Glória Vianna é psicanalista lacaniana e carioca. Formada em Psicologia pela PUC-RJ, fez curso de especialização em Arteterapia no Instituto de Arteterapia no Rio de Janeiro. Nessa área, trabalhou com grupos de crianças de 4 a 9 anos. Até hoje, adora história da arte (e sabe contar, com arte, várias histórias no atendimento de crianças).
Durante quatro anos, fez formação analítica na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, no Rio de Janeiro. Fundou, com um grupo de psicanalistas brasileiros e argentinos, a Escola de Psicanálise de Niterói, em 1983. Nessa época, traduziu as conferências de Gerárd Pommier e Catherine Millot. As traduções foram publicadas na revista da escola, “Arriscado”.
Ama cavalos. Durante quase 10 anos dedicou-se à criação de cavalos árabes, criação essa que chegou a ter amplo reconhecimento no exterior.
Vinda para São Paulo no final do ano de 1989, adaptou-se, a duras penas, à vida paulistana, onde, inclusive, fez Mestrado em Linguística na PUC-SP. Hoje, transita com facilidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, mantendo clínicas em ambas as cidades.
Eu seu site, Glória divide, com muito bom humor, pequenos episódios retirados de seus mais de 30 anos de clínica.
Acompanhar alguém em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de um hospital pode ser devastador. Em geral, só vão para as UTIs as pessoas com um quadro clínico que inspira cuidados especiais. Não há quartos. São “boxes” enfileirados, pequenas repartições onde os sujeitos lutam pela vida. A correria não pára: noite e dia os profissionais de saúde estão em constante vigia, entrando e saindo. Se pudéssemos olhar de cima, talvez imaginássemos uma colmeia onde as abelhas seguem firme em seu propósito, sabendo seu papel.
Para quem fica do lado de fora, em alguns hospitais há uma espécie de sala de espera, onde os familiares e amigos dos doentes aguardam. Enquanto se aguarda a chegada de um médico com alguma notícia, o choro costuma ser acolhido pelos demais. Afinal, “todos estão no mesmo barco”. O que mais se escuta é: “tudo vai dar certo”, “não precisa se preocupar”, “só manter o pensamento positivo…” Há, também, aqueles que recorrem a afirmações referentes aos desígnios de Deus, aos quais é preciso se submeter sem vacilar. “Deus sabe, está no controle, o enfermo já está curado”.
Infelizmente, ninguém acredita muito no que está dizendo. É uma linguagem fática, que pode se esfarelar a qualquer momento, dependendo da evolução do quadro de doença do familiar ali internado. De repente, a conversa gira em torno de algo muito brusco, inesperado, que chegou e tumultuou tudo, virou a vida de ponta cabeça! Trata-se de uma resposta provisória para aplacar a dureza da situação. Afinal, como lidar com a angústia da possibilidade, a qualquer momento, de receber a notícia da partida de um ser amado?
Não há fórmulas ou palavras mágicas. A Psicanálise não opera na via das promessas de um happy end. Ela lê as durezas da vida como de fato são. O processo passa por acolher um sofrimento e legitimá-lo, mostrando para cada familiar que há algo de impossível no reverso dessas situações, posto que frente ao real, não há negociação ou previsibilidade. Resta o saber lidar com muito esforço, muita dor e muita análise.
Em 29 de abril de 2023, proferimos uma palestra no IV Fórum Rotary Pela Paz. Este texto é o resumo do conteúdo da palestra.
Agradeço, primeiramente, ao convite de estar com vocês para proferir palestra sobre relacionamento de casal.
A partir da psicanálise, quero cumprir dois objetivos: 1) discutir a respeito da dificuldade dos relacionamentos, buscando entender o desencontro amoroso; e 2) mostrar que, apesar de difícil, o laço amoroso não é impossível.
Dividi a minha fala em duas partes. Na primeira, quero narrar algumas cenas cotidianas que ora mostram um desencontro entre os pares, ora propiciam uma reflexão a respeito da vida a dois. Na segunda, quero discutir a asserção segundo a qual aquilo que costura a possibilidade de o relacionamento se manter (bem e feliz) é o amor, e nada mais. Para isso, vamos entender o que a psicanálise chama de amor.
Abordarei alguns pontos colhidos da minha escuta clínica, nessa escuta de homens e mulheres que se perguntam, junto comigo, “mas, Gloria, do que se trata esse encontro tão atrapalhado de bom?
