalistas, nos quais existiam aulas de como deveríamos nos portar.
Anedota à parte, sabemos que o modo pessoal como cada analista lida com seus pacientes é diferente. A sisudez não é aval de sucesso na direção da cura. Então, neste site, ao falar de psicanálise com bom humor, estaríamos sugerindo que um psicanalista deva agir como um “bobo da corte”, funcionário que, no império bizantino, era encarregado de entreter o rei e a rainha e fazê-los rirem?
Não se trata disso. Longe do riso pejorativo ou barato, queremos aproximar-nos da acepção dada por Freud ao termo, em 1927. Para o pai da psicanálise, o humor é coisa séria. Trata-se de um modo de obter prazer que não é resignado, mas rebelde e revolucionário. Isso porque o ego se recusa a aceitar as provocações da realidade e da compulsão ao sofrimento, buscando subvertê-lo.
Agir com humor, portanto, é conseguir fazer o triunfo do ego e do princípio do prazer, afirmando-se contra a crueldade das circunstâncias reais. Nesse sentido, o humor não entretém, mas subverte a ordem comum das coisas. Porta-se como um guerrilheiro frente às situações difíceis da vida.
Freud ensina-nos que o humor é um dos métodos que a mente humana constrói para fugir à nossa compulsão ao sofrimento: “Uma série que começa com a neurose e culmina na loucura, incluindo a intoxicação, a auto-absorção e o êxtase” (FREUD, 1927, p.191). Diferentemente desses outros métodos, lutar contra o sofrimento, via humor, é ter uma atitude digna, remetendo-nos aqui ao termo freudiano.
Ter bom humor não é “tapar o sol com a peneira”, mas, sim, enxergar ou adotar uma saída inventiva para as situações mais adversas da vida cotidiana. Como o próprio Freud escreveu, nem todas as pessoas conseguem fazer isso. Para ter bom humor, necessariamente, é preciso abrir mão do seu narcisismo. Quem consegue rir de si mesmo ou inventar situações que provoquem riso no outro visam algo muito maior. Trata-se de ver a vida com outros olhos.

Carnaval: escolha sua fantasia

Fantasia de Carnaval

Nem bem acabou a correria de final de ano e eis que surge um  grito na avenida: “olha o carnaval aí, gente!”. O zum, zum, zum é grande. É tempo de alegria, de uma brincadeira que é levada a sério por muitas pessoas que trabalham freneticamente para que os desfiles das escolas de samba sejam impecáveis.

Até quarta-feira de cinzas, o carnavalesco empresta o corpo para vestir uma fantasia dentre as disponíveis para o desfile daquele ano. O samba, as fantasias, a purpurina, a serpentina, a divisão das pessoas em alas levam-nos a pensar. Como cada um se inscreve no desejo do Outro? Como cada qual vem compondo o samba-enredo de sua vida? Que tipo de fantasia anda vestindo?

Há quem se esconda por trás de fantasias imaginárias. É como se dissessem para si mesmas que, sem a fantasia de “bom moço” ou de “rebelde”, por exemplo, não conseguiriam entrar na avenida. Outras seguem o fluxo do bloco de rua, cantando um samba-enredo sem ater-se à letra, apenas a vozeando.

A fantasia sempre teve um papel fundamental na teoria e história da psicanálise. A partir das histéricas, Freud se deparou com a distinção entre realidade empírica e realidade psíquica. Fantasia, para a psicanálise, é uma ficção que dá estrutura de verdade a um fato.

Assim sendo, ao longo de uma análise, não se trata de decretar o fim do trio Pierrô, Colombina e Arlequim. Mas, trata-se de aprender a ver em que medida uma determinada fantasia serve ou não para sua vida.

Em uma análise, muitas vezes é necessário rasgar algumas fantasias para que outras sejam construídas. Uma análise, portanto, é um convite para que essa fantasia estrutural do sujeito possa ser enunciada e atravessada. Muitas vezes, a pessoa descobre que está desfilando em uma ala que não condiz com seu desejo.

Opa! É quando o analista ouve o “Ó abre alas, que eu quero passar”! A pessoa, então, é convidada a construir o seu samba-enredo, longe das expectativas de aplausos de outros blocos. O samba-enredo, que dará o ritmo, e a fantasia, que dará o colorido, não se acabarão na quarta-feira. Perdurarão até quando a pessoa quiser colocá-los na passarela da vida…

É possível traduzir um ser humano por sua genética?

