É possível viver só de provérbios?

Lívia, 38 anos, jornalista, veio procurar análise por não conseguir se manter em um emprego. Fazia 10 anos que vivia “pulando de galho em galho”. Também tinha dificuldades de manter amizades, parceiros amorosos, estilo de roupa e cor de cabelo, etc.
Era exímia conhecedora da sabedoria popular. Sempre tinha um provérbio na pontinha da língua. Ela os usava como justificativa para suas mancadas. Por exemplo, quando chegava atrasada em uma reunião, já entrava afirmando que “os últimos serão os primeiros”. Em suma: de provérbio em provérbio, Lívia construía uma rede de significantes que a desresponsabilizava pela sua vida.

Quando indagada pela analista a respeitos dos motivos das sucessivas demissões, acabou lembrando-se de uma história familiar. Falou que toda vez que contava para a mãe que havia perdido o emprego, ela dizia: tal avô, tal neta. Segundo a paciente, a mãe sempre comentava que, por não suportar ouvir críticas, o avô mudava de emprego de tempos em tempos. Essa explicação dava a Lívia o lugar daquela que deveria cumprir um desígnio familiar, como se lhe fosse dado o fardo de carregar a herança do avô.

A analista decidiu ir a favor do sintoma. Um dia, quando a moça chegou contando do término de seu relacionamento amoroso, a analista perguntou: “Antes só do que mal acompanhada?” Assustada, Lívia discordou. Em outra ocasião, quando algo havia saído errado, a analista novamente interrogou: “Mas, Lívia, Deus não escreve certo por linhas tortas?”

Lívia acabou percebendo que ela não era obrigada a reproduzir as palavras ou destinos em que as pessoas lhe fixavam. Ao poder ter mobilidade, passou a pensar a respeito de quais lugares desejaria ocupar e no trabalho necessário para conquistá-los e mantê-los. Foi então que começou a construir uma vida autônoma e responsável.

Uma análise pode ajudar alguém a desvencilhar-se dos mantras que martelam sua vida, de modo a liberá-la para a conquista de um modo singular de usar a linguagem. Nesse ponto, as palavras contam como peças a favor do desejo e não como paredes de uma prisão.

O filho: Quero tudo mastigado!

Mãe e filho chegam ao consultório da analista. O menino, de três anos, tinha sido encaminhado por um fonoaudiólogo que, por sua vez, havia sido indicado por um pediatra. Fisiologicamente, o menino não tinha nenhum problema que o impedisse de mastigar, mas, desde sempre, ele havia se recusado a fazê-lo.

Até a época das sopinhas e papinhas, Juninho nunca tinha dado trabalho. Na hora da introdução dos alimentos sólidos, o pesadelo tinha começado: ele não mastigava nem chocolate.

Ela e o marido, Roberto, tinham cedido aos seus caprichos. Consequentemente, Isaura tinha se tornado uma especialista em “papinhas”. Todas as vezes que viajavam, por exemplo, era o mesmo calvário: eles levavam um arsenal de potinhos em bolsas térmicas.

Como o sintoma da criança responde ao que existe de sintomático na estrutura familiar, a analista pontuou que, para aquela família, havia algo que estava “difícil de engolir”. Isaura passou a falar de sua relação com o marido.

Antes do filho nascer, ela conseguia “dar conta de tudo”: de manter a casa impecável, de manter a excelente aparência e de colaborar profissionalmente no escritório de advocacia da família. No escritório, antes mesmo dele lhe pedir, entregava-lhe os processos com os pontos principais anotados. Era do tipo de pessoa que antecipava as necessidades do marido.

Havia se afastado dessas funções com a licença maternidade. A analista perguntou se Isaura sentia falta dessas atividades. Mais ou menos. Ela cansava. Descreveu: “− Doutora, eu lhe entregava o processo todo mastigadinho”.