Na cena 1, vou contar uma historinha, ou melhor, um “causo” que circula pela internet.
Diz a história que um casal tomava café da manhã no dia de suas Bodas de Prata. A mulher, passou manteiga na casca do pão e a entregou para seu marido, ficando com o miolo. Ela pensou: “Sempre quis comer a melhor parte do pão, mas amo demais o meu marido e, por 25 anos, sempre lhe dei o miolo. Mas hoje quis satisfazer o meu desejo. Acho justo que eu coma o miolo pelo menos uma vez na vida!”.
Para sua surpresa o rosto do marido abriu-se num sorriso sem fim e ele lhe disse:
_ “Muito obrigado por este presente, meu amor. Durante 25 anos, sempre desejei comer a casca do pão, mas como você sempre gostou tanto dela, jamais ousei pedir!”.
Gostaria de ouvir vocês a respeito desse “causo” que durou 25 anos… Por que isso aconteceu? Porque estamos na esfera do amor como sacrifício e na relação imaginária de como um vê o outro… Um imaginava que o outro queria X e que, na verdade, o outro também, por sua vez, imaginava que o outro queria Y! E quem não queria o que o outro achava que ele(a) queria, aceitou o querer do outro como certo! De imaginário em imaginário, o casal foi se enganando por 25 anos. Foram 25 anos de uma enganação quanto ao miolo e a casca!!! Quantas outras sustentaram esse casamento ou, podemos nos perguntar, sustentam o relacionamento de muitas pessoas?
Uma curiosidade: a palavra relacionamento vem da raiz relação que, em Latim, significa relatio que, por sua vez, significa ato de relatar, narrar alguma situação ou trazer alguma coisa de volta. Pensando nessa definição, a pergunta que me vem à mente é: o que ou como esse casal poderia narrar os cafés da manhã ao longo desses 25 anos?
Cena 2:
Uma amiga querida estava radiante, ao me convidar para a sua festa de Bodas de Prata. Tamanha alegria me instigou a lhe perguntar “sobre esses 25 anos…”. Ante à minha pergunta, minha amiga me responde muito animada: “cada dia é, na verdade, um dia… as coisas são diferentes… e na medida em que as coisas acontecem, a gente vai se posicionando!”
Vejam, enquanto o primeiro casal há 25 anos fazia a mesma coisa, uma repetição enfadonha que causava sofrimento, esse casal encarava o diferente como algo positivo. Não deixava o relacionamento cair na rotina e na mesmice. À medida que as circunstâncias da vida aconteciam, eles se posicionavam e iam sendo felizes um desfrutando da presença do outro.
Cena 3:
A mulher, casada já há bastante tempo, estava trocando de roupa, pois o casal ia jantar fora. O marido entra no quarto e, ao ver a mulher tirando a roupa que estava vestida, pergunta: “ué, você está tirando a roupa, em vez de vestir?”. A mulher responde que tirou, porque estava achando feia. Então, pergunta ao marido o que ele estava achando. O marido responde que 2% só estava feia. Desconfiada, a mulher lhe pergunta sobre os outros 98% e ele lhe responde: “os outros 98% estavam simplesmente horríveis!”.
Sem nos aprofundar muito nas três cenas, o que podemos dizer? Todas dizem respeito à vida a dois, à convivência entre duas pessoas. A relação amorosa é composta do inesperado, para bem ou para mal. Todos vocês, provavelmente, podem se lembrar de alguma cena que os fizeram rir, chorar, ter raiva, arrependimento, euforia etc.
Então gostaria de traçar alguns pontos a respeito do relacionamento de um casal:
No amor, não há regras fixas ou normativas que valem para todos os relacionamentos
Podemos pensar que, na vida a dois, há sempre um dia a dia, um inesperado que ocorre e que nunca havia sido sequer pensado. Sabemos que, no cotidiano, as pessoas, muitas vezes, vão na direção de alcançar um ideal de relacionamento que imaginam que exista (mas, que é impossível): a mulher que passou 25 anos comendo a parte do pão de que não gostava não perguntou se algum dia poderia ser diferente.
No caso da cena 3, a mulher poderia se perguntar: como meu marido, depois de tantos anos, me responde com a matemática? Não pode ser mais simples? Fazer graça quando estou correndo para sair para jantar?