Traduzir_a_genéticaSerá que um mapeamento genético traduziria o que cada ser humano é? Há quem diga que sim. Em forma de uma moldura de espelho antigo, feito de papel laminado, um folder de propaganda do laboratório de genética Affymetrix, dos Estados Unidos, chama atenção. A pessoa pode ver a sua imagem refletida no espelho junto com um desenho da dupla hélice do DNA. Pode também ler: “hoje você é Você, que é a mais verdadeira da verdade. Não existe ninguém que seja mais Você do que Você” (Today you are You, that is truer than true. There is no one alive Who is Youer than You – Dr. Seuss). No verso do folder, se lê o seguinte convite: “investigue a individualidade”. Na parte inferior, o laboratório divulga a possibilidade de concorrer a uma “arte impressa com o DNA” do “sortudo”.

Sabemos que cada um de nós tem uma combinação genética única feita a partir das bases nitrogenadas adenina (A), guanina (G), citosina (C) e timina (T) da molécula de DNA. Essa combinação de letras dá o código genético de cada um de nós, o qual pode ser lido por máquinas que decifram o sequenciamento, como prometido pelo folder do laboratório Affymetrix. Nessa leitura, pode-se prever um futuro, por exemplo, a pré-disposição a certas doenças.

Sabemos que, biologicamente, cada um tem a combinação genética que herdou de seus ancestrais. Não se pode, por exemplo, escolher a cor dos seus olhos, sua altura, ou mesmo, sua disposição genética para certos tipos de doenças. Em certa medida, portanto, há uma espécie de “destino” que transcende o sujeito.

A psicanálise concorda com isso?

Não. A individualidade a que o laboratório se propõe a mapear não é da mesma ordem que a singularidade que pode ser construída a partir de um trabalho de análise. Para a psicanálise, a singularidade é uma construção feita com aquilo que o sujeito desconhece de si. É uma conquista cuja matéria-prima são os “cacos” da vida de cada um. Uma análise justamente operará sobre aquilo que o sujeito não entendeu de sua existência.

Não se trata de ir contra um determinismo genético, mas, de ler a sua letra. Trata-se de suspender a letra que se inscreveu no corpo no momento em que o ser humano deixou de ser só corpo biológico e passou a sofrer os efeitos da inscrição da linguagem em seu corpo. Recuperar a instância da letra no inconsciente (LACAN, 1967) é fazer um trabalho que abre a cada paciente a possibilidade de inscrever-se em outro lugar de sua existência. Em um trabalho de análise, o psicanalista lê aquilo que diferencia o paciente e o encoraja a construir um “si próprio” a partir daquilo que ele mesmo desconhece.

Assim, para a psicanálise, “o mais de você”, referido na propaganda do laboratório, está naquilo que nenhum espelho pode revelar nem refletir. Você só será você à medida que abandonar aquilo que os outros, e até mesmo seu DNA, disseram de você.

FELIZ ANO NOVO?

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Mês de Janeiro. Época de comprar uma agenda nova, de pensar nos compromissos ao longo dos meses, de fazer novos projetos ou de retomar os engavetados. Começo do ano parece uma oportunidade de renovação.

Mas é de se pensar: o que faz de um ano ser realmente novo? Aniversários serão comemorados, contas sempre chegam, impostos precisam ser pagos etc. De cada dez pessoas que começaram 2017 afirmando querer parar de fumar, por exemplo, quantos, de fato, deixarão de repetir o gesto de acender o cigarro?

A alteração de uma data não acarreta uma mudança no sujeito. Virar a folhinha não garante se livrar da repetição do ano velho. Sair do ano velho é sair da repetição que se impõe sobre o sujeito, de modo a levá-lo a viver em um automatismo. Sair do ano velho é abandonar a circularidade infernal do sintoma, da o que faz com que todo ano pareça igual.

A circularidade do sintoma é como se fosse uma teia protetora do desejo de cada um. Essa teia traz uma pseudossensação de segurança. Ela traz um ônus grande: não permite o prazer de desfrutar uma vida saborosa.  Permanecer no mesmo por anos e anos, pode fazer com que a vida escorra pelas mãos.

O que faz um ano ser realmente novo é a decisão de começar a ousar fazer diferente.

O que faz um ano ser realmente novo é ter coragem de se livrar daquele sintoma teimoso.

O que faz um ano ser realmente novo é não recuar frente às surpresas e ao inusitado. Afinal, são elas que dão cor e sabor a cada ano.

Cheers! Feliz ano novo!