Coincidência? Difícil. Ao que tudo indicava, ao não mastigar, Juninho tinha respondido à perda da posição de gozo de sua mãe: fornecer ao outro tudo pré-digerido. Era desde esse lugar que ela se reconhecia. Caso ele mastigasse, Isaura ficaria sem função.

É curioso para que serve um analista. Sozinho, o paciente consegue relatar seu sofrimento, mas não tem ideia de sua implicação na sua manutenção. Isaura não suspeitava que os “tiranos”, como a própria Isaura se referia, haviam sido constituídos e mantidos por ela. Ela era a imperatriz desse reino. Para ajudar seu filho a crescer, precisaria encontrar outras modalidades de gozo, liberando o menino.

O psicanalista é um cirurgião do Inconsciente

Em dezembro de 2017, a psicanalista Maria da Glória Vianna foi convidada pela colega Leda Guerra para a III Conversação Clínica, “A Clínica e seus atos” da Liga de Psicanálise Lacaniana de Maceió (AL). Segue um breve resumo dos principais aspectos abordados na palestra “O psicanalista como cirurgião: como operar na clínica psicanalítica”.

O título da conferência, “O psicanalista como cirurgião: como operar na clínica psicanalítica”, não foi aleatório. Foi inspirado na Conferência XXVIII, de 1916, na qual Freud fez uma relação entre o tratamento psicanalítico e a operação cirúrgica. Ele afirmou “O tratamento hipnótico procura encobrir e dissimular algo existente na vida mental; o tratamento analítico visa a expor e eliminar algo. O primeiro age como cosmético, o segundo, como cirurgia” (página 526).

Foi mostrado que o analista precisa adaptar sua prática a cada caso. Um exemplo. Pedro, um menino de 10 anos, tinha sido sorteado pela loteria das desgraças. Sofria e se fechava agressivamente. A queixa da família era a de que o menino era mal-humorado e hostil, especialmente com seu irmão mais novo. A qualquer manifestação de afeto, recrudescia em um mutismo. Outras vezes, recorria aos chutes e aos pontapés. Nas primeiras sessões, Pedro pouco falou. Quando não estava mudo, dava respostas vagas como “não sei” ou, ainda, dava de ombros. Quieto em um canto, respondia a todas as perguntas da analista monossilabicamente. Considerando que o menino tinha razões empíricas para sofrer, como demovê-lo de suas defesas?

O humor e a imitação teatral foram escolhidos. Um exemplo. A analista fez cartazes com as principais frases evasivas utilizadas pelo menino: não sei; talvez; pode ser; você quem sabe, acho que sim. O combinado era que, durante as sessões, ele não poderia dizer nenhuma daquelas frases. Quando percebia que ele responderia com um “não-sei”, o cartaz era levantado. Pedro ria e concordava em falar. A partir de certo ponto da análise, foi possível, inclusive, brincarem de inventar palavras. Esses manejos afloraram a criatividade do menino. Pedro passou a relacionar-se com as pessoas de modo mais afetivo e a interessar-se por jogos, cursos e outras atividades criativas.

Para o pai da psicanálise, o analista é como um cirurgião. Seu trabalho é extremamente delicado. Cabe a ele saber localizar qual o ponto específico está causando dor no paciente para calcular sua incisão. Sendo “cirurgião do inconsciente”, pode trabalhar na direção de levar alguém a se desvencilhar dos modos de gozo que o fazem sofrer e o impedem de caminhar em direção ao seu desejo.

Para tanto, ele precisa agir como um médico que lanceta um ferimento de um paciente sob seus cuidados.  Um analista nunca pode “fugir da raia”, não temendo cortar onde deve para exercer seu ofício, mesmo que, normalmente, a pessoa que foi cortada não goste muito disso. Sabemos que ninguém chega para um médico e diz: eu vim aqui para sofrer…!