O cotidiano vai sempre contra um ideal de certo e de errado. É preciso ir a favor da vida que tem de ser vivida a cada momento, pouco a pouco sendo aproveitada. Cada caso é um caso e cada relacionamento é único. Não se pode pautar em ideais externos. É preciso que cada casal construa, ao longo do tempo, seus acordos e combinados.
Há também o relacionamento que surpreende. Como? Quando ouço as pessoas me contarem do namoro longo e do casamento “de conto de fadas” que deu errado. Por quê??? Ao rosto de espanto, pergunto o que a pessoa acha que se passou e a moça responde que não sabe, uma vez que eles sempre gostaram “das mesmas coisas”! Então, poderíamos dizer: Nossa! Alguém precisava dar um basta na mesmice!
O amor se sustenta na e pelas diferenças!
Será que no caso do casamento do “conto de fadas” o fato de gostarem das mesmas coisas foi o que fez o casal se separar, justamente porque levou-os à monotonia do silêncio do que não é dito. Passar a gostar do “miolo de pão” e não mais da casca seria um problema para o casal?
O casal precisa saber que o verdadeiro amor acolhe as diferenças. Segundo o pai da psicanálise, Sigmund Freud, nós nunca amamos uma pessoa exatamente pelo que ela é, mas por um ideal daquilo que acreditamos que ela seja, reflete. E, sabemos, os ideais muitas vezes nos enganam. Por isso que, ao longo de uma vida, é preciso que no espaço do casal haja espaço para acolher com alegria os momentos inesperados e surpreendentes!
Na minha clínica, é muito comum ouvir pessoas falarem assim: “Surpreendente, Gloria, acho que me casei com outra pessoa… não reconheço mais essa pessoa com quem me casei!”.
Ao longo da vida, do cotidiano de uma existência a dois, as pessoas mudam, reformulam ideias, mudam propósitos de vida, mudam até mesmo os seus corpos, mudam de religião, filosofia, trabalho. O que acontece com o parceiro(a) que não acompanha? Sentiu-se excluído, expurgado da vida da outra? Será que toda mudança ou diferença precisaria ser encarada como problema?
Os momentos em que aparecem as diferenças na vida de um casal acontecem frequentemente e não se trata de exclusão. Por que o outro não pode respeitar ou mesmo se inteirar dessa nova escolha do parceiro? A parceria não precisa ser, necessariamente, sobre as mesmas coisas, sobre repetições de velhos padrões, mas sobre novas escolhas, tanto individualmente ou com relação a algo que ambos possam descobrir juntos.
“Mas dra, nosso relacionamento parece que não fecha, cada hora é uma coisa, outra coisa, não pára de acontecer toda hora um monte de coisas…”
Nesse caso, o que eu digo é que a conta não fecha, porque não tem de fechar, você não se casou com um livro caixa! Não há um débito/crédito/haver… Muitas vezes os papéis se alternam, pois não há um roteiro para o dia a dia da vida do casal. Viver com previsibilidade é trabalhar no almoxarifado, onde cada peça tem um lugar específico, desenhado para ela e só ela!
Com a psicanálise, e no tocante ao amor, aprendemos que o sujeito tem de saber lidar com a falta de garantia, para além do fato de que todos nós somos mortais. É impossível um casamento onde se conte quantas vezes na semana alguém lavou a louça… não há uma conta alvo para se chegar a uma perfeição, ou mesmo uma aproximação entre os casais, na medida em que falar em relacionamento já é falar numa inversão total da vida de cada uma pessoa: vamos falar de duas, que vão coabitar.
Passemos agora, ainda nesse aspecto de o amor se sustentar na e pela diferença, a comentar a respeito do mito da “Cara metade”! Parece que antes de casar-se com X fulano era 50, agora ambos se tornaram 100! Eu poderia dizer, que sem graça… é a apologia do ‘unido venceremos’, igual a panela de arroz?
Para a psicanálise, existe uma subversão: vocês não estão juntos para completar o que você imagina que o outro quer ou, ainda, que você vai acertar no alvo e completar a parte que falta ao seu amor! Isso lhes parece amor ou um compromisso com a servidão? A submissão? O apagamento das diferenças, em prol de quê?
Entendamos que gestos de carinho, mimos, agrados, comprometimento com o outro são outra coisa! Por que eu tenho que comer sempre o pedaço do pão que imagino que o outro não queira?
Mas, doutora, o que, afinal, é o amor para a Psicanálise?