Mantendo a metáfora de Freud, podemos dizer que, a cada momento, o psicanalista atualiza sua escuta escolhendo um bisturi, o qual possibilita uma incisão que toca o corpo. Colocado em ação no setting analítico, o bisturi constitui um ato, uma operação que visa a acordar o paciente. No caso de Pedro, o humor buscou enganchar o menino nas relações com as outras pessoas e com o saber.

Um bisturi, quando bem usado, incide diretamente no ponto de gozo do paciente. Dada sua precisão, os bisturis da clínica psicanalítica poupam sofrimento a quem procura uma análise. Na clínica, não se pode ficar girando em falso para a direção da cura, pois o risco de espanar é grande. Mal-usado, entretanto, o bisturi causa grandes estragos. Uma análise não é inócua. Ela não tampa o sintoma, mas faz com que a pessoa se vire com ele. Por esse motivo, o analista não pode sair, a torto e à direita, abrindo o inconsciente em qualquer lugar, de qualquer modo. Ao contrário: ele precisa calcular qual tratamento é o mais adequado para cada pessoa.

Seria, então, o caso, de, na formação de novos analistas, oferecer aos novatos um catálogo de bisturis? Infelizmente, nada é tão simples. Não existe um bisturi bom ou mau. Freud já afirmava que o instrumento, em si, não garante sua eficácia. Ele postulava: “Não há instrumento ou método médico que esteja garantido contra mau uso. Se um bisturi não corta, tampouco pode ser usado para curar”. (p. 536).

Para além de qualquer instrumento, o que é fundamental são as mãos que o manejam. Decorre desse postulado o reconhecimento da importância, para o analista, de ter ido, tão longe possível com sua análise pessoal. É só libertado de suas identificações que esse cirurgião do inconsciente poderá ter o desprendimento necessário para fazer o que deve ser feito e para não fazer nada, quando esse for o melhor curso de ação. Afinal, ninguém é mestre do inconsciente.

Como deixar de se amarrar?

Nesta época de final de ano, é comum a pergunta “onde você vai passar a virada?”. Proponho outra: No ano que se inicia, onde você vai se amarrar?

Ana Paula, 40 anos, engenheira civil, ao ouvir o endereço do consultório da analista disse: “Ah, conheço essa rua”. Entretanto, no dia e hora marcada, telefonou para dizer: “Não tô achando!, não to achando o endereço! Já estou rodando há meia hora e não acho”. Acabou decidindo remarcar a sessão. Nessa nova oportunidade, minutos antes do horário, novo telefonema: “doutora, não estou achando… a minha carteira… Quando fui pegar o táxi para ir aí, notei que minha carteira não estava na bolsa: ou fui assaltada ou esqueci a carteira em casa e só vou saber se for até lá…”. Foi só na terceira semana que Ana Paula chegou ao consultório. Sua queixa era: “não aguento mais, ando exausta e não sei o porquê de tanto cansaço”. Dada a repetição, era necessário interrogar: O que Ana Paula não achava? Como fazer ela se amarrar?

Inicialmente, a paciente só conseguia falar vagamente que não aguentava mais o trabalho, o marido, os filhos, a família. Eram queixas generalizadas, como quem reclama do “trânsito”. Para que a análise se instalasse, seria necessário que o analista se concentrasse no trabalho de localizar e delimitar a queixa para que Ana Paula pudesse se interrogar com relação “à sua parte naquilo de que se queixava”.

A vagueza do dizer de Ana Paula, somada ao choro constante fez com que analista mudasse de estratégia. Decidiu querer saber quais eram as coisas que a moça gostava, filmes, livros etc. Foi então que o significante “amarrar” foi aparecendo nas sessões. “Eu me amarro em ficções científicas”; “Eu me amarro nessa história de amor” ou ainda “não me amarrei no lance do trabalho…”.

Uma das acepções do verbo amarrar, de acordo com o dicionário, é: unir fortemente, prender, cingir, atar, ligar. Era uma boa metáfora para a continuidade da análise de Ana Paula. Se ela estava exausta de não saber “onde amarrar seu burro”, era preciso fazer um resgate e amarração da sua história.

A cada sessão falava de retalhos da infância, da juventude, do trabalho atual. No entanto, demorou para distinguir de que modo cada qual estava ligado à sua vida. Tinha sido separada dos pais biológicos aos 7 anos. Tinha vivido outros quatro com outra família. Tinha passado a adolescência com outros parentes. Aos 40, falava de cacos perdidos. As perdas eram frequentes. Perdia endereços, horários, documentos, reuniões. Não se ligava afetivamente a pessoas.

Como prosseguir com a análise? Jacques Lacan, no seminário XXIII (1975-1976), ajuda-nos a responder. Na página 71, lê-se: “é de suturas e emendas que se trata na análise”. A lição que Lacan nos ensina é que um trabalho analítico pode possibilitar a alguém que está à deriva em seu gozo construir um contorno, uma amarração que lhe dê um norte.

No caso de Ana Paula, tratou-se de não mais se fixar nos retalhos soltos de sua história, costurando-os, ressignificados, com a linha do desejo. O passado não se altera. É possível, entretanto, se reconciliar com ele. Para tanto, é necessário fazer com que ele não seja mais impeditivo para novas tessituras de sua história.

Feliz ano novo!

A palavra que engancha a escuta

Palavra

Joana, 24 anos, era muito chata. Não parava de falar nunca, sempre em tom monocórdio. Reclamava que não tinha amigos, mas não tinha a menor ideia do motivo. A analista podia imaginá-los. Ao longo da sessão, só Joana falava. Ela não dava espaço. Mal terminava um assunto, já emendava outro, mais outro: palavra atrás de palavra A analista tentava intervir, mas era em vão. Joana blindava-se de qualquer tentativa de aproximação do outro. O que fazer?

Em sua clínica, um psicanalista conta com o seu corpo e com suas palavras para operar na direção da cura. A pessoa adoece psiquicamente por causa de significantes e o remédio é a ressignificação desses significantes. Um primeiro passo para isso é a pessoa aprender a se ouvir. Nesse ponto, cabe citação de Miller (2010), segundo o qual “a interpretação lacaniana mostra o impossível de dizer, tornando-o sensível”.

Ouvir-se não significa um prazer solitário e narcísico de escuta da própria voz. Tampouco se trata de cantar no banheiro ou, ainda, ficar repetindo em voz alta uma lista de compras do supermercado. Ouvir o dito é outra coisa, de modo que o analista, muitas vezes, precisa se valer de vários manejos para que alguém consiga sair do prazer inócuo de falar um blá-blá-blá inconsequente. A fala vazia, muitas vezes, é um tamponamento para a lida com a angústia.

Diante do blá-blá-blá incessante de Joana, não havia intervenção que surtisse efeito. O silêncio foi então usado para possibilitar que a paciente ouvisse sua verborragia. Em uma sessão, a analista cruzou os braços, passou a olhá-la fixamente em seus olhos, não dizendo absolutamente nada. Passado algum tempo, a paciente interrompeu o relato e, espantada, disse: “Nossa, não parei de falar desde que cheguei! Sobre o quê mesmo estava falando?”. A analista, encerrando a sessão, respondeu: “Ah, você estava falando? Não notei!”.

A analista agregou, ao silêncio, a ironia e a suspensão da sessão no momento em que a paciente nem mais se dava conta do que estava falando. Afinal, parecia que falar de qualquer coisa, de qualquer maneira, era um escudo para ter de lidar com o seu sofrimento.

O resultado dessa intervenção foi a possibilidade de Joana, pela primeira vez, ter se dado conta de sua falação vazia. Ao fazer isso, pôde-se questionar-se a respeito de por que tinha de preencher os vazios de sua angústia. Abriu-se, então, um espaço para que o trabalho analítico tivesse lugar.