Para a psicanálise, entre os dois há um MURO – tantos são os obstáculos a serem transpostos, o que não se confunde absolutamente com gestos de carinho.
Não prezamos o ente querido por um acúmulo que qualidades que se assemelham àquilo que gostaríamos que ele(a) tivesse, mas amamos essa pessoa pelas suas diferenças, e por um todo que não se explica. Assim, quando digo ‘eu te amo’, devo acrescentar, segundo Lacan, ‘mesmo que não saiba por quê”!
Vai ser isso, ‘esse não sei o quê’ – aliás, que vai manter o amor duradouro, tão sério e tão surpreendente ao mesmo tempo! É o sem saber por que o que vai fazer amarmos.
Assim, escapamos então do ‘escrito nas estrelas’ que, muitas vezes, vai subjugar o casal, submetê-lo a uma lei do que já que estava escrito! Ao contrário, o ser humano necessita deixar a chama acesa desse destino, mas que ele mesmo escreveu. Se algo é escrito, foi traçado por ele mesmo, e, portanto, não tem nada a ver com as estrelas.
A manutenção de um ideal de perenidade vai na contramão da psicanálise, na medida em que não implica o sujeito, implica as estrelas. A perenidade das coisas, a comunhão absoluta durante toda a vida é uma impossível exigência do destino. O amor pede, como nos disse o poeta, peito de remador, pede arriscar-se a se comprometer com sua escolha. Assim, nos parece que o amor, o amar, é arriscar-se na repetição do ‘mesmo diferente’, saber-se possível diferente junto. Esta é a concepção da psicanálise, que trabalha pela manutenção da diferença e da singularidade de cada um.
Agora, encaminhando para o fechamento, duas observações: O psicanalista francês Jacques Lacan dá uma definição de amor que, a mim, é muito cara. Se no dia a dia as pessoas entendem que amar é se doar ao outro, no sentido de completar o outro, Lacan no Seminário XI define o amor como “dar aquilo que não se tem, a quem não pediu”. Vou repetir: “dar aquilo que não se tem, a quem não pediu”.
Se esta frase acarreta um mal-entendido é na medida em que ela gira ao contrário da completude. Quanto mais mantermos e lidarmos bem com o mal-entendido, mais duradouro o amor. Como assim? Pois quando amo, dou tudo o que não tenho, não me limitando aos bens materiais, mas dou-lhe minhas faltas, minhas mágoas, tudo o que geralmente não se partilha e que vai alimentar o amor.
O amor vai juntando os retalhos desta tapeação que vai fazendo com ela uma miragem, fazendo com que os companheiros suportem a realidade do cotidiano.
O sujeito promete dar o que não tem, sim, para ser melhor, engana o parceiro para dizer que vai dar até mesmo aquilo que não tem a quem nada pediu. Ou seja, não entra uma parte de troca, de amor por merecimento.
O amor vai ter essa função de sustentar a enganação na medida em que por amor, oferecemos o que não temos!
Agora, depois de tudo o que conversamos aqui, pergunto: relacionamento de casal é para todo mundo? Não, por quê? Se não ficar é doença ou insanidade? Nem uma coisa nem outra, os seres humanos têm todo o direito de optarem por uma vida em conformidade com aquilo que pensam e sentem.
No entanto, para quem opta por ter um. Cuide com amor e divirta-se com a diferença e singularidade do outro!
Domingo, 02 de outubro de 2022. Apesar da dificuldade de locomoção, muitos idosos estão na fila para votar, ansiosos e animados na aposta em se fazer a diferença para que regimes totalitários e silenciadores não se repitam. Talvez se sintam assim porque, como eu, por algum tempo não puderam exercer esse direito já que sofríamos uma política em que a diferença era banida, solene e violentamente.
O voto é um privilégio desfrutado à custa de muita luta. Poder votar é agir na contramão do silêncio aparador das ideologias. A eleição é uma ocasião em que se celebra o direito de não ter sua voz condenada a um mutismo alienante. O dia da eleição é um momento em que as pessoas fazem uma aposta em que uma diferença possa advir. O preço pago pelo exercício de cada escolha é a possiblidade do sujeito buscar sua singularidade. O mesmo ocorre na clínica psicanalítica, na qual se trabalha para que as pessoas deixem um mutismo alienante.