Melancolia: Para além da caixa de recordações

Roberta, 59 anos, veio procurar uma análise por estar deprimida. Contou que sua vida estava muito vazia. Sentia-se injustiçada porque seu filho único, de 25 anos, tinha resolvido morar sozinho. Estava tão acostumada com a mesmice de seu sofrimento que se colocava à mercê da vida. Apesar de vir procurar ajuda, chegou dizendo “doutora, eu não sei se terei forças para mudar”. Era preciso levá-la à outra dimensão do tempo.

Era uma colecionadora e acumuladora do passado. Ao congelar-se nessas recordações, defendia-se do seu presente e não projetava nada para o futuro. O diagnóstico clínico foi de melancolia. Era como se, para ela, o tempo tivesse parado há vinte anos. A melancolia traz benefícios para aqueles sujeitos que não querem enfrentar a vida. O melancólico encrusta-se no passado, tal qual marisco em casco de navio.

Para Roberta, ver o crescimento do filho era se dar conta de que envelhecera. Era, ainda, confrontar-se com a quebra do seu ideal de potência. Um dia trouxe uma caixa de sapatos cheia de recordações, bilhetinhos, desenhos, primeiro dente de leite do filho etc. Ela não entendia que sua posição a mantinha cativa em uma vida que não existia. Apoiava-se nas recordações da caixa de sapato que precisariam ser ressignificadas. Não se tratava de jogá-las no lixo, mas de olhar diferente para elas.

Mencionando a decisão do filho de ir morar sozinho, falou soluçando, melancólica: “criei com o maior amor do mundo e toda a dedicação de uma mãe zelosa, e agora, doutora, saiu de casa… lembro, como se fosse hoje, das roupinhas que fiz para ele, das fraldas com bordadinhos… você não acha uma ingratidão?”. Ao trabalhar na direção da cura, é preciso que o analista não entre na encruzilhada do gozo do paciente. Por esse motivo, a analista perguntou: “Você ainda o amamenta? Será que não seria hora de deixar seu filho comer maçã raspadinha ou algo mais sólido?”

Roberta surpreendeu-se. Esperava que a analista se solidarizasse com o seu sofrimento e concordasse com a ideia de que problema era a ingratidão do filho. Ao não compactuar com a lamúria, a intervenção foi no sentido de colocar Roberta frente a sua castração. Até aquele momento, acreditava que poderia permanecer completa com a presença do filho no lugar do objeto.

Fazer do coração um depósito do passado é uma resposta para a impossibilidade de viver o presente. Uma análise pode ajudar o sujeito a sair de uma posição melancólica para uma desejante.

O trabalho analítico com Roberta foi ajudá-la a ressignificar a relação com o filho adulto. Trata-se, inclusive, de algo importante para aquelas mães que, como a paciente, veem-se desamparadas quando começam a ver que o filho está crescendo. Sentem-se, muitas vezes, injustiçadas e condenadas a uma solidão. Para elas, é importante redirecionar o que entendem como o lugar de mãe. Não se trata de alguém que somente mantém ou supre as necessidades físicas de uma criança. Mais que isso, é preciso aprender um modo diferente de relacionar-se com o filho.

Quando se diz que “filho se cria para o mundo”, não significa que mães, depois de certa idade, abram mão do filho ou percam o seu papel. Mãe vai ser sempre mãe. O importante é entender que o filho, saudável, em cada etapa da vida, busca sua posição desejante, não mais como objeto de desejo de alguém.

Ressignificada a relação entre mãe e filho, a caixinha de recordações poderá ser vista como lembranças de momentos queridos. A mãe não será prisioneira deles, tampouco o filho. Ambos estarão liberados da expectativa do outro e livres para procurar “sua turma”. Isso não será um empecilho para que mãe e filho descubram as alegrias e surpresas em novos repertórios de aventuras e conquistas para suas vidas.