Marina, uma menina miúda de dez anos, tinha o corpo ligeiramente curvado e sorria de canto de boca. Nas palavras da mãe, Sonia, “não conseguia falar direito”. A mãe me procurou na esperança de que corrigisse a fala da filha. Já havia sido feita uma verdadeira peregrinação por consultórios de psicopedagogos, fonoaudiólogos, neurologistas, psiquiatras e psicólogos, mas nenhum diagnóstico ou comprometimento físico havia sido localizado. A família se envergonhava pela “língua presa” da criança e a escondia dos demais. Perguntei: Onde está presa a língua de Marina? A mãe me olhou espantada frente à pergunta, mas passou a dar detalhes.
Marina tinha demorado bastante tempo para sair do “Tatibitabi” (a fala infantilizada que alguns pais e familiares encontram para se aproximar da fala de seus bebês). Depois de um tempo, a mãe passou a culpabilizar a filha por falar assim. Agia como uma espécie de professora de língua estrangeira, fazendo a menina repetir as palavras com as pronúncias corretas após dela.
A primeira pergunta que fiz a Marina foi: “Onde você acha que sua língua prendeu?”. Marina não demonstrou nenhum problema “no freio” ou dificuldade de falar. Não gostava de ter que ficar repetindo as palavras que sua mãe mandava, sempre posicionando a língua entre os dentes.
Marina precisou descobrir que sua língua havia sido presa na mão de sua mãe. Precisou entender que sua palavra tinha peso e valor. Não seria esse o sentimento necessário aos cidadãos brasileiros no momento do voto?
Embora seja carioca, há pelo menos três anos não aparecia por essas bandas. Inicialmente, foi a pandemia que me condenou a um exílio forçado. Depois, a vida foi se impondo à vontade de voltar à cidade maravilhosa.
Estava com saudades de domingos que parecem correr lentos e suados, de restaurantes e bares de calçada que ficam repletos de mesas com o pessoal do chope, da batata frita e do papo alto sobre o tudo e sobre o nada! De ar que cheira frutas. De cheiro de mar. De pé com areia de praia que entra em quase todos os lugares, de cabeleireiros a restaurantes, e das calçadas cheias de folhas das Amendoeiras. Estava até com saudades de entrar em um supermercado e encontrar alguém de short, camiseta decotada e chinelos de dedo ou “Escrocs” (Crocs).
Assim, que susto: o Rio envelheceu, o Rio, “serra de veludo, que sorri de tudo”, nos versos de Roberto Menescau, envelheceu. Em Ipanema, estão cachorros, carrinhos de bebê, gente apressada, donas de casa com compras e muitos idosos. Os idosos caminham sem pressa. Apoiam-se nas bengalas, nos braços de companheiras, em seus andadores. Observam a paisagem e, às vezes, param para cumprimentar os conhecidos.
Não raro, seguem tomando o rumo da praça Nossa Sra. da Paz. Sentam-se nos bancos, observam crianças em seus brinquedos. Nessa pracinha, perdura certo ar nostálgico de “interior”. Aos domingos, fica lotada. A banda fuzileiros navais ou a Orquestra Sinfônica Brasileira apresenta-se. Não há um coreto para abrigar os músicos, então, eles se sentam em cadeiras desmontáveis, dividindo o espaço sonoro com mães, babás, cachorros de colo. Comem-se churros, cachorro-quente e pipoca, obra do octogenário Luís que, toda tarde, perfuma as ruas com o cheiro da melhor pipoca doce de Ipanema.
Observar o senhor Luís é uma aula acerca do envelhecimento: mostra que o correr dos anos não torna a atividade mecânica ou pouco vigorosa. Muito pelo contrário. Dependendo da posição do sujeito, toda hora é hora de alegria, renovação e exercício da singularidade.
É, o Rio envelheceu. O que que tem? Parafraseando outro poeta carioca, Vinícius de Morais, mesmo nas cidades que envelheceram, podemos sempre tentar “ganhar dinheiro com poesia”.
“A mágica lenta” (“La magie lente”, Denis Lachaud/Pierre Notte) é o título de uma peça que esteve em cartaz na França, em 2019. A obra foi inspirada em uma frase de Freud, no texto “A questão da análise leiga: diálogo com um interlocutor imparcial” (1926), no qual Freud associa “psicanálise” e “mágica”. Chamou-nos a atenção o título da peça que, aparentemente, é contraditório. Uma mágica pode ser lenta? Como? Por quê?