Os limites da escuta e o déficit de atenção

Luciana e Rogério procuram a psicanalista preocupados com sua filha, de nove anos, Talita. Ela não conseguia se alfabetizar. Tinha sido diagnosticada como uma criança com déficit de atenção. Há dois anos, vinha sendo atendida por psicopedagogos e outros profissionais da saúde, mas nada dava jeito. “O que mais podemos fazer, doutora, a psicanálise pode ajudar nossa filha? ”

Talita era uma criança muito amorosa. Adorava brincar com o irmão mais novo e não media esforços para estudar e fazer as atividades da escola. Tentava ler e escrever, mas tinha dificuldade de entender o que lia. Sofria muito porque, apesar de sua dedicação, suas notas não melhoravam. Aliás, só pioravam. Parecia viver no “mundo da lua” e se isolava cada dia mais. Inicialmente, os pais acharam que era timidez, mas a menina foi ficando angustiada e irritada.

A psicanalista pediu detalhamento. O pai lembrou que, às vezes, ao ouvir a menina cantar, percebia trocas de palavras. Por exemplo, ao invés de cantar “atirei o pau no gato”, a criança cantava “atirei o pau no pato”. À época, os pais não deram atenção para isso, porque achavam que acontecia com todo mundo. Foi combinado que Talita viria para uma entrevista.

No primeiro encontro com a menina, ela contou como se sentia perdida na escola. Sempre prestava muita atenção quando a professora falava, tentava copiar, ler e escrever tudo certinho, mas sempre errava alguma coisa. A pior atividade era o ditado. A psicanalista perguntou se ela tinha medo de ser reprovada. Enquanto fazia a pergunta, reparou que a menina não olhava seus olhos, mas, sim, seus lábios. Era hora de levar a sério o conselho de Freud: “não subestimemos, pois, os pequenos indícios, a partir deles, talvez seja possível encontrar a pista de coisa maior” (Primeira Conferência Introdutória, 1915, p. 34). A aposta da analista foi orientar os pais a procurarem um otorrino e não prosseguir a análise de Talita.

O exame de audiometria da menina mostrou que Talita tinha um problema genético de perda de audição do ouvido esquerdo. Não escutando bem, ela se virava como podia. Seu caso não era de déficit de atenção e nem de psicanálise. Por dois anos, Talita não ouvia e não estava sendo ouvida. Angustiados, os pais estavam insistindo em tratamentos que não estavam funcionando para aquela criança.

Muitas vezes ansiosos para resolverem rapidamente os problemas dos filhos, os pais acabam se pautando em diagnósticos estigmatizados, sem, contudo, os colocarem à prova quando se trata do seu filho. Se, por um lado, tais diagnósticos acalmam os pais, pois nomeiam um sofrimento, por outro, criam um obstáculo. Mascaram o problema, perpetuando o sofrimento de todos. Para a surdez de Talita, foi indicado um otorrinolaringologista. Para a surdez dos pais, uma psicanálise.

O fracasso para a psicanálise

Fracasso

Aos vinte e oito anos, a moça era bonita, inteligente e adorava a profissão que tinha escolhido: economista. Seus conhecidos, no entanto, desconfiavam de algum feitiço maligno contra ela. Na economia da vida dela, as contas nunca batiam. A moça nadava, nadava, nadava, mas sempre morria na praia. Todas as vezes que estava prestes a conseguir alguma promoção na empresa, um tsunami acontecia na vida dela e não conseguia concretizar os planos. Um fracasso.

Durante seis meses, tinha participado de um processo seletivo interno da empresa onde trabalhava. Havia feito todos os cursos obrigatórios. Tinha aberto mão de todos os eventos sociais, do lazer etc. Passou em primeiro lugar em todas as provas. Eram 200 concorrentes no início do processo. Na última etapa, só tinham ficado quatro. No dia da última etapa, ela perdeu a hora e acordou duas horas depois do início da reunião. Logo ela, que nunca se atrasava. Como não tinha ouvido o despertador tocar?

No texto “Arruinados pelo êxito”, publicado em 1916, Freud se perguntou por que as pessoas não conseguiam sustentar a felicidade. Mostrou que existe uma relação entre o sucesso das pessoas e a doença psíquica. Para o psicanalista, era surpreendente e até mesmo atordoante, descobrir que muitos adoeciam no momento em que um desejo profundamente enraizado e, de há muito alimentado, estava prestes a se tornar realidade.

É como se as pessoas não fossem capazes de tolerar sua felicidade. É como se a pessoa encarnasse a expressão de senso comum “quem nasceu para dez contos de réis, não chega a um vintém”.

Por que isso acontece? Porque, segundo o psicanalista, o sentimento de culpa faz com que as pessoas não se autorizem ao sucesso. O patinar no fracasso alimenta esse sentimento de culpa, levando a pessoa a acreditar que ela não seria capaz ou não mereceria aquilo que ela deseja.

Como sair desse ciclo vicioso? Se, sozinha, a pessoa não consegue remar contra a maré, uma análise pode ajudá-la a sustentar o seu desejo e dar consequência a ele. Sabendo da preciosidade do tempo, o analista nunca é parceiro dos “delays” dos sintomas. Ele não é representante do superego, que puxa a pessoa para trás e faz esmorecer o desejo. O analista dirige uma análise de modo a fazer com que o sujeito se confronte com o desejo e se atenha a ele como um meio de vida.

O desejo está do lado do novo; da vida e não da morte.

Periquito de realejo

Realejo

Domingo frio e chuvoso. Muitos paulistanos pareciam ter tido a ideia de almoçar no mesmo restaurante. De repente, surgiu uma música repetitiva. Um senhor, aparentando mais de setenta anos, carregava um realejo todo remendado. Ele bradava: “venham todos, venham todos tirar a sorte do periquito; a sorte na sua vida, nos seus amores e nos seus negócios! O periquito não falha! ”

As conversas cessaram. As crianças, antes inquietas, observavam, encantadas, o simpático periquito. Adultos aderiram a sua curiosidade. A custo de dois reais, todos podiam ver o periquito tirar um papelzinho cuidadosamente dobrado de uma gavetinha e entregar na mão do seu senhor, que, por sua vez, passava para o cliente. Podiam, ainda, ler “a sua sorte”, com ar de muita curiosidade.

Essa cena faz pensar na relação das pessoas com o desejo. Recorrer ao realejo, para alguns, pode funcionar como o que, em psicanálise, chamamos de se pautar no Grande Outro. Trata-se de uma instância que, no imaginário das pessoas, pode controlar e predestinar suas vidas, afinal, o Outro é aquele que tudo sabe, tudo vê e tudo pode. Quanto poder! O Outro funciona como oráculo de Delphos, a quem se recorre para saber o destino.

Delegar a vida a um Outro é não se comprometer com nenhuma escolha, já que, se algo der errado, foi obra do destino. Trata-se de uma posição paralisante e descompromissada. Afinal, a pessoa não precisa pensar e arquitetar sua vida em prol de um desejo. Ela faz “o que seu mestre mandar”.

Na clínica, muitas vezes o paciente chega com essa demanda: “você me conhece o suficiente, o que eu devo fazer?” Frente a esse questionamento, o analista precisa ouvir as sutilezas da demanda de alguém que tenta se esquivar desse trabalhoso caminho do desejo. Caso se coloque como aquele que sabe o que é melhor para seu paciente, o analista pode se converter no “periquito do realejo”.

O que uma análise levada a bom termo pode modificar na vida de alguém é algo da ordem de um milagre. Em 1961, Lacan o chamou de milagre do amor. Disse que ele ocorre na medida em que a pessoa se torna desejante. Quando ele ocorre, a pessoa passa a perceber que não há receitas prontas para alguém ter sorte na vida. Dá-se conta de que é necessário trabalhar para sustentar o seu desejo. Procurar um analista não é garantia de sucesso no amor, nos negócios etc. Analista não é periquito de realejo.