A palavra mágica pode adquirir tantos significados e funcionar em tantos contextos que é preciso examiná-la mais de perto. É recorrente em nossas vidas: “isto é mágico”, “parece mágica” e por aí vai. Muitas vezes, inclusive, ouvimos pacientes dizerem, frente a alguma situação muito difícil, “só uma mágica para virar este jogo”.
Mágica, ou magia, vem do latim, magus. Ao longo dos tempos, foi associada a feitiçaria, adivinhação, e a magia, a crenças e rituais. Embora as conotações sejam variadas, ao longo da história, o mágico continua a ter um importante papel religioso e medicinal em muitas culturas da atualidade.
E na psicanálise, de qual magia se trata? Qual é a mágica que ela faz? Referindo-se ao tempo de tratamento psicanalítico, que pode durar meses e anos, Freud afirma que “mágica tão lenta perde seu caráter miraculoso”. A mágica rápida, portanto, contraria a psicanálise, posto que o deslumbramento e a ilusão iniciais paulatinamente dão lugar a um trabalho lento e rigoroso.
Ao examinar o texto, parece-nos que Freud estava menos preocupado em escapar do que se convencionou chamar de mágica e mais interessado em estudar porque sintomas tão dolorosos desapareciam.
Quando Freud pontuou a sua “mágica”, ele escapou da sugestão, na medida em que colocou na dor do sintoma o silêncio do que não é dito. Homologando o silêncio às afecções no corpo, a palavra sai do efeito puramente sugestivo e entra no campo discursivo, dando peso e sustentação àquilo de que não se sabe, posto que não se fala! Nesse aspecto, a cura não advirá do além, mas do sujeito que foi buscar junto à análise um sentido para sua vida. E por falar nisso, falar é mágico, mas não é mágica.
Aos 37 anos, casada, Elizabeth Aparecida me procurou por “um tal de não sei o quê”. De estatura mediana e pele clara, tinha longos cabelos que desciam, escorridos, ao longo de seu corpo. Como tirar alguém de um sofrimento sem nome? Era preciso muita, muita paciência para acreditar que, um dia, Beth pudesse se apropriar de seu sofrimento, tornando-o seu.
Trabalhava na empresa de sua família, em uma função na qual se sentia subaproveitada. Não buscava outras opções, pois sua mãe a havia educado não para o sucesso, mas para que ela pudesse “ter o suficiente para pagar os seus alfinetes”. Lidava com o público, sempre de modo muito cortês: falava pausadamente, respondendo com educação o que lhe perguntavam.
Nas sessões, também adotava um tom modulado, contido, polido. Dizia que, às vezes, lhe chamavam de Beth, outras de Cida. Quando lhe indaguei a respeito de sua preferência, respondeu que tanto fazia. Não sou eu mesma?
Seu nome duplo não havia sido muito pensado. Quando o escrivão perguntou ao pai pelo nome da criança, irrefletidamente ele respondera os dois nomes. O escrivão havia feito uma pergunta de confirmação: — Elizabeth ou Aparecida? E o pai respondera: — Tanto faz, o senhor pode colocar um ou outro.
Elizabeth Aparecida parecia, nos termos freudianos, estar sendo vítima de uma compulsão à repetição. Traumatizada por esse relato de seu pai, vivia a vida de maneira a recriar este “tanto faz” por meio do qual dava ao outro o poder de decisão sobre sua vida. Inclusive, não entendia por que a psicanalista nunca lhe dizia o que fazer e se queixava do fato de que as sessões lhe eram penosas.
Uma ruptura quase se deu quando, após uma conversa com uma colega de academia de ginástica, Beth descobriu a existência da “Associação dos Neuróticos Anônimos”. Julgava que seria leve ir para um lugar onde ninguém saberia quem ela é. Uma pontuação foi decisiva: dizer que A.N.A poderia ser lido como uma sigla, mas, também, como um novo nome, desta vez, escolhido por Ana, née Elizabeth Aparecida, para além das heranças e maldições de seu pai.
No Seminário 20 de Jacques Lacan, o psicanalista usa a expressão “novo amor” para designar este momento no qual o sujeito altera radicalmente seus modos de relação com os demais, fundando uma vida diferenciada. Neste momento em que nos preparamos para receber 2022, os melhores votos de novo amor para todos nós!
Lacan queria que as pessoas fossem reconhecidas pelo estilo. Na aula do dia 21 de fevereiro de 1968, do Seminário XV (O Ato Analítico – 1967-1968), Lacan anunciou a publicação do primeiro volume da revista Scilicet e comentou o efeito causado no público da época por conta do formato da publicação: ela foi composta de artigos não assinados, cujos autores são relacionados apenas no final do volume.