Existe amor nota 10?

Notas menino

Paulinho, oito anos, chegou da escola saltitando. Ao ver que o filho não cabia em si de tanta alegria, Marisa quis saber: “- Meu filho, o que aconteceu na escola, viu passarinho verde?”. Paulinho, abrindo a mochila, retirou dela uma folha de prova um pouco amassada e entregou-a à mãe. Com olhos brilhantes, disse: “– Veja, mamãe, não é só a Aninha que tira nota dez. Dessa vez, eu também consegui, pode ver, é a prova de matemática!”.
Marisa pegou a prova e ficou atônita, sem saber o que dizer. Sim, diante dos seus olhos estava escrito, de caneta vermelha, o tão esperado dez. No entanto, o que Paulinho não tinha levado em consideração é que quase toda a prova vinha marcada com o sinal de X. Eram nove indicações de erro e apenas um sinal de acerto.
Diante da alegria do filho, como refrescar a memória do garoto dizendo-lhe que, na verdade, ele estudava em um colégio em que as notas eram sobre cem? Naquele contexto, o seu “dez”, na verdade, equivaleria a “um”, em comparação com as outras escolas. Dentre elas, a da irmã, Aninha, com quem sempre se comparava.
A mãe ficou em silêncio. Não soube o que dizer para o filho. Trouxe sua dúvida à sessão de análise: “como responder ao Paulinho?”. Ela se sentia em uma saia justa. Embora quisesse lhe dizer que sua nota era um, a convicção com que ele falava contrastava com o banho de água fria que teria que lhe dar.
A dúvida de Marisa tinha bastante cabimento. Há bastante tempo Paulinho só vinha tirando “zero” em matemática. A irmã, por sua vez, tirava dez em todas as provas. Todo ano, a menina era condecorada como melhor aluna do colégio. Voltava para casa carregando no peito uma medalha grande, reluzente tal qual a de um general, como a própria mãe descrevia.
Diante dela, Marisa via o filho dizendo-lhe quase em tom de súplica, “veja, mamãe, eu também consigo tirar dez”. O mutismo de Marisa, conforme contou ao analista, era resultado também do que aquela situação lhe tinha feito ver. A mãe percebeu que Paulinho estava fazendo a seguinte equação: quem tira dez é amado, quem tira zero é tratado como débil.
A falta de palavras de Marisa não me surpreendeu. Afinal, seu filho lhe tinha colocado uma questão subjetiva crucial: “que nota eu tenho no seu desejo?, dez ou um?”. Não seria por ter dúvidas de seu valor no desejo da mãe que o menino não via a realidade que estava diante dos seus olhos?
Sabemos, desde 1920, com Freud, que “Os neuróticos afastam-se da realidade por achá-la insuportável – seja no todo ou em parte”. Naquela família, as notas do Paulinho eram sempre jogadas por debaixo do tapete, como se fosse um assunto que ninguém queria comentar. Afinal, olhar o problema seria admitir a castração do filho e dos pais.
O que Marisa percebeu ao longo da sessão, foi algo que não queria ver. Paulinho sofria, pois, de algum modo, criou a expectativa de que, para ser amado, deveria ir tão bem na escola quanto sua irmã mais velha.
O que Paulinho e Marisa precisariam entender? Que cada percurso escolar é singular e não deve ser comparado com outros. Se dentro da escola um ranqueamento por meio de notas é feito, o mesmo não vale para a relação mãe e filho. Marisa chegou à conclusão de que, por mais que doesse, valia mais mostrar a realidade ao filho do que mantê-lo na ignorância com relação ao seu desempenho escolar. Adiar o confronto com a realidade só postergaria o sintoma.
Na dialética do ser e ter, Marisa foi convidada a mostrar para o filho que ele não precisaria ser o seu falo para que fosse amado. Ao contrário, somente quando ela o liberasse dessa pesada carga, é que ele poderia trabalhar para conquistar o dele.