Scilicetvem do latim e significa “vale dizer”, “isto é”. Lacan escolheu esse nome para explorar outro sentido, visto que em francês essa palavra é homófona à frase: “s’il le sait”, se ele o sabe. Porém, o mais comum em português é fazer uma tradução mais livre dessa expressão: “tu podes saber”, em um indicativo da aposta do analista frente ao analisante, no sentido de que esse pode saber o que lhe causa (sofrimento).
Lacan afirmou ficar surpreso com o barulho que essa proposta causou. Ele foi assertivo ao afirmar que o importante não estava em esconder os autores que participaram da revista, como alguns, na época, entenderam. Havia uma lista para apresentá-los. Falar de uma revista de psicanalistas com artigos não assinados foi a proposta de Lacan frente à formação e ao que entendia ser as consequências de uma análise terminada no tocante à relação de cada um com o nome próprio.
Para Lacan, o ato psicanalítico do fim da análise produziria um psicanalista destituído de tal modo que ao se posicionar como analista (seja na clínica, seja como autor) dispensaria o uso do nome próprio, o seu ser. A existência do psicanalista se dá enquanto função. Ele funciona como objeto a. Assim, por um lado, há o nome do analista enquanto pessoa física, por outro, é a função que esse nome exerce. Isso porque dentro do setting analítico, o psicanalista abre mão de uma identidade prévia, podendo, na transferência, assumir várias funções, sempre visando a se manter como causa de desejo.
Para Lacan, “o analista se autoriza de si mesmo”. A partir dessa afirmação, entendemos que o analista se autoriza da parte desconhecida de si, do estilo singular que, ao longo de sua vida, ele constrói. O estilo do analista, portanto, é tão único, tão indivisível, tão singular que vai funcionar como se fosse uma letra, uma caligrafia que, por não admitir imitação, funciona como a impressão digital do analista.
Na trajetória que conduz um analisante a escolher e a exercer a função de analista, a supervisão ocupa um lugar específico e importante. Sabemos que Freud a viveu enquanto elaborava sua clínica e fundava a psicanálise. Fliess foi talvez o único com quem compartilhava, via escrita, suas elaborações, dúvidas e inquietações. Talvez, por toda correspondência que ambos trocaram, podemos considerá-lo como o primeiro supervisor.
A supervisão é um momento de trabalho em que um analista compartilha um pouco da solidão de sua práxis. Entende-se que aguentar a solidão de uma escuta é necessário para quem deseja ser psicanalista. Mas, quando aquele que dirige um tratamento percebe que se precipitou em uma interpretação ou mesmo tomou para si a angústia de seu paciente, pode ser a hora de pedir uma supervisão.
É importante destacar que a supervisão não substitui a análise pessoal: ao contrário, ela só vai operar se e somente se o sujeito estiver com o seu percurso de análise funcionando. Para sustentar uma clínica, é preciso que o analista aposte no seu desejo, o qual lhe dará suporte nas indagações constantes a respeito de sua prática.
Em uma sessão de supervisão, o analista que pede escuta muitas vezes se preocupa em fazer um relato de forma mais fidedigna possível das sessões que dirige. No entanto, é preciso lembrar que por ser um relato de fala, será sempre parcial, equivocizante. E é justamente aí que o supervisor entra, buscando entender na trama da fala do supervisionando a lacuna de uma escuta.
A supervisão é mais do que um requisito para a prática da psicanálise, pode funcionar como um dispositivo que gera, para além de correções de rota em um tratamento, mais inquietações, provocações e desejo por levar adiante a herança da clínica deixada por Freud e Lacan.
Saber ouvir em supervisão é tentar, junto com o praticante, abrir o relato para outras associações e possibilidades. Preocupado em desenvolver com todo rigor as implicações do inconsciente, Lacan repensa a questão da supervisão, colocando-a não como uma obrigação da formação analítica, mas, antes de tudo, como uma consequência do engajamento pessoal na psicanálise.
“A supervisão” faz parte da série “A formação do psicanalista lacaniano”. Confira outros textos publicados aqui.
Estudar Lacan é um desafio para toda vida. A julgar pelos meus alunos de psicanálise, as comparações entre a escrita de Freud e de Lacan são comuns. Enquanto o primeiro é considerado claro, o segundo, obscuro, quase impossível de decifrar.
Haverá, certamente, parágrafos extremamente inquietantes, obscuros, impenetráveis. É nesse momento que a interpretação é ultrapassada: há uma escansão. Silêncio, pausa longa, o leitor para. Com o aparecimento do indecifrável, o leitor topa com o indizível, o enigmático, o real.
Quando este efeito se dá, é preciso suportar a leitura do texto lacaniano; ele entra fazendo furo. Assim, a leitura pode alterar a relação do leitor com o que se leu, renovando seu interesse pela psicanálise.
Ledo engano achar que para ler Lacan seria necessário um pequeno roteiro, do tipo, qual é o assunto, o número do Seminário, o ano do texto etc. Ler um texto de Lacan segue a escuta analítica.
Há momentos, entretanto, de pausa na compreensão do texto. Como tolerá-los? Como ler parágrafos inteiros, enigmaticamente difíceis e tentar prosseguir? Como falar sobre o que se sabe ler, mas não se sabe significar?
Àqueles que têm dificuldade de encarar a angústia da leitura, a dificuldade da nomenclatura, a falta de apoio teórico e, sobretudo, não aguentam o confronto com o fato de não saberem, aconselho humildade com relação ao texto e, acima de tudo, que o desejo alimente todo o percurso. A leitura vai ser confrontada com o leitor, ávido de saber, de poder debater, enfim, de poder abrir o texto que, até então, era uma incógnita para ele.
Na medida do possível, é preciso que se tome um tempo para que as palavras escritas se façam corpo para o leitor, tomem forma e se tente ouvi-las como uma interpretação, uma captura sua, do leitor enquanto sujeito.
“O estudo teórico” faz parte da série “A formação do psicanalista lacaniano”. Confira outros textos publicados aqui.
É de senso comum que a formação do psicanalista de orientação lacaniana se faz por meio da formação teórica, análise e supervisão. Embora todos os elementos do tripé sejam importantes, dá-se privilégio à análise pessoal.
É impensável alguém trabalhar na direção do tratamento de alguém sem ter passado por uma análise. Essa afirmação é algo que se repete inúmeras vezes, mas, por quê? Você já pensou sobre isso? Este texto quer relançar esta pergunta, na medida em que entende a importância primordial da análise pessoal para a prática do psicanalista.
Uma vez ouvi na faculdade que o analista tem de se analisar, porque caso não faça análise, ele pode “confundir o que é dele e o que não é!”. Seria só isso?
O analista deve ter passado pela análise, porque é a partir dela que ele vai poder ter, digamos, saber sobre seu inconsciente, o qual lhe possibilitará operar com outro que lhe dirige a palavra. Quanto mais alguém avançou em sua análise, mais condições terá para saber ouvir aqueles que o procuram.
Se o outro não sabe o que diz, expondo seu sofrimento por meio de palavras, o analista, para poder lhe dirigir na cura, precisa saber que por meio de sua experiência de escuta poderá ouvir e operar sobre o inconsciente daquele que lhe dirige a palavra.
O princípio fundamental que norteia uma escuta é que tenha havido uma análise em que aquele que ouve o outro foi confrontado, inexoravelmente, com o que nunca soube de si e, nesse confronto, ter validado seu desejo de analista.
Em geral, um analista não começa um processo de análise porque quer ser analista. Como qualquer pessoa, o que o sujeito busca é se livrar de um sofrimento que o paralisa. Como tantos outros encontros na vida, pode ou não acontecer, pode ou não ser bom, pode ou não fazer diferença. Logo, será sempre um encontro marcado pelo real, pelo contingente.
Um começo de análise marca um momento na vida de um sujeito. Cronologicamente, temos um tempo antes e um depois de ter começado a análise. Trata-se de um tratamento que coloca em xeque a relação do sujeito com a sua história e com as palavras que, até então, marcaram a sua vida.
Ao longo do tempo, haverá sempre “um ponto” que se percebe diferente na repetição da história. Haverá sempre um afeto na ligação com a palavra que vai fazendo giros e giros. Nesse processo, é necessário coragem para se enfrentar o real. Por mais doloroso que inicialmente isso possa parecer, é só por meio desse enfrentamento que o sujeito poderá se descolar daquilo de que era escravo.
“A análise pessoal” faz parte da série “A formação do psicanalista lacaniano”. Confira outros textos publicados aqui.